A interpretação de textos e o uso de dicionários - 13-03-06
Prof. Manuel Antônio de Castro
1º. A leitura de um texto, poema, conto, romance nos lança num mundo poético através do entre-tecer das palavras e verbos numa sintaxe poética. Na tessitura do discurso se dão inter-stícios muitas vezes só acessíveis pela reflexão em torno de algumas palavras fundamentais, verdadeiramente poéticas, isto é, que se tornam núcleos de sentidos múltiplos, verdadeiras imagens-questões. No todo, a obra como tal reúne todos esses sentidos múltiplos e ainda produz novos, numa interação poética do todo e das partes. Essas possíveis interações são semelhantes às existentes num percorrer uma rede, ou melhor, enquanto obra viva, o viver a teia artística da vida.
Para mover-se aí enquanto ato de leitura tudo isso é muito complexo, mas podemos apontar dois caminhos de reflexão mais imediatos:
a - Quando procuramos saber como se originou a denominação de “palavra”, nada nos pode indicar a sua “estranha” formação, pois a sua visibilidade por causa da escrita ou a percepção através dos sons da fala acabam por nos lançar numa apreensão somente sensível e imediata. É então que a “etimologia” (o que é verdadeiro) nos conduz pelos caminhos e veredas tortas da “linguagem”, para além e aquém do simples e imediatamente sensível. Não há sensível sem o sentido dos sentidos.
Palavra vem do grego e se formou através do prefixo pará: junto a, cerca de, entre. E seu radical é formado do verbo ballein: lançar, pôr. Disto decorre que a palavra não é algo substancial, mas a força e ação de lançar, pôr junto a, cerca de, entre. Este “entre” indica a liminaridade, o limite instável entre fala E escuta, escrita E sentido, língua E linguagem, ser E não ser, em que todo ser humano como ser-do-entre já desde sempre está lançado e existe. A palavra assinala sempre uma mobilidade instável do real como linguagem, na medida em que o ser humano, como doação da linguagem, é essencialmente um ser liminar, ou seja, um ser-do-entre;
b – Fazemos parte de uma grande rede, a teia da vida. O ser humano, nesta teia, é o real, a “natureza” se doando como linguagem enquanto palavra, na medida em que o doar é o próprio ato criador, a que se denomina poiesis. O sentido do ser que doa o ser-humano e seu sentido é a palavra nomeadora enquanto linguagem da poiesis. A linguagem é dizendo o sentido do ser do ser-humano, ou seja, é palavra. Esta nos lança, põe na dinâmica da memória e do tempo. Como tecido verbal a palavra tece e entre-tece a vida da memória em três instâncias: hypo-texto, hiper-texto e inter-texto (inter=entre). Disso decorre que toda leitura se alimenta dessa complexa teia de sentidos e caminhos verticais e horizontais uma vez que a vida é a poiesis ou ação em seu sentido manifesto nas palavras da linguagem.
Enquanto memória e tempo os significados e os sentidos das palavras, cotidianos e restritos ao código, não nos permitem apreender toda a sintaxe poética em que o real se configura no texto. Fazem-se, pois, necessários os dicionários.
2º. Há seis tipos de dicionário que podem, e muitas vezes devem, ser consultados se se quer um diálogo mais profundo com as possibilidades poéticas. Isso não quer dizer que podemos esgotar os sentidos poéticos do texto. Não. É o que nos diz o poeta Drummond, contemplando a poesia das palavras:
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal começa a manhã.
São muitas, eu pouco ... “O lutador”
E numa outra dimensão o reafirma no poema “Procura da poesia”:
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Penetra surdamente no reino das palavras
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Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces sob a face neutra ...
Para seguir o conselho poético é que é necessário consultar os dicionários, mas não como receita e, sim, como possíveis caminhos indicativos. Às vezes as palavras se apresentam em diferentes significados semânticos, outras, tornam-se metá-foras. A relação entre as metáforas e as palavras pode-se dar em dois níveis complementares: a- a formação da palavra metáfora me mostra que ela, como a própria palavra, se move numa força de ação fundamental, pois metá, prefixo grego, diz o entre, o através de. E o radical -fora vem do verbo fero, que diz: levar, conduzir. Ou seja, toda metáfora é um conduzir pelo vigor e ambigüidade do entre, na medida em que é lançado e posto e levado pelo entre da palavra; b – a presença do entre (ambíguo) na palavra e na metáfora faz desta uma imagem poética, como se diz normalmente. Para expressar a presença e força da imagem poética diz-se que as obras de arte são simbólicas. Esta palavra também se forma do grego, em que o sim tem sua origem no prefixo grego: syn, que reúne, junto e em companhia de. Já o radical –bólicas vem do mesmo verbo ballein (pôr e jogar), presente no radical de palavra. Ou seja, em todo símbolo há um jogar, um pôr que reúne. Reúne o quê? O que as palavras e as metáforas manifestam do real em sua ambigüidade (na medida em que o ser humano se move, vive na liminaridade e é um ser-do-entre). Então a imagem poética mostra a sua ambigüidade na medida em que ela é imagem-questão. A palavra e imagem poética manifestam o real como questões. Essas questões do real e do ser humano nos advêm como e na linguagem poética como palavras e metáforas. Linaguagem, em seu sentido grego, isto é, derivado do verbo legein (de onde se formou o substantivo logos) significa reunir e só porque reúne é que pode dizer. A tal reunião enquanto linguagem da poiesis é que se dá o nome de sintaxe poética. Para melhor apreender as questões da imagens-questões foi criado uma dicionário especial: o simbólico. Mas os mitos também são essencialmente imagens-questões. Então a consulta de um dicionário de mitos é fundamental. Além disso, na medida em que cada imagem ou figura configura questões é necessário consultar um dicionário de poesia e pensamento.
Mas fique claro que nem todos os significados estão dicionarizados. Os poetas e pensadores criadores desentranham novos sentidos, que o uso dos dicionários não trarão. O que fazer então? Simples. Ler como escuta essas palavras e apreender os seus sentidos a partir do todo da obra ou ensaio, porque todo criar é um auscultar da poiesis da linguagem enquanto sentido do ser e é nesta essência do agir que a obra se denomina obra, ou seja, a que opera. Por que opera? Porque desvela o sentido do ser, ou seja, sua verdade. A um tal operar da verdade se denomina: real.
Os dicionários
A - Há o dicionário normal de significados das palavras. Ele trata dos diferentes empregos semânticos das palavras. Dependendo da sintaxe poética, um ou mais significados podem elucidar os sentidos do texto. É importante ter presente que a sintaxe diz respeito à interconexão das palavras pelas quais o real se nos faz presente, mas sempre numa dinâmica múltipla, como se o real nos aparecesse como uma rede, um tecido. Os diferentes significados semânticos servem para ligar entre si os diversos nós e linhas de conexão e passagens, mas também os enigmáticos buracos vazios do discurso/texto enquanto rede. Não há rede sem os vazios. Como chegar ao vazio da rede? Faz-se necessário apelar para outro tipo de dicionário;
B - Para além dos significados semânticos, as palavras também recebem novos significados dentro das diferentes teorias filosóficas e até das ciências. Não se trata mais de significados semânticos, mas de conceitos filosóficos ou científicos. Para ter acesso a esses conceitos faz-se necessário a consulta a um bom dicionário de filosofia, onde haja uma bibliografia e a referência às obras dos grandes pensadores que deram origem aos conceitos. Mas fique bem claro que uma mesma palavra pode ter diferentes conceitos. Às vezes, um conceito filosófico se torna a chave pela qual se abrem as portas das múltiplas faces das palavras nos textos. Como hoje a ciência está mudando muito é essencial que os conceitos científicos também sejam consultados. A título de exemplo. Os biólogos Varela e Maturana criaram o conceito novo em biologia: autopoiese. No caso do conceito de representação, tão divulgado em teoria literária e correntes críticas, esse novo conceito de biologia vem destruir qualquer pretensão da representação.
C - Nem sempre temos todo acesso às palavras consultando esses dois tipos de dicionários. É que para além da semântica, dos conceitos, há também as questões e as imagens-questões. Uma questão é algo em que estamos lançados e que não podemos nunca resolver, só conviver alegre ou dolorosamente com ela. É o caso, por exemplo, da necessidade, da morte, do amor, do tempo, da alegria, da dor etc. etc. Quando se trata de um questão, então, é necessária outro dicionário. Guimarães Rosa, esse mágico das palavras, em entrevista a um crítico alemão disse o seguinte:
[Nós sertanejos] Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco os meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias ... Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras.
Estas afirmações de Rosa mostram-nos que as palavras podem e devem ser chocadas. Para chegar a esse núcleo vital do qual nascem as palavras e obras é que é necessário muitas vezes consultar um Dicionário etimológico (mas não só, faz-se necessário abrir-se para a escuta da criação que irrompe como linguagem e poiesis). A palavra grega etymon diz o que é verdadeiro. A palavra poética manifesta o real como verdade. Então muitas vezes para chegar a esse núcleo verdadeiro é que o precisamos consultar a etimologia. Mas o que procurar e como aproveitar o essencial, para que não se torne mera ginástica filológica? Quando consultamos uma palavra em sua etimologia, buscamos um ou mais sentidos que ficaram submersos, mas vigoram ainda em seu frescor inaugural, em sua força poética originária, como tempo originário. A interpretação de um texto em seus sentidos profundos depende muitas vezes dessa densidade da palavra em seu sentido etimológico. Citaria um exemplo importante para o estudante de literatura. É a palavra ficção. Vem do verbo latino: fingere. Consultando o dicionário latino, encontramos quatro significados principais: fingir, formar, imaginar, educar. Eles têm uma origem comum, que podemos encontrar na sua etimologia. Propriamente, fingere significa modelar na argila. Figulus é o oleiro. Fictor é o escultor. Daí se generalizou para qualquer ato de manipular, por ex., uma figura, ou modelar, seja externa ou internamente. Passou então a significar imaginar, apresentar, o talhar, o modelar a terra e o ser humano ou real.. Como tal, é criar a partir do nada, do vazio, do que ainda não há. Toda ficção é, pois, uma construção do real a partir do vazio, da Terra. A ficção se torna, verificando a densidade dessa palavra na etimologia, algo real e verdadeiro. Não podemos esquecer aqui que “Deus” fingiu, ficcionou (criou do nada) o ser humano a partir da argila (Terra). No mito de Cura, é a própria Cura que também ficciona, figura o ser humano a partir da argila da Terra. Por isso diz Rosa: Primeiro há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original (isto só é possível pela reinvenção etimológica, ou seja, a partir de seu etymon ou núcleo poético.
A densidade etimológica de cada palavra levou nosso grande Rosa a acrescentar:
Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Uma palavra densa é uma palavra grávida de sentidos.
D - Como as palavras criam nova densidade em seu vigor metafórico, tornando-se imagens-questões, é muito importante, dependendo do caso, consultar um dicionário de símbolos. Mas os símbolos ou alegorias só se tornam poeticamente fecundas se as apreendermos como imagens-questões.
E - Além disso os próprios mitos são essencialmente imagens-questões, por isso é também importante consultar diferentes dicionários de mitos ou, ainda melhor, os próprios mitos. Porém, é importante acentuar que as imagens-questões não são nem do poeta nem das obras objetivamente tomadas. Obra diz o que opera. Para a obra operar é necessário que as suas imagens-questões nos atraiam e nos lancem no vigor das questões que nos propõem, para que elas se tornem nossas, isto é, experienciando-as nos apropriemos do que nos é próprio, o ser que nos foi dado. Desse diálogo de leitura é que nascem as interpretações como leituras criativas.
F - Se o leitor bem notou, o convite à reflexão para enriquecimento interpretativo das leituras exige de cada um a união e reunião de poesia e pensamento, onde o pensar poético se faça poesia pensante. Se bem prestou atenção às citações acima de Rosa, poesia e pensamento fazem uma perfeita simbiose. O mesmo foi afirmado por Fernando Pessoa: “Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase súbdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve” (Poesia de Álvaro de Campos. Nota Preliminar, p. 297, in: Fernando Pessoa, obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965). E também o que nos afirma Martin Heidegger: Por isso diz Heidegger: “Os dicionários não dizem nada do que dizem as palavras na experiência originária de pensamento. Por isso, neste caso, como nos demais, não é verdade que o nosso pensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitude vigorosa daquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de forma concentrada. A etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais” (A coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 152).
Procurando essa união de poesia e pensamento estou elaborando um dicionário com esse título, para ser consultado na internet. Em breve estará no ar. Mande um email para profmanuel@gmail.com e mandarei, quando estiver no ar, o endereço.
Dicionários – Indicações
1º. Aurélio ou Houaiss (Em português).
2º. FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofia. Madrid, Alianza Editorial, 1981.
3º. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Ministério de Educação e Cultura.
4º. KÖHLER, Pe. H. Dicionário escolar latino-português. Porto Alegre, Globo.
5º. PEREIRA, Isidro S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto, Apostolado da Imprensa.
6º. BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris, Hachette.
7o. ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictinonnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck.
8º. CHANTRAINE. P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck.
9º. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis, Vozes.
10º. KLUGE – etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. 24.e. Berlin, Walter de Gruyter, 2002.
11º. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles – mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres.
Um comentário:
Tomei conhecimento meio por acaso do seu blog ( se é que acaso existe não é?), sempre que possível estou visitando este espaço, e da profunda necessidade de ouvir os poemas, conhecer estas diversas formas de interpretação poética percebo imperativa urgência em fugir das conceituações, cada vez mais vagas, desejos ocultos estes que me levaram por descaminhos virtuais em busca de algumas pistas de uma poética perdida, velada talvez. Enfim, me interessei muito pelo projeto do dicionário de poesia e pensamento, aguardo a divulgaçao de tal obra.
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