A pós-modernidade como questão
Prof. Manuel Antônio de Castro
A localização cronológica do pós-modernismo e da eclosão da pós-modernidade na década de cinqüenta, em meio ao pós-guerra, indica uma virada ideológica e ontológica na construção do homem e da realidade. Data dessa década o surgimento e rápido aperfeiçoamento do computador. É importante reiterar que a pós-modernidade não se reduz a esse processo digital de codificação da realidade, mas é devida ao surgimento de uma nova interpretação e realização da natureza, do tempo, da linguagem, da memória e da história.
Em entrevista ao jornal O Globo, o historiador americano Francis Fukuyama, mundialmente famoso depois de ter anunciado em 1989 o fim da História, revê sua posição e passa a afirmar que a História não acaba enquanto houver ciência. É o que ele desenvolve em seu novo livro Nosso futuro pós-humano, lançado no Brasil pela Rocco (O Globo, 28-9-2003, p. 49). Ao colocar como centro da História a ciência deveria reconhecer que temos uma nova experiência do real enquanto tempo na medida em que este é apreendido e compreendido seja cientificamente seja determinado pela parafernália técnica: à realidade virtual corresponde um tempo virtual. Os passados convivem hoje simultaneamente no presente e vivemos um tempo acelerado pelo qual temos a vertigem de contínuo presente, onde qualquer futuro é para ontem, tal a rapidez em que somos solicitados a experiências e consumo de novos produtos, onde, parece, nós somos o principal produto. É o novo homem da nova realidade, onde a aparente opção por múltiplas possibilidades e significados nos dá a ilusão benéfica de sermos livres. Aparente, porque nos múltiplos significados do sistema só há um sentido de real e homem: o do sistema, e ilusão benéfica porque multiplica sem limite as possibilidades de experiências estéticas e curtições, onde mais do que sujeitos do sistema somos vítimas. À aparente liberdade positiva não corresponde nenhuma liberdade ontológica, mas na sucessão de agitações e agitos em que se transforma nossa vida não há ações que impliquem a apropriação do que nos é próprio pelas quais façamos nossa história enquanto acontecer poético.
Fukuyama deveria reconhecer que é mais uma experiência de História enquanto eclosão de um novo Tempo, o que não faz porque pensa que sabe o que é a História, ou talvez esta não se torne para ele uma questão essencial. Ou será que ele pensa que depois da ciência não virá outro tempo?
Nós não sabemos o que é a História como não sabemos o que é a coisa. Por isso Heidegger fez da questão do Tempo enquanto sentido do ser ou a perda do sentido do ser o leitmotiv da maior obra de filosofia do século XX: Ser e tempo. Já quanto à História dedicou-lhe igualmente um ensaio polêmico e complexo: Carta sobre o humanismo, onde anuncia o fim de todos os humanismos e de todo e qualquer –ismo, por um resgate do homem a partir do sentido do seu ser, não construído pelo homem, mas o homem como eclosão da Escuta do que lhe é próprio: o seu destino histórico.
Já quanto ao real, tomando a questão pela raiz, vai pensá-la nos ensaios “A questão da técnica” e “Ciência como pensamento do sentido”. E o impacto da técnica na Linguagem, como modo de construção do real e do homem, no ensaio: “Língua técnica e língua de tradição”. Já a questão da coisa, que ele não confunde com real, realidade e realização, vai ser tematizada em dois ensaios substanciais famosos e complementares: “A origem da obra de arte” e “A coisa”. No primeiro traz para reflexão três conceitos nem sempre pensados e correlacionados: coisa, utensílio e obra de arte. O importante a destacar para o tema presente é o fato pelo qual mostra e demonstra que a nossa concepção do que seja a coisa já vige numa interpretação filosófica e metafísica do que seja o ente, entendido na tradição ocidental como coisa, utensílio e obra de arte. E três são essas interpretações, vigentes e não pensadas até hoje, de que trata no ensaio “A origem da obra de arte”. Na realidade, há uma prevalência nessas interpretações da que se refere ao utensílio. A partir do entendimento deste através das quatro causas, especialmente a material e a formal, se definem e entendem a coisa e a obra de arte. Se retirarmos tal interpretação, ficam frente a frente coisa e obra de arte, onde uma e outra se reencontram originariamente enquanto experienciação da physis como poiesis e pensamento. A grande novidade, se tal termo não for mal entendido nem lido num sentido metafísico de progresso, que traz o ensaio “A coisa” é uma ampliação e enriquecimento da reflexão sobre a coisa, agora numa experienciação mítica e de pensamento. Juntar mito e pensamento é o caminho mais radical de reabilitar o mito, tão maltratado pela filosofia, teologia e ciência. Há a junção implícita com o outro ensaio, porque a experienciação da poiesis só é possível originariamente como experienciação do sagrado, ou seja, esta experienciação é fonte cristalina do mítico e do poético. No horizonte da experiencição do real sempre se fazem presentes como sendo o mesmo, embora não sejam as mesmas coisas, as experienciações do mítico e do poético. Os dois ensaios são por isso mesmo complementares. Apreendê-los em seus questionamentos é lançar-se na ventura e aventura da experienciação de pensamento em torno das questões de Physis, Tempo, Linguagem, Memória e História.
Quando lemos os ensaios em torno da ciência e da técnica, notamos que tomam como centro de questionamento o real e acabam também por nos remeterem para as mesmas questões fundamentais:1º. Física / physis; 2º. Psiquiatria / homem (ontologia); 3º. Filologia / linguagem (Logos); 4º. Historiografia / História (acontecer: Ereignis).
Nesta reflexão sobre o real e a coisa não poderia deixar de assinalar a originalidade da obra poética de Clarice Lispector, onde a tematização do que seja a coisa e sua relação com os objetos é constante, e a questão magna do real se torna um dos traços mais marcantes de sua poética. Nesse pano de fundo, surge a reflexão sobre o agir e destino do homem.
Realidade virtual
Um dos principais problemas dos textos que falam de realidade virtual é não partirem de uma reflexão mínima sobre o que se entende aí ou em geral por real. Dá a impressão que é algo evidente e sabido. E não é, como acabamos de ver. Através de que conceito ou conceitos pode ela ser lida? Mas para entender, por outro lado, a questão do virtual é necessário aprofundar dois caminhos: 1º. Estudar bem as três concepções gregas do ente, especialmente a das quatro causas, levando em conta a formulação originária grega em Platão e Aristóteles, e depois as transformações que tal questão sofreu com a sistematização escolástica, e que se tornou a concepção que a tradição filosófico-cultural ocidental conservou. O virtual passa pela reflexão em torno da forma e do formato, como tende a se denominar o impacto da técnica nas novas realidades; 2º. Um outro caminho bem mais complexo é a releitura e interpretação da trajetória da cultura ocidental a partir do surgimento da escrita. As experienciações míticas do real e suas expressões rituais orais sofrem um profundo impacto com a invenção da escrita. Uma das linhas de força da modernidade que não foi suficientemente tematizada e aprofundada diz respeito à invenção da imprensa. A Reforma de Lutero poderia ter o sucesso e impacto que teve sem a impressão em larga escala da Bíblia? E como o Iluminismo poderia desenvolver e realizar o ideal de homem crítico sem a disseminação de idéias pela imprensa e livros e a leitura em larga escala? Os meios áudio-visuais inventados no século XX trouxeram um profundo e novo impacto, com a circulação das informações, de novos registros e de novas expressões artísticas. Na realidade, desde a invenção da escrita passa a haver uma realidade virtual. Mas esta só se fez notar com mais intensidade a partir do impacto da invenção escrita digital. O seu uso em escala jamais imaginada originou a consciência de uma outra realidade convivendo ao lado da realidade, que afinal não sabemos bem o que é, e que foi o tema deste pequeno ensaio. Acentuamos que não sabemos o que é, porque a questão do real, realidade e realização não foi vista no seu aspecto mítico nem poético. E esses são os aspectos determinantes, apesar da pregnância da realidade virtual. Duas coisas são certas. A introdução de novos recursos técnicos transforma a manifestação da poiesis em sua diversidade de linguagens, mas não a anula. Não pode é se confundir poiesis com meros jogos formais e a recorrencência de recursos técnicos. O recurso técnico digital não pode fugir a essa regra. Porque o que está em jogo não é uma forma ou outra, mas a manifestação do real. Quando esta questão se torna o centro da discussão em torno da realidade virtual então é necessário aceitar cada vez mais que não sabemos o que é a natureza, o tempo, a linguagem, a memória e a história, sendo, portanto, factíveis os usos de novos recursos. O essencial é o horizonte de novas experienciações, onde a questão não é propriamente o novas, mas as experienciações, ou seja, ler o novas não num sentido historiográfico e cronológico, mas originário, no sentido de que toda obra de arte por ser sempre originária (acontecer poético, ou segundo Heidegger, Ereignis, acontecimento) é sempre nova, daí o poder fazer sempre novas interpretações. Não podemos de modo algum dizer que a pintura é o único modo de criação visual, anulando o poder da fotografia e do cinema. O mesmo acontece com os recursos do computador ou em geral com a técnica digital.
Como já notamos, o virtual tem que ser lido a partir do vigor do real, e não simplesmente no seu sentido semântico superficial. O difícil é compreender que a leitura e possibilidades dos novos meios não podem ficar restritos à constatação de que são novos suportes para expressão do real, porque aí já se está reduzindo a linguagem a sua expressão. A expressão tem que ser incorporada como dimensão do próprio real e da própria linguagem, onde uma pressupõe o outro. Ou seja, o desafio que a realidade virtual nos coloca é fazê-la acontecer enquanto poiesis. Foi o que os grandes poetas sempre fizeram desde Homero.
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