15 agosto 2006

O real, a modernidade e a pós-modernidade

O real, a modernidade e pós-modernidade

Prof. Manuel Antônio de Castro

REAL e sua origem:

Real, realidade, realização provém da palavra latina res, rei, através do latim medieval.

Res, rei: bem, propriedade; o que existe, a coisa, a obra (ergon, em grego); natura rerum: natureza dos entes; causa (coisa), negócio, motivo. Res publica tanto pode significar: a propriedade pública como a causa pública. A etimologia: em indo-iraniano significa: bens, riqueza, e em itálico, negócio, causa. No sentido de causa traduziu o termo grego aitia.

O REAL COMO QUESTÃO.

A questão do real se torna a pergunta pelo real. Aqui podemos tomar dois caminhos que se complementam. De um lado uma fenomenologia da questão enquanto ato concreto de perguntar, onde a essência do agir se traduz na ação concreta do homem pela qual o homem se coloca no centro do saber e não-saber enquanto horizonte possível da própria construção do homem e do conhecimento e construção do real. Para isso ver Rafael Capurro e a questão da pergunta. De outro lado temos a questão do real como ele é, não-é, aparece, se conhece, vivencia e pensa.

Em primeiro lugar aparece a denominação de real. É mais que um signo com significante e significado, pois subjaz sempre o re-ferente. E esta denominação já é problemática, na mediada em que o radical provindo do verbo latino “fero” e o prefixo “re” implicam uma mobilidade irremovível e ao mesmo tempo um laço dialógico de homem/linguagem e real. Com isto voltamos à questão do real e da palavra que o denomina, pois, embora o homem se ponha a questão do real, nem o homem nem a questão deixam tb. de ser reais. É nesta ambigüidade que se coloca a referência do referente. A denominação do real como real mais do que manifestar oculta, encobre e despista o real. Esquecidos de que a palavra real em sua origem denomina, o real nos aparece como totalidade dos objetos que se constituem como um todo diante de nós. Todavia, a confusão já começa porque essa “totalidade de objetos” não só são distintos entre si como também são concebidos e vividos ao mesmo tempo como iguais para todos e como diferentes.

O real enquanto “totalidade de objetos” se constitui de objetos, coisas, utensílios, obras. E cada um destes nomes implica diferenças. Embora o real nos apareça como totalidade, ela vai além dos objetos, pois também o homem, os animais, os sentimentos, os pensamentos, os conhecimentos são reais. E mais: a fé, Deus, seres divinos, almas, céu, inferno, eternidade são reais. E mais: leis, justiça, beleza, linguagem, memória, tempo, história, espaço, mudança, são reais. E mais: alegria, tristeza, dor, sentimento, angústia, desejos, paixões, compaixão, solidariedade, ódio, mal, bem, vida morte são reais. E mais: verdade, opinião, aparência, erro, falsidade são reais.E mais: ordem, desordem, razão, ficção, fabuloso, extraordinário, imaginação são reais. E mais: ser, aparecer, esquecer, lembrar, luz, trevas são reais. E mais: mistério, limite, ilimitado e limiar são reais. E mais: até vazio, caos, nada e não-ser são reais. Para tanta riqueza, complexidade e mistério escolhemos uma palavra que procura abarcar tudo e nos localizar dentro desse mesmo real para que não nos percamos e sejamos engolfados por tanta riqueza e abundância de real. Então o homem, essa questão em travessia, constrói suas pontes e caminhos que o conduzem de seu lugar a lugar nenhum. Amorosamente o homem em meio ao real e fazendo parte dele, o apreende, o compreende e conhece de múltiplas maneiras. Ao fazer eclodir o real através do agir do próprio real, o real se lhe destina como lugar: é o seu mundo, a sua habitação na e pela qual ao tê-la se tem( habitação/habere). Ele se constitui de natureza (physis), homem e tudo o que ele im-plica, de história e de linguagem. Aliciado, solicitado, envolvido, necessitado, destinado, o homem responde e corresponde com o que lhe é próprio: querer, pensar, conhecer, sentir, compreender, odiar, amar. Impulsionado pelo apelo incontrolável de ser em meio ao não-ser, faz da errância a sua construção do real. Fazendo da necessidade destinada a sua libertação, ele se constrói como verdade e sentido. Em meio à necessidade e libertação vive o limiar angustiado e sofrido como alegria e prazer da tensão entre limitado e ilimitado. E o real lhe aparece como mistério e desafio. In-satis-feito amplia a visão em busca da “coisa” por detrás da “coisa” em direção ao micro e ao macroscópico. Faz do sabor uma arte que ultrapassa toda necessidade e limites da sua corporeidade, apreendida como habitação e mundo e não mais como uma mera “coisa” e sentidos.

Quando nos perguntamos, fundamental e essencialmente, a partir do “quê” se constrói o homem e a realidade, podemos responder: através de cinco vetores, que permanecem um mistério para o homem, no sentido de que ultrapassam todo alcance de conhecimento, mas também no sentido de que é a partir deles que o homem pode perguntar.

São eles: a Natureza (physis), o Tempo, a Linguagem, a Memória, a História. Heidegger falará de: natureza (física), psiquiatria (homem), história (acontecer), filologia (linguagem).

De alguma maneira podemos dizer que essas cinco “dimensões” ou “vetores” permanecem um mistério para o homem, na medida em que o próprio homem é real. Mas no que o real se constitui e constrói enquanto natureza, tempo, memória, linguagem e história, esse mesmo real aparece e se manifesta no e para o homem como cultura e mundo. Mas o que é cultura, o que é mundo?

Não podemos tentar definir natureza, tempo, linguagem, memória e história a partir de nossos sentidos, tomando como parâmetro e paradigma o homem, até porque no homem nem sempre eles se “realizam” mais plenamente. Determinados sentidos se fazem presentes em determinados “animais” que ultrapassam toda compreensão humana, provocando o impasse pelo qual não podemos, de um lado, definir o homem como animal racional, e, de outro, querer compreender e limitar os animais a partir e no âmbito desse mesmo “racional”, ou radicalmente querer limitar o tempo, a linguagem e a memória ao racional. Temos de ultrapassar o racionalismo positivista e científico e admitir humildemente que não sabemos o que são os animais, os vegetais, os minerais, uma pedra, por exemplo.A ecologia e a biodiversidade tem provado isso ad nauseam. É o que, também, a questão dos sentidos nos mostra enigmaticamente. A título de exemplo, as corujas têm uma visão tanto maior quanto mais há ausência de luz e percebem detalhes e movimentos invisíveis para o olho humano. Neste caso, a presença da techné na construção do homem e do real nos oferece aspectos que põem em evidência os limites de querer definir a construção do homem e do real a partir dos sentidos. Se só fôssemos até onde vão nossos sentidos, não teríamos Édipo Rei e a bomba atômica. A techné (estudaremos isso) mostra a presença de algo que ultrapassa os limites e alcance dos sentidos. Um outro exemplo de sentido torna isso tudo ainda mais enigmático: o cheiro do cachorro. Ele se constitui numa presença tão forte nele, impensável para o ser humano, porque todo o real se dá nele em dimensões que ignoramos, nos impondo a angústia do enigma da linguagem (os animais têm/não têm linguagem, mas o que entender por linguagem quando se trata de real e não apenas de algo racional?). Através do cheiro, o cachorro delimita e manifesta o real como “mundo”. Na impossibilidade de alcançar essa referência real/cheiro do cachorro, simplemente reduzimos essa manifestação à denominação “marcar território” (não indica esta denominação duas coisas: o animal faz parte do homem como o homem faz parte do animal; a linguagem manifesta não só o mundo do homem, mas do homem e do animal numa convivência desejável de realização do real). Em condições normais, um cachorro nunca se perde de seu dono e do lugar onde “habita”. Ou seja, o cheiro se faz presente no cachorro de maneira que o homem não compreende e numa dimensão de construção do real que o homem não alcança. Isso certamente é uma dimensão do real enquanto linguagem e memória que não podem ficar adstritas ao alcance e definição dos sentidos e compreensão humanos. Isso fica mais evidente se completarmos essa “percepção” pelo fato de que no cachorro a audição tem um poder que ultrapassa em muito a audição do homem. Conjugando audição, cheiro, visão no cachorro temos uma construção do real que foge a toda definição do homem. É para nós o real como um “mundo” misterioso. Até onde podemos aí falar de construção do “real” e do “mundo” como exercício dos sentidos do cachorro? No entanto, o cachorro não fala dos seus sentidos, do seu “mundo”. Só o homem. Onde a diferença? No dia-fero. É que, obtusamente só falamos dos sentidos humanos comparando-os com os animais. O que deveria ser inverso. O que são os sentidos para o ser humano? Aí a ciência nada ou muito pouco tem a dizer, só a poiesis. Por que o homem e só o ser humano faz do ato de atender às “necessidades corporais”, às “necessidades animais” de comer para viver e sobreviver UMA ARTE CULINÁRIA. Só o homem faz do sexo um ato erótico. O que isso significa? Este é mais um desafio do curso. Mas para tanto é fundamental nos desfazermos de muitas idéias fixas e preconceitos tecidos pelas religiões e pela ciência ao longo dos séculos. Será que ainda temos ouvidos para a ESCUTA e apelo do mito e da Poiesis?

Você conhece o filme: Os cinco sentidos?

MODERNIDADE

Em relação aos períodos precedentes, a Modernidade significa uma mudança muito radical, porque muitas LINHAS DE FORÇA se fazem presentes na dinâmica histórica. Ora, uma ou várias linhas são normalmente escolhidas para caracterizar a modernidade. Isso não deixa de ser verdadeiro, mas parcial. Por quê? É que já pressupõem o real e o homem divido em campos de saber. Temos a construção do real e do homem através do saber. Não é à toa que o Iluminismo se deu como lema: SAPERE AUDE (OUSA SABER). O obscuro e não iluminado incomoda o homem moderno, que tudo quer conhecer à luz da razão, como se o real e o homem só fossem a luz e o real iluminado. Aos poucos e persistentemente o homem e o real se tornam sistema. Não podemos tentar compreender o homem e o real a partir desse mesmo real e homem já loteado em disciplinas, em campos de saber, onde o não-saber poético não tem vez, daí a tentativa de a modernidade fazer ( e fez) da poiesis um campo de saber ao lado dos outros campos, desde que revestido da chancela de verdadeiro fundado na ciência. É por isso que rejeitamos também esse campo de saber, porque não atende à poiesis, mas sim a ciência (estética). O questionamento tem de se localizar aí onde o real e o homem ainda não fazem parte do loteamento capitalista da ciência. Não que esse saber seja “errado” ou “inútil”. Temos de tomar cuidado com as exclusões. Dizemos, sim, que é incompleto e parcial.

Vamos enumerá-las como um modo de ver melhor os caminhos e descaminhos da modernidade e os impasses a que chegou, e as escolhas que vão definindo a pós-modernidade.

Linhas de força:

1 – Volta aos clássicos; 2 – Humanismo; 3 – A ciência; 4 – A utopia; 5 – A subjetividade; 6 – A Reforma; 7 – A Contra-reforma; 8 – Os descobrimentos; 9 – A tradição medieval; 10 – Novas invenções: imprensa, pólvora, bússula, caravela; 11 – Estados nacionais; 12 – As línguas nacionais; 13 – A razão crítica.

Em relação à pós-modernidade merece destaque especial a escrita transformada em Imprensa, porque vai operar o saber ao transformar a linguagem em linguagem instrumental. Será tratado isso posteriormente.

Octávio Paz no livro: A outra voz (cf. bibliografia) faz as seguintes observações:

“O que queremos dizer com esta palavra: modernidade? Quando começou? Alguns pensam que se iniciou com:

1 – Renascimento; 2 – Reforma; 3 – Descobrimento da América.

Outros imaginam que começou com o nascimentos dos:

1 – Estados nacionais; 2 – A instituição bancária; 3 – O nascimento do capitalismo mercantil; 4 – O surgimento da burguesia.

Uns poucos insistem em que o fator decisivo foi:

1 – A revolução científica; 2 – e filosófica do séc. SVIII, sem a qual n. teríamos nem técnica nem indústria...

A modernidade começa como uma:

1 – crítica da religião; 2 – da filosofia; 3 – da moral; 4 – do direito; - 5 – da história; 6 – da economia; 7 – da política.

A crítica é o seu traço diferencial, seu sinal de nascimento... Os conceitos e idéias cardeais da Idade Moderna:

1 – Progresso; 2 – evolução; 3 – liberdade; 4 – democracia; 5 – ciência; 6 – técnica – nasceram da crítica.

A crítica ... foi um método de exploração...:

1 – crítica do mundo, do presente e do passado; 2 – crítica das certezas e valores tradicionais; 3 – crítica das instituições e das crenças, o Trono e o Altar; 4 – crítica dos costumes, reflexão sobre as paixões, a sensibilidade e a sexualidade: Rousseau, Diderot, Laclos, Sade; 5 – crítica histórica de Gibbon e Montesquieu; 6 – descobrimento do outro: o chinês, o persa, o índio americano; 7 – mudanças de perspectiva na astronomia, geografia, física, biologia ...; 8 – a crítica encarna na história: a Revolução da Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e o movimento de Independência dos domínios americanos da Espanha e de Portugal.

A pós-modernidade nos coloca diversos problemas articulados em dois eixos: a afirmação das identidades e das diferenças. ( o outro e o Outro). Traz para cena o diálogo como consenso político e a questão radical, enfim, da Linguagem (Heidegger, Wittgenstein).

REAL

O grande problema que atravessa o conceito de real ao longo do percurso da cultura ocidental é a sua construção em cima do conceito de FUNDAMENTO. Contudo este conceito se origina com o advento do questionamento em torno da physis e das interpretações que daí se fizeram como arché ou princípio, apreendido e desenvolvido em diversos níveis. Isso se deu porque se fez uma leitura, depois de Platão e Aristóteles a partir do que eles propuseram como questão no sentido de certeza, restando a questão do que se entendia por esse fundamento. Mas uma leitura mais atenta e contextualizada histórica e semanticamente e sobretudo como tarefa de pensamento mostra que tal não se dá, pois permanece a ambigüidade fundamental tanto em Heráclito como em Parmênides. Nessa perspectiva o real se dá como identidade (um, hen) e diferenças (múltiplo, panta) tendo como medida não medinte nem fundante o Logos, como o diz bem Heráclito no fragmento 50: Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio concordar que tudo é um. Toda escuta se dá na confluência de silêncio e fala. Só podemos falar em fundamento se atentarmos para essa diversidade (fala/silêncio) se deixarmos eclodir a ESCUTA, que por sua vez n. é o fundamento porque ela n. ocorre sem a fala e o silêncio. É nessa dinâmica ambígua que pode e deve ser pensado e vivenciado o real. Daí há numerosas conseqüências. Não podemos falar de sentidos sem o não-sentido, de ordem sem o caos, do ser sem o não-ser, etc. Ora, apreender a construção do real e do homem é refletir e fazer dessas questões uma experiência poética e de pensamento. Assim sendo, não podemos falar de fundamento sem articular sempre a sua ambigüdidade, seja falando do real, seja falando do homem. Ou seja, não podemos colocar nem o real como fundamento do homem nem o homem como fundamento do real ( aqui ultrapassamos e questionamos o homem racional e como condição de todo conhecimento, fazendo do conhecimento algo ainda dentro de um horizonte maior que está além dele, ou seja, temos de pensar tanto o real como fundamento assim como o homem como fundamento a partir da própria ambig6uidade em que se dá a escuta como fala e silêncio). É nesse sentido que podemos pensar e apreender a memória como não sendo contínua, se assim ocorresse, essa continuidade seria o fundamento, ou seja, a memória como diferença é descontínua, mas como identidade é contínua senão também não poderíamos nunca falar e ESCUTAR a memória como memória, ou seja, ela, como o real e nele o homem é sempre ambíguo. Esta ambigüidade é a essência da POIESIS. Por isso o mito não trabalha nunca com fundamento, ele radicalmente, como a poiesis, de onde esta provém, ambígua. Assim sendo, não podemos nunca ler e interpretar e pensar a poiesis a partir do fundamento, elaborado e pensado pela filosofia como metafísica. A experiência de pensamento como Logos e a experiência de poiesis como mito pensam e manifestam o homem e o real sem fundamento e sempre ambiguamente. Isso não é uma falha, mas é a sua força, tanto do pensamento como da poiesis. A negação do fundento não nos deixa órfãos, mas livres para pensar e vivenciar poeticamente a construção do real e do homem.

Hoje em dia há a impressão que vivemos uma época de grande relativismo, da anulação do e dos fundamentos, uma época sem princípios. Nada mais enganador. Muito pelo contrário, tudo é regido por princípios, e o que é pior, excludentes, sem lugar para a ambigüidade e para as diferenças. Só há a afirmação das falsas diferenças, porque se afirmar as diferenças só o é possível dentro das possibilidades que a rede, o sistema nos propicia. Vivendo numa sociedade em rede não há um fundamento ou seja, um centro único a partir do qual achamos o nosso paradigma de realização, porque a rede tem seus nós, que deles faz os nós que somos ou podemos ser, ou seja, há uma aparente marca de diferença, pois nunca há uma referência única, esta referência muda a todo instante na rede, ou seja, a referência está, na rede, onde se inicia a operacionalização e efetivação da rede, dando a impressão de um círculo sem lugar marcado. Contudo, observemos bem: não há condição de possibilidade de construção do homem e da realidade fora da rede. Nesse sentido e dimensão, a rede é sempre o paradigma já previamente dado. A rede pode mudar, certo, mas não o real da rede. A rede nunca inclui o não-saber, embora não possa viver sem ele, pois se isso não ocorresse nem poderia haver a ampliação da rede e nem a articulação do saber da rede, na aparente afirmação de diferenças. Por isso mesmo a rede nunca pode ser excluída ou negada, o que podemos e devemos negar é a identidade da rede sem a sua contrapartida que é a diferença, o que está para além da rede. De novo aqui não podemos cair na tentação de substituir um pensamento excludente por outro pensamento excludente, ou seja, afirmar a não rede. Isso é fugir da afirmação de um fundamento tanto afirmativo, a rede existente, como de um fundamento negativo, o que está para além da rede. Ou seja, temos de nos localizar sempre na ESCUTA, onde ambiguamente se dá a fala (rede) e o silêncio (não-rede). ESCUTA é o nome essencial para a poiesis como OBRA. Por isso Heidegger diz que a arte é o pôr-se em obra da verdade, onde o real e o homem advêm como verdade e não como “coisa” ou objeto, mesmo querendo defender estes a partir de uma dicotomia de aparente co-habitação do significante e do significado, do denotativo e do conotativo, do que se nos dá e vemos e tocamos ou pensamos e o que, simbolicamente, está subentendido como fundamento. Ou seja, a idéia de fundamento se hispostasiou tão profundamente na cultura ocidental como princípio de construção do homem e do real que a tudo contamina. A não aceitação do fundamento de maneira alguma pode justificar o niilismo e o ceticismo e o relativismo, porque, como muito bem nos adverte Heráclito no fragmento 50, “é sábio concordar que tudo é um.” Não há princípio nem fundamento, mas o dois como unidade, donde se origina toda possibilidade de ESCUTA. É nessa mesma dimensão que podemos afirmar que o homem não é sem o outro, ou seja, o homem e o real é essencialmente um diálogo. Por isso a essência da poesia é o diálogo. A unidade diz sempre de uma ambigüidade onde com-cresce o homem e o real, o eu e o outro, o ser e o não-ser, o querer e o não-querer, os sentidos e o não-sentido, o amor e o ódio, o saber e o não-saber, o orgânico e o aórgico, cosmos e caos.

O HOMEM E O REAL

Quando se fala na construção do homem e do real nem sempre nos damos conta do que tudo isso implica, ou seja, em si, a relação e referência (não é a mesma coisa) entre real e homem não é evidente. O mais comum, hoje, é trafegarem, se moverem nossos conceitos num círculo vicioso. A partir da decisão metafísica e sobretudo a partir do Renascimento e mais ainda do Iluminismo, ou seja, dentro de um horizonte acionado pelas ilusões utopistas e pela crença racional no poder crítico, o homem se propõe a modificar, transformar, edificar, com-struir o real, sem se dar conta de que primeiro ele já interpretou o real a partir de uma construção do homem e tendo no horizonte esse homem, essa concepção de homem é que ele se propõe a construir o real, ou seja, o real que resultará da ação do homem é já o resultado de uma concepção do real a partir de uma concepção do homem dentro desse real, ou seja, o real mesmo não é questionado nem tematizado, pois o real a ser construído é um projeto utópico e crítico que parte do homem, ou seja, se reduz o real a uma concepção do homem dentro desse mesmo real, mesmo, não o real mesmo mas o do homem metafísico ocidental, num total desrespeito ao real, à sua realidade e envergadura e unidade. O resultado deste ciclo vicioso é o afastamento cada vez maior do homem em relação ao real, mergulhando num sistema de controle quase absoluto onde o real é uma representação e um simulacro, mas real na medida em que na manifestação do real como aparência, o que é aparente se institui como o que é. E o que falta nessa tensão aparência, representação, simulacro/ser? O não-ser. Para o sistema de representação em que se instituiu o real pós-moderno tudo que for escuridão, noite, caos, nada, morte, não-ser não faz parte do que é, do real. O sistema para tudo tem uma resposta, prevista na rede do sistema e na sociedade do conhecimento. Toda ação consiste em otimizar o sistema, a rede, o real virtual, enquanto virtual nos abre as portas do que nossos desejos previamente amestrados para desejar o que o sistema oferece ou pode oferecer desejam consumir, mas onde não se com-suma o que somos, mas só o que parecemos ser. Contudo, aqui devemos ter o cuidado de não cairmos na velha dicotomia metafísica onde ou somos integrados ou apocalípticos. Por mais que o sistema queira se impor há sempre a sombra, o inter (entre) de toda inter-disciplina, o dia (entre,através de) de todo diá-logo, a di-ferença de tudo que somos e em tudo que somos, o nada de uma falsa plenitude, porque excludente do que em todo querer se quer: ser e não-ser, do que em toda pergunta já se sabe, mas também não se sabe. Ou seja, o que o real virtual nos oferece não é para ser negado nem desprezado, como se fosse possível negar todo aparecer do real, mesmo quando ele nos advém como aparência, pois em todo aparecer e aparência sempre se faz presente, a graça e doação do presente: a doação do real ao homem e no homem como presença, o supremo presente de nossas vidas, a própria vida onde a dimensão e medida é a própria oferta do real como doação, a fala do silêncio em permanente convite à ESCUTA. Na fala do silêncio se dá o diá-logo da ESCUTA. Mas quem tem ouvidos para a escuta?

Como sair do ciclo vicioso? Entrando no círculo e não tentando criticá-lo de fora, até porque já estamos sempre dentro do círculo. Mas para tanto é necessário que saibamos em que horizonte nos movemos, ou seja, que fala escutamos. Temos ouvidos para o silêncio da música? Temos ouvidos para o canto das sereias?

O homem moderno tentou inutilmente silenciar o canto das sereias, oferecendo ao homem um aparente substituto para o seu destino. O resultado tem sido desastroso. Substituiu o destino que liberta, realiza e consuma pelo destino aparente de uma libertação aprisionante cada vez maior nas malhas da rede e da sociedade de conhecimento. O destino que a rede nos oferece é infinitamente mais pobre que o destino mítico. Esta é a questão da arte. Mas como a arte, enquanto vigor mítico, sempre foi o vigor de manifestação do que somos no que somos destinados a ser, ou seja, a nos apropriar do que nos é próprio, fazendo da necessidade destinada o ato maior de afirmação de libertação como sentido e verdade do real, ou seja, do que somos. A arte, por seu poder libertador, foi cooptada pelo ciclo vicioso em que se enredou o projeto de construção do homem e do real vigente na modernidade, como consumação do destino metafísico do homem ocidental, onde o pensamento do ser se traduz, aduz e conduz no esquecimento do mito e do pensamento, ou seja, no fundo e sempre no fechamento ao apelo de um agir aberto para a poesia e o pensamento.

A construção do homem e da realidade como projeto da modernidade tem muitos vetores, mas dois se tornam essenciais, como colunas estruturadoras em que se constrói a casa do homem moderno, uma casa onde se domestica a linguagem, se proclama a representação como realidade, a falsa libertação como afirmação do homem e o desterro do homem do seu sentido e verdade, ofuscado pelo projeto crítico e utópico de construção do homem e da realidade. Como um sobre-homem (Übermensch) vai destuindo o que não se encaixa no seu projeto crítico, na sua afirmação da verdade como certeza, povoando a terra, nossa mítica mãe terra, agora transformada em reserva ex-ploratória de energia aparentemente sempre à sua dis-posição para fazer dela o que bem entender, em fábricas e poluição, colhendo a destruição do meio ambiente, dos ecossistemas, de múltiplas espécies, de desastres ambientais, de novas e incontroláveis doenças, de muito saber e pouca, muito pouca sabedoria. Mais sutil há a rede e o conhecimento que move a rede. E em meio ao sem-sentido e niilismo de todo real tem a oferta abundante da significação. A linguagem domesticada deixa de ser a casa do ser e se torna a habitação da funcionalidade e da instrumentalidade, onde tudo é comunicação e mercadoria, sobretudo o próprio homem, para alimentar o sistema. O saber e as pesquisas retroalimentam sem parar o sistema, sem jamais se perguntar: mas que homem e real é esse?

E a arte?

Bem, a arte, para dizer o mínimo, é um caso de polícia, ou seja, é um caso de cooptação pelo sistema, para dar a aparente idéia de questionamento do sistema e de estar sempre à margem. Esquecida de suas origens míticas se torna o próprio mito moderno, onde não há mais nada mítico ou muito pouco, porque assim como o real se esvaziou no ciclo vicioso da construção do real e do homem da verdadeira medida tanto do homem como do real, a arte se tornou um jogo inútil de idéias/formas onde só se faz presente o rito como encenação do real. Essa é a história da arte, dos gêneros, dos estilos, das vanguardas, das estéticas, da arte como um saber ao lado de outros saberes, dominado e domesticado pelo saber cientista e cooptado pelo sistema utópico e crítico de construção do real e do homem na modernidade. Porque ao lado e concomitante ao real e homem moderno como produção da utopia e da crítica há o homem e o real da interpretação científica desse mesmo real, onde o real se reduz e impõe como ciência na medida em que a ciência é a teoria do real. Dentro deste real como ciência, onde a ciência é a teoria do real, como se caracterizam e fundam:

A – A utopia

B - A crítica

É necessário distinguir antes de entrar nesses temas um fato importante. As teorias em torno da arte, na modernidade, tendem a passar muito longe das obras de arte no que elas têm de essencial, pois se a ciência é a teoria do real, a arte mais que uma teoria é a manifestação do real, em que o real não se reduz a uma teoria.

A questão da construção do real e do homem passa assim por duas instâncias. O real construído pelo homem como ciência e o real manifestado pela arte. Esta distinção já coloca uma outra questão fundamental: a relação e referência do homem e do real. Para tanto é necessário é necessário introduzir uma outra questão que está como pressuposto tanto para a ciência como para a arte:

A essência da ação. Ao pensar esta questão é necessário pensar fundamentalmente a essência do humanismo. Isso é fundamental porque nessa dimensão é que se pode pensar o lugar da arte na construção do homem e do real, de que depende então todo projeto de Paidéia.

Mas não se pode pensar a essência da ação sem tematizar a questão fundamental da referência physis/linguagem. Não há como pensar a arte sem pensar a linguagem. Daí a outra questão: Ora pensar o lugar da arte como e a partir da linguagem como possibilidade de construção do real e do homem remete para uma outra questão:

A essência da identidade. A essência do agir como questão leva necessariamente à construção do homem como identidade. O que é a identidade?

Por sua vez a identidade se estrutura e constrói em torno de três vertentes:

- sentido

- verdade

- liberdade

Ora estas questões interligadas não podem ter apenas como fundo de pensamento a experiência do homem ocidental como pensamento na medida em que este traz necessariamente para cena a experiência do homem ocidental como mito. A experiência mítica do homem e do real nos lança nas dimensões mais radicais onde a experiência artística do homem e do real se dá em sua maior plenitude, mas de maneira alguma entendendo essa experiência artística do ponto de vista moderno pelo qual a arte se reduz a uma experiência estética.

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