15 agosto 2006

O tempo como experienciação poética






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Entre os gregos temos três tempos: kairos, aion, kronos. Estes três modos de nomear na e pela linguagem o tempo se movem na problemática fundamental do movimento. “O grego estanha o movimento. O movimento o assombra. Que é que isto quer dizer? Movimento em grego (kinesis) tem um sentido mais amplo que nas nossas línguas. Equivale a mudança ou variação. O que nós chamamos de movimento é apenas uma forma particular de kinesis. Distinguem-se quatro tipos de movimento:
1º. O movimento local (fora), a mudança de lugar;
2º. O movimento quantitativo, isto é, o aumento e a diminuição (auksesis kai ftisis);
3º. O movimento qualitativo ou alteração (alloiosis);
4º. O movimento substancial, isto é, a geração e a corrupção (gênesis kai ftorá).” (Marias, Julian. História da filosofia.3.e. Porto, Sousa & Almeida, 1973, p.34.)
Já a Idade Média vivencia outros tempos, são os tempos do Cristianismo. Cada época concretiza determinadas “formas” de tempo. A Idade Moderna foi plasmando três formas, embora predominem duas, de acordo com a visão antropocêntrica e rácio-científica: o tempo psicológico e cronológico. Já do ponto de vista da epistemologia e da ontologia se fala em tempo ontológico. Mas este é mais complexo, porque depende da matriz em que é lido e concebido. Esta divisão, do ponto de vista poético, é artificial. Nas obras não só as três “formas” convivem como ainda são aprofundadas, sobretudo a partir da grande questão da MEMÓRIA. Basta citar a obra de Proust, mas também comparece em outras obras como mostra o ensaio de W. Benjamin “O narrador”. A memória não comparece só nas obras poéticas, mas é também um tema filosófico. Por exemplo, no início do século há uma disputa entre Proust e Bergson sobre a questão da MEMÓRIA, onde se dão duas visões bem diferentes. Estas disputas têm como pano de fundo, no início do século, a tentativa de diferenciação entre as ciências naturais e as ciências humanas (ou do espírito). Estas trazem para cena a VIDA (Das Leben) e a consciência. É neste amplo cenário de debate sobre VIDA e CONSCIÊNCIA que Freud vai formular o seu conceito de inconsciente. Reparem a ligação entre Vida e inconsciente.
Contudo, as ciências da natureza, com suas conquistas técnicas, acabaram por influenciar a questão do tempo, sobretudo em nosso tempo. Assim como a técnica acaba por influenciar o tempo tanto psicológico como cronológico, a questão da memória (ligada ao tema da vida e da consciência) vai trazer para cena a temática muito importante da EXPERIÊNCIA. O importante a perceber é que não é a vida (ao menos no seu sentido bio-lógico) que nos abre as portas da experiência, mas sim a experiência é a porta pela qual a vida se faz presente. Há um outro conceito de vida entre os gregos, mas que foi obliterado pela racionalização, ou seja, pelo antropocentrismo. É o conceito de dzoé. Neste horizonte de dzoé, vida, experiência e linguagem comparecem como re-ferências do Ser em seu sentido e verdade, configuradas na “coisa”.
Mas tudo isto fica como pano de fundo para a questão de nosso tempo. A manipulação técnica do tempo, o que implica também a manipulação da vida, nos remete para uma constatação simples: a aceleração do tempo. Hoje tudo é muito rápido. Tecnicamente também se pode tornar mais acelerada a visão da vida (embora lentamente vista): e a vida nos aparece em documentários desabrochando lentamente, de tal maneira que podemos ver a transformação da forma em formas (este é um dos grandes temas de Aristóteles, nomeado através da potência e do ato: uma semente, matéria e forma, tem em si a potencialidade de outras formas, e é isso que vemos nos documentários). Mas o que tinha o seu tempo próprio, se manifesta aqui pela contração do tempo, possibilitando a visibilidade do desabrochar. Isto subverte completamente a relação e re-ferência vida/tempo, e mais: a sua experienciação. O importante é perceber a inter-ferência da técnica no tempo e as suas conseqüências na experienciação da vida. Há vídeo-clips que usam estas técnicas para poemas experimentais. Vi uma vez um do poeta português, radicado em São Paulo, Melo e Castro. É claro que o tempo do vídeo-clip é um outro tempo que precisa, contudo, do outro tempo, o tempo no qual se pode perceber e realizar o tempo acelerado ou contraído. Como denominar estes tempos? O importante aí, creio, não são as denominações, mas o fato de que há uma grande defasagem entre as vivências e as experiências. Hoje a técnica consegue acelerar tudo, dando até a impressão de que há uma plenitude de vivências. No entanto, podemos dizer que são vivências em qualidade e quantidade que o homem – e aí é que está o problema – não tem tempo de processar, não há o tempo da metabole: transformação das formas do ponto de vista do ser, do ente (ver a citação acima de Julian Marias a propósito do movimento). Assim, as vivências apontam para um tempo pós-moderno, atual, tecnológico, rápido, de muitas e variadas vivências, de velocidades enormes, de contatos e conhecimentos em quantidade e qualidades impensáveis até pouco tempo. Nosso tempo é um tempo acelerado. Parece uma vida com muitas vidas, de muitas vivências. Mas aí entra a questão ontológica e esta diz respeito diretamente ao tempo da experiência. O tempo da experiência é o tempo da metábole do movimento como substância. Ora, aí é que entra também o tempo da arte. Que tempo é esse? Confunde-se o tempo da arte com a arte dos tempos. E aí há um curto circuito. Uma não é compatível com a outra. Quando Heidegger centraliza a sua reflexão na arte como manifestação de mundo, fica claro que os tempos atuais são im-próprios para o tempo da arte, embora nunca se fale tanto da arte, haja tantas exposições como hoje. O problema não passa por aí. Nossa época vive o drama do tempo. Há uma ansiedade de vivências impulsionadas por uma sociedade de consumo e uma estetização completa dos produtos, como apelo ao consumo, como alma da propaganda, onde se dá o peitó (persuasão pelos sentidos, pela estética), mas também por meios técnicos que põem à disposição das pessoas possibilidades de vivências incontáveis. Mas a arte é o tempo das experiências, e, assim, entra diretamente em choque com o tempo das vivências. O problema não está, penso, nem na oferta de possibilidades, nem na arte, mas nas duas modalidades de tempo que vive nossa época. E a técnica é o núcleo da questão. Ela interfere até na aceleração da metabole das plantas através de produtos químicos. A técnica faz parte da arte, mas não pode interferir nas experiências, porque a experiência tem um fundo ético-poético-ontológico. Então trata-se de ver em nosso tempo como, em meio aos burburinhos, às pressas, às múltiplas ofertas de vivências e possibilidades estéticas, se pode resgatar o tempo poético, o tempo da experiência. Isto tudo, no fundo, pode remeter para o ensaio de Heidegger “A coisa” (Das Ding). No início faz alusão à proximidade e à distância, ou seja, a experiência vai se guiar por essas duas coordenadas. São as coordenadas poéticas. Elas também se fazem presentes nos produtos e vivências de nossa atual sociedade, mas o que faz a diferença é junto com elas a questão do tempo. E não podemos dizer que a experiência seria o tempo da duração, porque pode haver duração e não acontecer nada (ver acima a citação sobre movimento). Por isso penso que devemos juntar esses dois tempos: o da vivência e o da experiência, atentando para a experiência grega do tempo. Há ainda o tempo do Cristianismo, mas este tende já para um tempo religioso-metafísico. E por isso, talvez, tenhamos que chegar ao tempo do sagrado. Ora esse tempo é originário e, portanto, ele se faz presente hoje como sempre. Talvez o problema seja para nós hoje ver como o tempo da vivência se presentifica de uma tal maneira que tende a fazer crer que não há outro e que ele não é só o tempo da vivência, mas que a quantidade e intensidade das vivências são a experiência. É aí que entra a luta pelo tempo poético que é o verdadeiro tempo da experiência. Essa é a questão do nosso tempo. Lembro do livro de Rainer Maria Rilke – Correspondência ... em que mostra esse tempo da experiência diante dos quadros de Cézanne. Ele não via muitas exposições, mas ia ver os mesmos quadros todo dia, até que o kairos da experiência eclodiu. Esse é o tempo da poética da poiesis, um tempo nem acelerado nem lento, mas denso, manifestativo, poético: tempo como experienciação do que se é.

Um comentário:

Kátia Rose disse...

Gostei, Manuel, mas me pergunto se tudo não se dá num único e mesmo tempo (o da vivência e o da experiência)numa tensão em que o presentar-se de um o outro já está consigo na presentação do outro. Talvez seja melhor trazer o Heráclito pra conversa: O surgimento já tende ao encobrimento.
O tempo dá-se como o pólemos que move, comove e promove o homem fazendo-o vir a ser o que pode e deve ser?