25 dezembro 2015

Criação, caminho, corpo: Poética



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  Quando se trata de pensar alguma questão, a dificuldade inicial mais difícil não é pensá-la e deixá-la eclodir em sua força iluminante. O mais difícil é “... esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos ...” (CAIEIRO, 2004, 84), seja no processo da transmissão da tradição, gerando os hábitos de pensar já feitos e acabados como verdades indiscutíveis e não-pensadas, seja no próprio sistema de ensino, que se fundamenta na repetição exaustiva até fazer dos conceitos já solidificados e pétreos uma verdade evidente por si, formatando a mente dos jovens, tolhendo toda energia inovadora. É aí que o educar poético faz a diferença, pois exige o exercício do questionar dialogante como o verdadeiro aprender e ensinar.
 Certamente uma das ideias habituais mais arraigadas é criação.  Ela já faz parte de nós como a pele faz parte do nosso corpo, parece. Para um asiático isso não é tão evidente, pois parte de outras experienciações da realidade, do ser. Entre nós, ocidentais, a criação sempre é pensada a partir de uma ideia bem fixa de criador. Em virtude das teorias, ao longo do percurso histórico ocidental, há duas ideias paralelas, embora opostas, de criador: a ideia de um Deus Criador de tudo, vinda sobretudo do mito hebraico relatado no livro do Gênesis (teologia); e a ideia do artista criador a partir do fazer humano e sua razão subjetiva (epistemologia). Tudo isso desvia a atenção das verdadeiras questões que envolvem a criação, que implicam dialeticamente o criar, o agente criador e a obra.  Tanto num caso como no outro, a ideia de obra ou criação será sempre de Deus ou de um autor, no caso, o artista. O interessante nessa dupla ideia habitual é o fato de que se tende sempre a antropomorfizar Deus (entificação) ou a deificar o artista ou autor (poder criador). Tudo isso desvia o foco da questão do que seja, em essência, a criação. E são muitas as consequências negativas. Sobretudo aparece logo a grave questão da leitura da obra, porque já se parte de uma ideia fixa do que seja a obra, sem se atentar para o seu operar: É uma análise? É uma interpretação? É um diálogo? É uma experiência? É uma experienciação? A resposta não é fácil, pois exige que abandonemos as concepções habituais e estabelecidas, e as questionemos até chegarmos a um fundar aberto e livre. Neste horizonte, nenhuma resposta ao perguntar satisfaz, pois não dá conta da questão. Desse modo toda resposta a um perguntar é um recolocar a questão em outro nível. Por leitura não entendemos aí o ato de decodificar algo escrito. É muito mais. No simples ato de olhar já vigora um pré-ver e um pré-compreender, possibilidades de toda leitura. Isso é facilmente constatável quando, hoje, algo é mostrado para pessoas de diferentes culturas e todas elas olham e vêm essa mesma coisa de maneiras diferentes. E não apenas olham, geram-se valores e comportamentos diferentes. Como hoje em dia com a globalização, digital ou não, as obras de arte estão ao alcance de todos, o que elas provocam é um verdadeiro enigma. Isso não é negativo, é altamente positivo. Não há e nem haverá uma teoria, um modelo, que nos diga o que uma obra de arte quer dizer e provocar, pois obra não é jamais redutível a um objeto. A verdade científica objetiva tornou-se uma entre outras ficções ou imaginações.
  Outra tinta com que nos pintaram os sentidos é a separação nítida e funcional das diferentes disciplinas. Tendo em vista o avanço e a complexidade dos novos conhecimentos, isso é inevitável e até positivo. Por outro lado, é negativo, na medida em que se perde a visão e compreensão do todo. A parte só tem sentido na sua unidade com o todo. Do mesmo modo as artes: seu sentido exige a integração de todas naquela unidade de sentido que as funda. Nenhuma obra pode operar isoladamente, uma vez que ela é intrinsecamente unida e harmônica com as demais. E entre elas há uma profunda interligação. Na segmentação ou análise torna-se um corpo anatomicamente desmembrado, até diria esquartejado. A mera análise da forma não consegue fazer ver a unidade de sentido em seu todo e no todo, pois o conhecimento formal não pensa o que a funda: o ser. Fundada neste e por este, obra é presença. Porém, não se pode confundir jamais ser com criador ou deus ou homem. O que é o ser será sempre uma questão. E junto com a concepção orgânica e funcional da obra caminha a concepção do que seja o corpo, seja da obra, seja do ser humano. Falar em criação é falar do corpo humano e sua concepção. Portanto, obra e corpo constituem uma unidade indissolúvel. E aí já se faz uma observação necessária e essencial: não se podem reduzir nem corpo nem obra a conceitos formais, sejam eles variados ou não (quem me garante que este conceito ou forma agora é mais verdadeira e válida do que uma próxima que surgir ou de um outra mais antiga ou de teorias diferentes?). Disso decorre algo que acompanha o questionamento do que seja criação e corpo: os caminhos que nos põem em contato com eles e nos dão o seu acesso. Porém, esse acesso jamais é algo de fora que conduz a um outro algo que se nos opõe, que está diante de nós. Não. É já caminhar dentro e a partir do que se dá e nos desafia e questiona. É caminhar da parte para todo já dentro e a partir do todo que se faz presente nas partes enquanto obra/corpo. Isso muda radicalmente o que se compreende por obra e corpo.
  Uma palavra mais comum para caminho é método. Como é uma palavra cheia de tintas habituais, é melhor falarmos de caminhos, no plural, pois precisamos raspar as tintas que tal palavra já traz encruadas e gastas. Método já está tradicionalmente ligado a objeto. O caminho nunca pode vir de fora do agir do corpo e da obra. E, por isso, cada arte exige caminhos apropriados e dentro de cada arte cada obra, pensando sua poética, sem deixar de incluir as outras artes e as outras obras, no horizonte que a caminhada (leitura ou narrativa) descortina e ilumina. Acentue-se logo que obra não é objeto. No fundo, fundo mesmo, é corpo vivo. Quando raspamos as tintas dos hábitos e conceitos o que nos resta? Restam-nos as questões. Criação é questão. Obra é questão. Caminho é questão. Corpo é questão.
  E em que horizonte acontecem essas questões? É um horizonte que não pode ser restrito a uma cultura, seja ocidental, seja oriental, seja culta, seja popular, enfim, seja de que povo ou época for. E, nesse sentido, há adjetivos que precisam ser raspados com mais força e determinação: primitivo, instintivo, bárbaro, atrasado, supersticioso, mágico, pois são resultado de teorias já totalmente ultrapassadas e dicotômicas em relação às produções culturais de todas as épocas e povos. Com essas qualificações se perde o que seja o humano em seu corpo e obra. Pode haver qualquer produto cultural sem o dedo do humano? Impossível. Nenhum adjetivo tem a força de determinar uma criação, um caminho, um corpo, uma obra. Determinar quer dizer aqui fundar conhecimento, compreensão e sentido. E mais: valores. Adjetivos ou atributos acidentais são expedientes fáceis para deixar de pensar e tematizar as questões. E estas são a essência do corpo e da obra de arte. Tais questões acontecem sempre no horizonte de uma articulação e integração essenciais. Essa articulação e integração é o que desde sempre se denominou poética. Ela não pode ser reduzida a uma teoria, simplesmente porque ela acontece sempre na dinâmica de uma tripla questão: Qual é a referência que há: 1 - entre a experiência poética; 2 – e a experiência humana; 3- e a experiência de mundo no horizonte da realidade? Esse inter-relacionamento entre a criação poética, a experiência humana e o pensamento é o fundo em que acontecem as obras de arte e é no seu horizonte que o corpo chega a ser corpo, manifesta-se na sua corporeidade. O corpo enquanto obra poética passa a ser o lugar da circulação de energias criativas em contínua e permanente realização. Então se dá o sentido do viver na experienciação de ser, tendo como dinâmica de compreensão o sentido, a linguagem, a verdade da cultura/humano enquanto terra e mundo. O hábito positivista de tudo reduzir a algo que pode ser medido ou “tocado” conduz a uma incompreensão vital e radical do que seja energia: nela estão congregadas três dimensões indissociáveis: matéria (mãe, vida), força impulsionadora (tempo) e sentido (afeto, daí podermos falar em energia erótica). Nesta dimensão, a cultura chinesa – bem diferente da maioria das concepções ocidentais - concebe o corpo fazendo parte do universo, integrado e interligado pela ação de três energias: 1 - A energia que recebemos de nossos ancestrais; 2 -  A energia que adquirimos pelo ar e alimentos, que circula internamente; 3 - E a energia protetora, que circula mais externamente. Isso é cultivar experienciando-se. Isso é a essência da dança do universo, enfim, da dança musical, poética. E todo cultivo pressupõe que toda obra de arte ou corpo se integre nas contínuas e diferentes experienciações ou caminhos de realização, plenificação e iluminação na verdade do que se é e recebeu para ser. Portanto, para a Poética ou Criação, o mais importante é que ela se torne a experienciação criadora da condição humana. As três questões que a tudo regem e se fazem presentes em tudo independem de modelos, teorias, paradigmas, culturas, épocas, religiões, disciplinas, posições políticas etc. Todas estas as pressupõem. Elas podem gerar hábitos deformadores e excludentes. Falta-lhes então o caminho do diálogo de uma dialética aberta e libertadora, concreta, vital. São questões e enquanto questões elas são prévias a tudo isso. Questão não é conceito. Este gera os conhecimentos que fundamentam nossos hábitos e certezas de verdade. Já as questões acontecem na regência do pensar, pois nele vigora sempre a experienciação de uma verdade poético-manifestativa. Por quê? O que a palavra grega para experienciação nos diz e quer sempre dizer, embora os hábitos cotidianos e seus significados comunicativos encubram seu sentido profundo? A palavra portuguesa experiência e experienciação provêm da palavra grega: eks-peras, ou seja: eks: para fora, para o aberto e livre; -peras: limite, finitude. A palavra experiência tornou-se uma palavra técnica para indicar a atitude científica de comprovação objetiva dos conhecimentos do que se teoriza em relação à realidade. Ou então se reduz ao significado de qualquer vivência. Teoria diz aí uma certa visão e seu conhecimento que podem ser comprovados, isto é, medidos e calculados. Isso não se pode negar. Porém, o conhecimento de tal visão e suas experiências partem de um real estático e fora do tempo, quando, em verdade, ele não cessa de acontecer. Nenhum cálculo científico inclui o tempo em seu acontecer, impossível de redução a uma medição ou cálculo. Acontecer não é só mover-se, mas sobretudo deixar vigorar o sentido de ser, o grande esquecido nas concepções científicas e estéticas dos sistemas críticos vigentes. Não há como medir e calcular o sentido do tempo, pois então tempo é ser: ser e tempo. A palavra-chave aí é “redução”. Esta pode ser medida, não, porém, o tempo em seu acontecer de sentido, pois então este é energia ontológica, silêncio do sentido de sua voz, plenitude de movimento ou repouso. As três questões são referências obrigatórias e como elas, na nossa vida, em nosso educar, em nossos projetos, se relacionam com a ex-periência? O que aí se decide para cada ser humano, para cada cultura e para cada época? Quando a experiência se torna experienciação? O que ela tem a ver com verdade, sentido, linguagem, mundo, ético, poético? Na experienciação o ser humano se abre para uma escuta do que é e o impulsiona a ser. Nela ele não é sujeito-criador. Nem é objeto de conhecimento tanto a obra quanto o corpo. Nela, cada um age, mas na medida em que se deixa tomar pelo sentido do agir do ser, que não se pode jamais confundir com o fazer, restrito aos entes e suas relações e produções, dependente sempre de um sujeito. No fazer dá-se uma força de correlação entre sujeito e objeto, já teoricamente definidos. Ora, a realidade não pode ser reduzida a uma teoria. Se teoria é o que se vê, daquilo que vemos vemos muito pouco. E aquilo que não se vê em tudo que olhamos e aquilo que nem se dá a ver é muito, muito maior, pois a realidade é contínua acontecer. Nesse horizonte, toda experienciação nos remete para nossa finitude diante do que para nós é mistério infinito. “Para nós” diz aí: embora finitos somente nos experienciamos como finitos porque já vigoramos inauguralmente no não-finito. E deste é que nos falam nosso corpo e as obras de arte no que lhe é essencial. Em virtude disso, toda experienciação será sempre poética e irredutível a mera sensação estética. Por isso, nelas somente comparecem as questões. E criação e caminho se tornam um desafio poético integrado de realização infinita, pois é deste infinito que nos advém o sentido do que somos, ou seja, nosso corpo enquanto obra de arte, num permanente aprender e desaprender para tornar a aprender e desaprender... Se, de um lado, não nos fazemos a partir dos conhecimentos das experiências objetivas epistemológicas ou estéticas, por outro, somos essencialmente uma procura de ser o que já desde sempre somos. E tal procura exige de nós o agir poético, onde este diz pensar o que nos impulsiona como energia de ser e nos dá sentido, exigindo de nós um agir ético, ou seja, que se torna um apelo de linguagem. Neste horizonte, linguagem nada tem a ver com código, mas se torna a linguagem da unidade e sentido, no operar das energias que nos impulsionam continuamente a ser poeticamente: criação, caminho, corpo.

Bibliografia
CAIEIRO, Alberto / Fernando Pessoa. Poesia. 2. ed.  São Paulo: Cia. das Letras, 2004.