23 fevereiro 2017


A presença constante do sagrado

                                   Manuel Antônio de Castro – Prof. Emérito da UFRJ

            A dessacralização que domina hoje é devida a quê? Certamente muitos são os fatores. É no âmago dessa questão que a arte como questão se faz presente. Pode se falar em arte sem levar em consideração a questão do sagrado? Difícil, a não ser formalmente. Porém, ela se faz presente de um modo muito simples e especial, que se perdeu com o próprio distanciamento do sagrado, acontecido na dinâmica das transformações históricas. Transformações essas que dizem respeito à própria dinâmica de o próprio sagrado se destinar. Mas ele, por mais que esteja esquecido, nunca se distancia e torna ausente como tal. Pelo contrário, sem sua presença e sua proximidade, tudo perderia o sentido e o próprio vigor de realização do real, pois o sagrado é energia de sentido. E ele é próximo, tão próximo que até para sermos o que somos só podemos ser sendo essa proximidade. Porém, em tudo que fazemos temos a tendência, hoje e há muito tempo, de considerá-lo distante e inalcançável, como se ele fosse outro que não o vigor do que nos é próprio.

Imersos em meio aos entes, temos a tendência de querer sempre entificá-lo e torná-lo algo que se dê como manipulável e disponível à nossa vontade ou de alguns poucos escolhidos e especiais, dotados de seu poder extraordinário. E, no entanto, ele necessariamente vigora em cada um na intensidade da sua medida, dele e em quem ele vigora. Para e no sagrado é estranha e inadmissível a distinção de superior e inferior, bem como de masculino e feminino. E é então que ele se distancia cada vez mais, um distanciamento que consiste, em verdade, no seu esquecimento. O esquecimento do ser, do sentido do que somos, é o esquecimento do sagrado. Que é a arte hoje senão o testemunho pungente desse esquecimento? Assim se pensa. Mas não seria a verdadeira arte o testemunho vigoroso da presença constante do sagrado, pois não é a essência da arte o sagrado? Quanta obra de arte vazia, tentando, inutilmente, preencher esse esquecimento pelo jogo fútil e mirabolante das formas técnicas. Mas ainda serão essas obras obras de arte? Não serão meros jogos formais que fazem a alegria e fortuna dos donos de galerias? Em meio a tanta ganga é difícil localizar a pepita procurada.  Para isso muito contribuem os ritos em que vivemos mergulhados, sem o seu vigor e aquilo que os justifica e justificava e lhes dá e dava a própria razão de ser: o mítico.

            Há uma disputa entre o que é prático e racional e o mítico, entre o verdadeiro da funcionalidade dos ritos e sistemas de toda sorte, e o verdadeiro do mítico. Como se fossem opostos e não se fundassem numa dobra. Vivemos dessa maneira cada vez mais em situações conflitantes e opostas, em duplos e dicotomias. São essas dicotomias de valores em nossa vida cotidiana que cada vez mais nos afastam do sagrado, isto é, do mítico em seu vigorar de proximidade. Dividimos o tempo de nosso dia em tempos de trabalho funcional e em tempo, num dia da semana, para alguns poucos, de uma atenção para com o sagrado, como se ele tivesse que esperar essa atenção nossa e até como um favor nosso, bem expresso nos ritos de louvor e adoração. Mas são ritos que já puseram distante, muito distante de nosso viver cotidiano a presença e vigorar do sagrado. E, no entanto, ele é tão presente, o único presente; tão próximo, realmente o único próximo; tão pleno, e único de fato, que é o único que dá e pode dar o sentido em que consiste a completude. Pelo contrário, fora dessa presença e energia de sentido, achamos que essa plenitude nos advém da satisfação dos sentidos, muitas vezes só sensações sem sentido, e no exercício de nossa vontade em executar e realizar muitas tarefas e efeitos. São, então, os feitos de quem trabalha. Mas o que é, essencialmente, o trabalho? O próprio trabalho não perdeu o seu sentido originário e original? Ele se tornou muito mais algo que nos volta para fora do que somos, em múltiplas tarefas funcionais de execução de transformações da realidade, assegurando a satisfação de nossas necessidades, não da necessidade ética de ser, única realmente necessária, inevitavelmente necessária, porque dá sentido a tudo que fazemos. No entanto, o que nos é essencialmente necessário? Mais do que nunca, a medida da necessidade se tornou o consumo. Pode este ser a medida de viver e ser? Pode haver viver sem o motivo e sentido de existir? Consumo de quê? Qual o limite entre necessidade e consumo? E esse limite nos vem de que instância? Social? Histórica? Psicológica? Religiosa?, pois o religioso se tornou consumo como possibilidade de substituir o sagrado que já nos é tão próximo que o esquecemos e buscamos em práticas e ritos religiosos que o colocam distante. E eles teriam o poder de o trazer para nossa proximidade. Mas se ele já não vigora em nosso cotidiano e em tudo que fazemos, pensamos e sentimos, dificilmente deixamos que ele aconteça em nossas vidas e dê sentido e motivo de viver existindo. Então são desnecessárias as festas e os cultos? Não. Mas não são elas que nos trazem a proximidade do sagrado. Até podem nos trazer a proximidade, bem como também nos podem afastar, quando os ritos dessas festas são mais importantes do que aquilo que os justifica e lhes dá sentido. Festa e rito devem ser memória e comemoração. Com-memorar deve ser o pensar incessante do memorável como presença, em cada momento, numa participação e unidade total, completa, sempre presente, sempre doação. O memorável como necessidade é o sagrado. Na ânsia do ter, trocamos os muitos bens e penhores à nossa disposição ou passíveis de serem adquiridos, pelo único bem e penhor necessário. É uma troca que nunca nos satisfaz, pois o sagrado por nada pode ser trocado. Podemos trocar o que somos, nosso próprio, pelo próprio do outro? Não. Ou por bens? Não. Não consiste nisso a pergunta angustiante de Riobaldo: A “alma” pode ser vendida? Muito menos por bens que não nos incentivem na procura do bem, do uno, do belo, do verdadeiro/. E isso porque o mal, o diabo, não existe. Eles não podem nem devem substituí-lo. Então como podemos trocar o único necessário pelos bens que pretendem e dizem que nos vão satisfazer? Satis, do latim, significa: muito, pleno; e facere, do latim, significa: fazer. Nos fazer plenos nunca pode advir da quantidade, do muito ter, dos muitos bens que procuram satisfazer nossas necessidades, que não são nossas, mas que nos advêm de fora. Como conseguir a qualidade, o ético, o poético, o mítico, o sagrado? Não se pode conseguir o que já temos e nele vigoramos. Só podemos, isso sim, deixá-lo tomar posse de nós, afastando-nos das relações meramente entitativas, não as abandonando, mas não deixando que tomem conta do sentido de nosso agir e ser. E, no entanto, esse deixar é o mais difícil, o mais penoso. Por quê? Deveria ser o contrário. Deveria, em verdade, ser o mais plenificante, a única e verdadeira qualidade, a única e verdadeira necessidade. Deveria. Só somos pobres do que somos e ainda não temos, porque ainda não nos apropriamos do que nos é próprio. Por quê? Há sempre a tentação de achar soluções fáceis nas auto-ajudas, nas teorias e práticas salvadoras. E delas nos advém a insatisfação e muitas das vezes o desânimo, a falta de sentido de todo agir e procurar. Uma coisa é certa. O caminho é tão mais fácil quanto é mais difícil, não por ser difícil em-si, mas por acharmos que ele nos advém como um bem à nossa mão, aí pronto para ser adquirido, por nosso esforço e mérito. Tudo isso vem do fato de que o caminho é esse, temos certeza, e o procuramos. No entanto, não acontece. Vivemos, parece, sempre insatisfeitos e deprimidos, fora de nós. É que, de fato, a simplicidade da presença do sagrado nos afasta dele. Reconhecer essa presença exige uma renúncia difícil. O de acharmos que tudo depende de nossa vontade e iniciativa e que um investimento contínuo e até privações momentâneas são passos para um objetivo final, certo. Não é. É que o caminho do sagrado é sempre um caminho circular. Sai-se à sua procura e ele vai ser achado, eis o espanto, dentro de nós mesmos, junto e próximo ao que somos já desde o início, ou seja, em todo e qualquer passo e passagem de nossa caminhada. Renunciar ao “eu” para deixar vigorar o “sou” que todo eu é, é o único caminho de encontro da “medida” do eu de cada próprio. Essa medida é o sagrado e sua presença. Tal presença é tão plena e tão simples e tão afetiva e tão gratificante e tão presente, que ela nos envolve como o ar que respiramos, como as lembranças que nos sustentam e dizem nossas ligações familiares, afetivas e sociais. Não é simplesmente o sentido de tudo isso? Quando nos deixamos tomar por estas lembranças algo nos acontece que não é comum: parece que nos encontramos nelas como se no presente estivéssemos perdidos e extraviados, em “outra” realidade. E, no entanto, elas, as lembranças, estão dentro de nós, presentes, vivas, atuando, dando-nos sentido e nos ligando a uma memória que não é só nossa, é de todos que nos acompanham em nossa vida presente e passada. Essa memória é o sagrado, é a presença do sagrado. Portanto, não é algo passado e morto, é algo vivo e atuante. É a simplicidade do vigorar do sagrado. Memória se torna uma planície sem fim porque não tem começo nem altura nem fundamento. Nela nos afundamos, plenificando-nos. Não começa conosco. Pelo contrário, começamos nela. Presença, destino, memória, plenitude, tempo sem divisões, integração, sentido, eis o sagrado. Não somos mais algo ou alguém como um número numa família, somos a própria família, o próprio genos vigorando, dando sentido e se tornando a própria realidade. Não há a realidade, a família, e um eu. Há um todo único, íntegro, sem fendas, sem divisões, sem pressa, sem falta, sem contradições, sem desejos, sem vontades, sem oposições, sem futuro nem passado, pleno presente, enfim, um estar sendo porque é um ficar sendo sentido. Nada falta porque nada é demais nem de menos. Tudo vive e se dá na justa “medida” que é o sentido. A “medida” que nos mede e nos dá densidade: presença do sagrado. Esse é o sagrado que não pode ser esquecido, mas também não pode ser conquistado como se conquista um saber que não se tem e alguém nos pode dar. Há conquista, sim. Mas é uma conquista poética do que já em nós vigora. Há uma conquista, sim, mas que exige de nós a abertura e escuta do que em nós é o próprio de nós mesmos. E é o mistério em seu sentido. E quem se dispõe a ser o próprio e deixar o ser que cada um já é tomar o eu e deixá-lo vigorar plenificando-o? Não é uma plenificação que já esteja pronta e acabada, aí à disposição de quem se sacrifica e luta por ela. Não. É uma plenificação que está dentro de nós, mas tem que ser apropriada a cada segundo, a cada momento, a cada sorriso, a cada recebimento amoroso, a cada passo, a cada entrega, a cada disponibilidade para ser, simplesmente ser, sendo só ser, ficar sendo.

            Não é um isolamento solipsístico, não é um domínio nem do individual nem do social, nem do psicológico nem do epistemológico de qualquer sistema. É um vigorar da comunidade, da comum unidade, do sagrado. É um acontecer incessante e que tende para o que não sabemos, mas também não precisamos saber. Só precisamos ser, deixar vigorar a presença do sagrado. Sentido. Mistério.

O Genos e o sagrado

Essa presença da memória que a tudo e a todos envolve os romanos denominavam de uma maneira muito singular e própria: os deuses Lares/Penates. Mas não eram apenas os romanos. Eles se fazem presentes como sendo o sagrado em muitos povos. Esse esquecimento dos deuses Lares/Penates é que levou ao progressivo esquecimento do sagrado. Ao seu distanciamento, à substituição pelos ritos solenes, tão solenes quanto mais o sagrado se distanciava e mais e mais os ritos nos prometiam o que não podiam dar, porque nenhum rito pode dar se o que o motiva se faz ausente. O quê? O mítico, o sagrado. Os deuses Penates são a memória do Sagrado.

            Os deuses Lares/Penates moram a morada dos mortais, de cada família e de cada um dentro da família. Quando a morte visitava alguém e lhe dava uma plenitude de acabamento dentro da casa, da sua morada, então ele não morria, não se ia embora, não passava a uma outra vida. Continuava a sua vida na família, muitas vezes a quem eram oferecidas as oferendas como aquilo de que mais gostava. Ele estava e ficava ali presente. Era sendo a presença de todos os que nos antecederam. São os antepassados. Por outro lado, o nascimento trazia do mesmo modo a presença da memória, a sua continuidade e permanência, porque estava presente em cada um e vinha e ficava entre os que ali moravam. O futuro e o passado vivem no presente como a presença dos deuses Lares/Penates, do sagrado simplesmente. É a força e energia da presença do genos, do sagrado

            Quando hoje parece que o sagrado se ausentou e nos deserdou não é verdade. Precisamos de novo e sempre deixar falar e nos pormos em estado de escuta e vivência do sentido do sagrado em todos que estão à nossa volta e constituem a nossa família, isto é, o nosso genos. Este não somente é uma questão genética e sexual, é uma questão muito mais profunda, porque aí as palavras não deixam a linguagem falar, que fala em verdade nas palavras, mas não temos ouvidos para escutar a voz da linguagem. Esta é a presença do sagrado se dando como genos. Deixar os deuses Penates falarem e se tornaram presentes é deixar o genos ser genos, isto é, o sagrado ocupar o lugar que nunca perdeu, porque se ele se ausentasse não mais subsistiríamos em nosso ser. Deixar o sagrado retornar não é um voltar de algo ou de alguém que se ausentou e foi embora. Nós é que nos ausentamos e desertamos de nós mesmos, não do “eu”, que socialmente pensamos ser, mas do “sou” que todo “eu” para ser “eu” tem de ser. Só então há próprio (autopoiese). Quando o sou fala nele fala o sagrado. Então se fazem presentes e vigoram como proximidade os deuses Lares/Penates, o Genos, a Memória, o Sagrado.

            E como se dá o sinal dessa presença? Como se assinala seu vigorar? Como nos advém a sua proximidade, uma vez que somos finitos e não podemos suportar todo o fogo, toda a energia, toda a luminosidade de sua presença? Os ritos são isso e nada mais do que isso: a presença no limite do que não cabe em nenhum limite. Os ritos no tempo e como tempo, no espaço e como espaço, na memória e como memória, são as narrações míticas da presença do sagrado. São o nos deixarmos tomar pela sua presença e ação, uma ação sempre nova e inaugural a cada dia, a cada hora, a cada segundo e a cada momento. Nossa vida se dá, portanto, nessa tensão entre limite e não-limite, entre memória e esquecimento, entre luminosidade e escuridão, entre rito e mito, entre presença e ausência, entre proximidade e distância. Mas estas não são do sagrado. São de nossa condição de finitos. Quando superamos e esquecemos nossa finitude, então nos abrimos para a presença e vigorar do sagrado. Isso acontece quando deixamos que as obras de arte aconteçam. Elas nada mais são do que a presença e proximidade nos limites do não-limite e da plenitude. Isso acontece quando os deuses Lares/Penates tomam conta da casa e de suas dependências, de seu vazio, onde habitamos. Deixar a obra de arte operar é deixarmo-nos tomar por esse vazio e proximidades plenas. Só moramos junto aos deuses Lares/Penates quando nossa casa é a casa onde vigora o vazio que a plenifica de sentido, um sentido poético de estar e ficar acontecendo. Linguagem. Isso é o operar das obras de arte: manifestação do sentido de Ser. Por isso, elas não dependem de quem as realiza, mas do que na realização se faz presente: o sagrado; e as conduz e produz na sua condição de obras de arte. Porque nelas quem se doa doando-se-nos é o próprio sagrado, o sentido do destinar-se do Ser. A arte é simples como o sagrado é simples. É próxima como o sagrado é próximo. A arte é o próprio do que somos, é o próprio ser acontecendo em nós. Quando as obras de arte nos lançam na proximidade do que somos então sabemos que são obras de arte. E ver e vivenciar e presentificar as obras de arte se torna um rito e leitura do sagrado, um rito mítico plenificante que nos resgata de nosso distanciamento e esquecimento do que nos é mais próprio e único necessário: o sentido, o sagrado. Não é uma decisão pessoal nem o efeito de alguma decisão coletiva ou externa. É a tarefa de todos que participam e moram na casa dos deuses Lares/Penates. Linguagem. Operar da musicalidade. Casa não são os limites dos cômodos, é o sentido que nos acolhe em sua plenitude vazia e próxima. Tão próxima que até a somos. Somos a própria presença do sagrado. Somos doações dos deuses Lares/Penates, o vigorar no genos do Sagrado. Portanto, nesses nossos tempos de indigência do sagrado não é necessário ir procurá-lo longe nem em algo externo a nós. Pede-se apenas o deixarmos de olhar e não vermos para vendo olharmos a sua proximidade e vigor que sempre já nos toma e dá sentido. Para isso é necessário que as múltiplas e ricas manifestações artísticas se tornem o que são: manifestações da presença do sagrado. Por isso toda arte é sempre coletiva, mas o cultivá-la é o agir de cada um, é o capinar sozinho. É que no capinar se exerce a preparação do que vai ser e está sendo cultivado. O próprio que em cada um de nós já vigora. O capinar é o agir poético de cultivo do que como sagrado está pronto a eclodir. Tal eclosão é o advir do sagrado enquanto verdade e sentido. É na verdade eclodindo que se faz presente o sagrado como vigorar que não cessa de ficar sendo memória. Os deuses Lares/Penates são a Memória sempre nos convocando em nossas invocações a escutarmos a presença de sua Voz. Tal Voz é a fala das obras de arte: musicalidade. E nada mais. Mais nada. Nada: sagrado vigorando. Presença. Próprio. Ficar sendo. Linguagem. Sentido.

 

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Globalização: o sentido da técnica e a serenidade

            Manuel Antônio de Castro – Prof. Emérito da UFRJ

Em outubro de 1955, em Messkirsch, Heidegger pronunciou o discurso, posteriormente publicado com o título: Gelassenheit, isto é, Serenidade. Trata fundamentalmente da atitude e ação do homem frente à essência da técnica. Dele retiro a seguinte passagem:
 
Por que nos esquecemos de perguntar: em que assenta o facto de a técnica científica ter podido descobrir e libertar novas energias na natureza? Assenta no fato de estar em curso há alguns séculos uma reviravolta de todas as representações dominantes. O Homem é, assim, transposto para uma outra realidade. Esta revolução radical da visão de mundo é consumada na filosofia moderna. Daí resulta uma posição totalmente nova do Homem no mundo e em relação ao mundo (Heidegger, s/d, p. 18).

            São reflexões atualíssimas e essenciais para tentarmos compreender o que hoje e agora nos está acontecendo. Destacamos: “...está em curso ... uma reviravolta de todas as representações dominantes. O homem é, assim, transposto para outra realidade”.  E muitas representações dominantes há milênios, hoje estão desmoronando. E uma nova realidade se desenha e nos deixa perplexos. O que fazer? Como agirmos diante do que desmorona, revoluciona e não propõe uma nova utopia, uma nova ideologia salvacionista? Pelo contrário, predomina claramente a distopia, seja à esquerda, seja à direita, sem nenhuma nova utopia para substituí-la. Sem dúvida nenhuma, uma utopia sempre foi um sistema ideal, algo a ser atingido, tornando-se dominante e operante. Convido-os a ver o filme: O doador de memória, direção de Philip Noyce, para terem uma ideia disso. No entanto, a questão é mais profunda e o filme não se depara e nem reflete sobre a questão em questão. E a distopia está bem clara, hoje mais do que nunca, no declínio e desmonte do império comunista. E digo mais, quando Heidegger escreveu esse pequeno, mas essencial ensaio, ele estava perplexo e preocupado com a descoberta da energia atômica, mas não se fazia na época a menor ideia do que estava por vir: todo o poder da realidade digital e a criação da internet e das redes sociais. E neste momento as pesquisas em torno da internet das coisas. É como um abismo que nos aguarda. E a efetivação desse poder é o que nos assombra hoje e desafia, pois o ser humano é mais do que qualquer sistema, do que qualquer utopia coletiva. Simples: Sem o agir essencial do ser humano não há a menor possibilidade de qualquer utopia. É que a essência do agir não é social, é ontológica. Realmente, bem lá no fundo, a utopia concreta e poética é a essência do agir, pois agir em sua essência é pensar e não se reduz, sem o excluir, ao fazer. E aí está a encruzilhada em que fomos lançados hoje, aqui e agora.

1 – A globalização e o desmonte das representações
            Por isso podemos compreender melhor o que diz Heidegger, quando afirma que está em curso um desmonte total de todas as representações até então dominantes. É que os sistemas técnicos e os sistemas humanos, ao interagirem, provocam quatro grandes impactos:

1.1  - Hoje tudo é político.
Sendo tudo político, tudo é poder e o poder é tudo. É uma questão global que está para além das outras questões como, por exemplo, as culturais. Mas é um político sem os problemas do âmbito da Polis, pois hoje a polis é global, é planetária. Viver na cidade hoje é um grande desafio, com todas as vantagens de possível qualidade de vida, mas também de todo tipo de violência. Nesse vazio das utopias e dos valores morais, o sistema técnico substitui a antiga política. As ideologias entram num segundo plano e tendem a perder força. Há apenas uma ideologia: a do sistema e do sentido da técnica. Cada nação tem que se haver com seus problemas em relação a atraso, desenvolvimento e técnicas. Portanto, o que está bem no centro do terremoto é a questão do poder e da técnica. O que hoje, verdadeiramente, gera poder? E qual a relação do poder com a violência? Enfim, o que é poder? Com isso, o sistema representativo político inaugurado e fundamentado no exercício da razão, comum a todos os cidadãos como afirma a modernidade, está em profunda crise e necessidade de revisão. Poder é valor. Valor é poder? Quando há crise de valores é que há crise de poderes. E valor e poder são a essência da Lei. E se há crise política, isto é, de valores e de poderes, é a lei que está em crise. E, espero que compreendam, sem lei só resta a violência. É isto que está acontecendo hoje. Mas de quantas e quais Leis podemos falar?

1.2 - A questão da linguagem.
Há um enfraquecimento da linguagem e do seu poder criativo, pois ela foi reduzida ao meramente instrumental, comunicativo e funcional, como se fosse uma língua enquanto código apenas. Não há mais lugar para a escuta, o silêncio, o não-saber, a não-verdade e a não-ação. Todos querem falar ao mesmo tempo em rede, mas sem que haja o diálogo, transformando-se tudo num grande falatório. Diante disso, como manter a criatividade da língua materna em vista de toda e progressiva informatização e banalização da palavra?
E assim vivemos cada vez mais um mundo pobre de linguagem criativa: predominam siglas, logotipos, marcas, gírias, até parecem balbucios de crianças certas expressões veiculadas nas redes sociais. É que, por outro lado, têm todos esses usos a marca certa da transitoriedade, numa sucessão assustadora. Porém, a linguagem e seu poder de realização do ser humano foram uma das bases de inauguração e implantação do sistema político representativo moderno. Com a crise da linguagem, meramente comunicativa e vazia de ideias e manifestações do próprio, daquilo que faz do homem um ser humano, é impossível haver e vigorar o poder político com seus valores e promoção do humano, fundado na representação e nos representantes que, cada vez mais só representam a si e a seus interesses. Sem o império da linguagem essencial não há razão para nos guiar a todos, pois um dos pilares da modernidade foi: o que fundamenta tudo é a razão. É ela que diferencia o homem de todos os demais entes do universo. A crise mostra que não é bem assim. Claro que não pode haver exclusão da razão, mas ela não é tudo. O que falta então? Eis um motivo forte, quando a razão não é o único fundamento do poder, do social e do político, para se pensar a essência do poder, do valor e da Lei.  Enfim, da verdade. E os jornais já veiculam textos que falam do mundo pós-verdade.

1.3 - As identidades culturais.
Tudo isso ameaça as identidades culturais e pessoais conforme vêm sendo pensadas há séculos, pois também, com a técnica, há uma profunda transformação da memória, do tempo e da história. Cultura/linguagem/diálogo entram em crise, uma vez que predomina não o contraste das diferenças, mas a monotonia do banal, do consumo e da novidade. Mitos e ritos culturais milenares tornaram-se hoje, na oferta global de consumo de novidades, matéria para turismo. Vivemos, nesse sentido, queiramos ou não, a Sociedade do espetáculo, pois o que predomina hoje, de modo quase absoluto, é o império da imagem. Podem-se mandar fotografias de qualquer lugar do mundo, praticamente de modo instantâneo, através do whatsapp, além da sua possível divulgação no Facebook. E gratuitamente, desde que conectado a alguma rede. Podemos afirmar com certeza que vivemos a geração daqueles que olham tudo e não veem nada. Para isso há toda uma indústria de excursões para qualquer parte do mundo. E até há em cada país, para isso, espetáculos culturais já contratados e apresentados regularmente. Nada neles fala mais de identidade e memória cultural. As vestes rituais das culturas tornaram-se fantasias, máscaras de espetáculos. Tais ritos nada mais têm a ver com os mitos culturais que lhes deram origem e nem com a vida histórica e pessoal da cultura. É a perda da substância temporal e essencial das culturas e de seus membros, em sua memória e identidade. E assim as pessoas julgam que estão aproveitando a vida e tendo qualidade de vida. Quando não há uma roda viva de atividades e um repouso é necessário – às vezes até por causa de doenças e envelhecimento – chega a cobrança da conta do sentido da vida: em lugar da plenitude do aproveitar a vida, resta a dor, a depressão, o sofrimento e até o desespero, dominado que se está pela proximidade da morte. E dentro da mais profunda solidão, chega a hora e a vez de se perguntar, sem subterfúgios escapistas, pelo sentido da vida, ou seja, diante da Lei da morte, a cobrança do que se fez com a vida. A verdade do sistema global substitui a verdade plural da convivência das diferenças como diálogo. Mas só aparentemente há substituição. E só então se percebe, quando se percebe, como somos radicalmente sociais, mas como disse Heidegger: Mit-sein, ou seja, somos uns com os outros. Então isso significa que somos a convivência e afirmação de diferenças, de que o outro pode se tornar o espelho para eu chegar a me ver em maior complexidade e profundidade, ou seja, para descobrir que eu mesmo para chegar a ser o que sou, também tenho de me ver como uma identidade que é um próprio, pois não sou o outro nem um outro em geral, o mundo da caverna das imagens distorcidas geradas diante do que se afirma como sendo “a gente”, um sujeito indeterminado, geral, vazio, sem face, sem identidade: A “gente faz”, a “gente diz”, a “gente pensa” etc. etc. E mais, descubro que eu mesmo em minha identidade sou uma identidade em realização, em manifestação e que, portanto, sou um próprio poético, isto é, tenho de me descobrir no outro de mim mesmo e que ainda não sou, mas já recebi para ser. E assim pelo agir em sua essência e seu sentido me construir poeticamente.  E só nesse sentido e somente nesse há em cada próprio uma atuação e presença necessária do outro. A este jogo do eu sou em minha identidade e da necessária presença também do outro que não é o outro que eu sou, é que podemos denominar, adequadamente, o político, em sentido poético, e, portanto, ético. E, claro, se podemos falar: a – do outro que não sou eu, devemos também falar: b - do outro de mim mesmo, para que o eu e os outros não constituam uma soma sem sentido. Devemos dizer que uma identidade mais profunda e essencial os reúne e dá sentido num todo. Este todo, em primeira instância, é o fato de todos em nossas dimensões próprias e sociais sermos reunidos socialmente porque todos vivemos no mundo. Mais do que vivemos, somos no mundo.In der Welt sein”, diz Heidegger. Mas somente somos porque vigoramos no ser. Sem ser não há social, caso contrário este não passará de uma máscara ou soma de máscaras e fantasias. E então, em vista desta última instância, esta que a todas funda, temos de nos perguntar se quisermos achar o sentido do viver e conviver, do falar e do dialogar: O que é o ser?

1.4 -  A Paideia e a perda do mítico e da memória.
Todos sabemos que os mitos, sejam orais, sejam escritos, é que por seus rituais, festas cíclicas e participação de todos como fazendo parte de um povo, de uma cultura, de uma história, a história dessa cultura e povo e, mais, a própria memória, constituíram sempre o fundo histórico de identidade e permanência de qualquer cultura. Os ritos estão para os mitos assim como as línguas estão para a linguagem e sentido das próprias culturas. Ora, trata-se para cada uma assegurar uma continuidade e conservação dos mitos e sua memória no tempo e na história. E nesse processo todo há uma dimensão e um fato que normalmente não é pensado: o ciclo de vida e morte. E, dentro deste, os processos de conservação da memória. E esta conservação consiste em introduzir os jovens, através dos ritos, na memória e tempo inerente aos mitos. Este processo variou muito no tempo e de cultura e povo para cultura. Hoje, predomina, globalmente, uma denominação que provém da cultura grega: a paideia. Ela mesma passou a dominar os romanos que, politicamente, os dominaram. E então a paideia recebeu entre os romanos o nome: sistema educacional. E é ele ou a paideia que a globalização técnica substituiu levando-a à profunda e generalizada crise. Essas representações é que estão em crise profunda e têm de ser substituídas. E atinge especialmente a universidade, pois nesta se coloca o valor da paideia enquanto o desafio de pensar o universal, sem o qual não há como fundar o saber universitário num operar da verdade e do valor ético e poético. Temos de compreender que não se trata simplesmente de transmitir os conhecimentos cientificamente comprovados. É que fundando a paideia está uma concepção do ser humano em sua diferença ontológica. E até a denominação sistema é inadequada, pois ela deve ser tão dinâmica e aberta quanto é a vida de cada um em seu próprio. Recentemente este próprio também se passou a denominar: autopoiese. Aliás, uma denominação muito adequada e que diz todo o processo que é mais do que cultural e do que a denominação educação. E o grande pensador que foi Platão já a pensou de maneira simples e direta de uma maneira decisiva. Diz ele no início do Livro VII, do diálogo Politeia: Trata-se de passar da a-paideusia para a paideia. Mas aí ambas as palavras denominam o processo pelo qual tanto há o crescimento biológico da criança quanto o ontológico, pois paideia provém da palavra grega pais, paidos, que significa criança. Sem dúvida nenhuma, os sistemas educacionais desenvolvidos como representações ao longo da história, estão hoje em franca e evidente crise diante da predominância da técnica em sua essência e sentido. O mais difícil de perceber nesta crise, conforme a estamos tentando descrever, é o fato de que sempre se julgou a técnica como um meio operacional de todos os demais processos. E até se chegou a afirmar que, diante das transformações que os novos meios técnicos inauguravam, o meio era a mensagem. A questão é que não se trata de uma visão técnica da linguagem, pensada como código instrumental, ou seja, meio e mensagem. Isso ainda é sistema comunicativo. Trata-se de pensar a linguagem, mãe de todas as línguas, enquanto essência, sentido, verdade e mundo do ser humano.  E quem diz sentido e verdade, diz ético e poético da paideia. E aqui podemos voltar ao início deste tópico: a questão do político ou, em outras palavras, do social, não visto e reduzido ao mero conhecimento disciplinar das sociologias ultrapassadas pela revolução e representação técnica da realidade, da nova realidade, pois, impensadamente a sociologia e seus seguidores, sem pensarem, afirmaram que o social é que determina e fundamenta tudo. Porém pensemos: o social implica, mas não funda o poder ético-social-político e sua verdade. Sem Ser não há o social, o Mit-sein, o Ser-com, a comum-unidade.

2 - Poder, lei e violência
Para agora descermos mais claramente aos problemas pelos quais passamos hoje globalmente, temos de nos deter então em algo que precisa ser pensado: violência, lei e poder. E para compreendermos o nosso devido e essencial lugar neste todo temos de fazer, ainda que pequena, uma reflexão que traga para cada um uma apreensão do que em verdade cada um é e seu poder de decisão: necessidade, verdade, liberdade e vontade. E como muito bem compreenderam os pensadores e poetas gregos, isso significa pensar nosso destino. Como tais dimensões em que o ser humano se vê enleado se relacionam com o nosso destino e sua força e poder de Lei, aquele não social, mas de cada um?
            É muito famoso e conhecido de todos, em geral superficialmente, o Mito ou Alegoria da caverna, narrado no livro VII do diálogo Politeia, por Platão, logo depois da afirmação da apaideusia e da paideia, de que já falamos acima. Há uma ligação essencial entre a afirmação da paideia, como passar da a-paideusia para a paideia, e as duas partes de que se constitui o Mito/parábola da caverna. Este não pode ser lido e tomado literalmente. É, sem dúvida nenhuma, uma grande e essencial parábola. Portanto, exige de cada um uma interpretação que remeta para a própria compreensão do que é em si, bem como de sua vida na pólis, ou seja, interpretá-la na essência da verdade, conforme a pensavam os gregos na palavra por eles usada: a-letheia. Também há nela um jogo e uma metáfora parabólica essenciais, ou seja, trata-se de pensar o vigorar da verdade enquanto o vigorar do que somos. E no fundo podemos indicar o fundo deste jogo essencial como sendo um jogo de Eros e Thanatos. Sob seu domínio e poder e verdade e Lei vivemos nosso destino, já desde sempre dado e traçado. É nossa sina e sorte. E é nele – destino – que vigora a violência mais radical e essencial, frente à qual se coloca com pertinência o que é a liberdade em sua essência e o real poder de nossa vontade. E só então poderemos falar adequadamente de qualidade de vida.   
            A parábola Mito da caverna se divide em duas partes bem claras e se processa em quatro estágios ou paradas e passagens. Numa primeira parte, os seres humanos estão confinados, metaforicamente, numa “caverna”. Nela, a realidade social se apresenta de uma certa maneira a que a todos orienta e atinge. Sintomaticamente, o pensador Platão denomina esse mundo, mundo da escuridão, pois só por sombras as pessoas se entreolham e não se veem entre si e em si, e, claro, nem às coisas. Porém, há possibilidade de se sair dessa caverna e adentrar o mundo da luz. A luz é o princípio de tudo, ou seja, viver na luz, com a luz e para a luz, é adentrar e viver na dimensão ontológica do princípio de tudo. Por isso mesmo, do que cada um de nós é. E um dia um ser humano consegue ultrapassar os limites do cotidiano da caverna e adentrar o mundo da luz, onde o esperava uma trajetória de descobertas e auto-descoberta. Dessa maneira, o diálogo de Platão Politeia é um diálogo daquilo que é necessário a todos e atinge uma reflexão sobre a nossa vida em todas as dimensões acima apontadas. E que são necessárias para passar da apaideusia para a paideia. E me pergunto nesta altura: Será que a universidade vigora nessa paideia? Penso que não. Mas, então, não é essa a sua vocação? Sem dúvida. Porém, o seu caráter disciplinar, ideológico e técnico não precisam se deixar tomar pela luz e sair das sombras da caverna e seu pseudo-mundo utópico, quando o ocaso das ideologias é tão evidente e irreversível?
            Na segunda década do século XX, Heidegger escreveu um livro cuja estrutura e divisão lembra aquela do diálogo no livro VII da Politeia, se tomado em suas diretrizes fundamentais e não nos processos como tais: Ser e tempo. Nele também temos uma primeira parte que faz uma fenomenologia detalhada do ser humano na vida cotidiana. E uma segunda que nos remete para o que por detrás dessa fenomenologia já age e vigora, pois igualmente em sua obra sonda e pensa o sentido de ser. E nos coloca como seres mortais que encontram no pensar a morte o sentido do existir. E então todo o livro se tece e entretece em torno da existência, como sendo a nossa diferença ontológica. Todos os demais entes são, mas somente o ser humano existe. E o sentido do existir tem como horizonte e motivação de pensamento o sermos mortais. Todos os seres vivos fenecem, mas somente o ser humano, porque existe, morre e sabe que morre, e não apenas deixa de viver. Ele sabe que existir é descobrir-se como mortal. No final do diálogo Politeia, no Livro X, também o pensador Platão introduz a questão do sentido de viver e da vida após a morte, tratada através agora do Mito de Er.
            Após o sucesso mundial de sua obra Ser e tempo, Heidegger dá uma parada, o tempo necessário para ir ainda mais fundo. E nas publicações seguintes dá uma grande virada: é o segundo Heidegger. E qual a diferença: Se no primeiro e até ali suas reflexões o tinham levado à descoberta do existir do ser humano como diferença ontológica, na grande virada, o mais importante não é a existência, pois esta depende do sentido e do vigorar do ser. E desde então sua reflexão se voltou para o sentido do Ser, até porque descobrirá que Ser é Nada. Mas um Nada Criativo, de possibilidades de sentido para tudo, indo, portanto, além do campo do sendo, dos entes e da sua totalidade. O Ser é Nada de ente. Não criou uma dicotomia em relação ao primeiro Heidegger, mas adensou o seu pensamento e, com isso, deu novos horizontes ao existir do ser humano. Estes foram pensados de uma maneira densa na pequena obra de pensamento exemplar que é Carta sobre o humanismo. E é nela que sintetiza de uma maneira admirável a dobra em que se vê jogado o ser humano, seja enquanto à lei, seja enquanto à vontade e necessidade, seja enquanto à liberdade e ao destino.  Enfim, há a lei, vontade e liberdade inerentes ao ser humano enquanto ente. E há a Lei, a Necessidade e a Liberdade enquanto Ser, isto é, no horizonte do agir e sentido do Ser. A cada plano corresponde um poder e, sem dúvida nenhuma, a sua correspondente violência. Logo, nem todas as violências são iguais. Por isso, a questão da vontade e da liberdade não são assim radicalmente dependentes de uma subjetividade racional. Há causas, há motivos, no ser humano que vão além da racionalidade. Podemos lembrar a sentença de Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. E será que o essencial e decisivo em nossa vida não é desconhecido pela razão, sobretudo em sua versão racionalista moderna? Afinal, somos finitos e não-finitos. Em vista disso diz Heidegger:
 
O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade. O pensamento consuma esse deixar-se” (Heidegger, 1967, 25).

Fica bem claro que a razão se aplica e dirige a todas as nossas ações que acontecem no âmbito dos entes e que, portanto, têm como finalidade os entes. Ora, quando separadas estas ações da sua fonte: o sentido e verdade do Ser, é claro que estamos aqui, em nossas preocupações vivenciais no nosso cotidiano, igualmente no interior e mundo da caverna, onde em lugar da luz imperam as sombras. Afinal, esse é o nosso mundo do cotidiano com seus apelos e seduções e, ao mesmo tempo, violências e desencantos. É que nossas relações nele estão regidas pela lei que diz respeito a limites em seu alcance e não se funda no sentido de ser e do Ser. No império da Globalização mais do que nunca está em operação e visível esse mundo: é o mundo do consumo generalizado como aquele que pode nos satisfazer e nos dar qualidade de vida. Embora cada vez mais cresçam as formas de violência e insegurança. As contradições desse mundo cada vez se percebem mais.

3 – O corpo da mulher como objeto de consumo
Mas nesse mundo consumista da globalização há uma violência sobre a qual eu gostaria de chamar a atenção: contra o corpo da mulher em sua essência. Esta violência é muito bem tematizada em dois filmes de Stanley Kubrick: “Laranja mecânica” e “De olhos bem fechados”. Eles apenas evidenciam e fazem pensar sobre o que cotidianamente agride a mulher em seu corpo, pois neste mundo globalizado e de publicidade e consumo, ela se torna mero objeto a ser comprado e consumido. E por que o corpo da mulher tem esse apelo de consumo e compra? Sem dúvida nenhuma porque nela acontece o mistério da Beleza em sua essência. E a Beleza nos causa prazer porque ela é um Bem. E por isso se torna o objeto do desejo por excelência. Mas há a Beleza e o Bem ao nível dos entes e ao nível do Ser. Tal distinção, claro, para o consumo na globalização não interessa. E por isso ignora que, ao se tornar mero objeto de consumo, a mulher, em sua essência, perde todo o seu próprio e interioridade. Por outro lado, em geral, ela tende a ser inapelavelmente envolvida pelo glamour das passarelas, dos produtos das modas e das exaltações dos meios de comunicação. Na realidade e fundamentalmente seus corpos tornam-se produtos à venda para causarem somente e tão somente prazer a quem os consome e pode comprar. Porém, a Beleza e o Bem não passíveis de compra e venda. Mas, muitas vezes, tudo isso se faz sob o argumento da liberação do corpo da mulher. Claro, à liberação nem sempre corresponde a libertação. Mais do que nunca temos de lutar pela libertação da mulher como um todo, enfim, como aquilo que ela é: ser humano. E nesse sentido devemos lutar por um comportamento ético, deixando de lado o simplesmente moral e preconceituoso vigente há séculos, pois fundado este em “representações” já ultrapassadas pela globalização técnica e que, portanto, devem ser abandonadas, como diz Heidegger. Fique bem clara essa distinção.

4 – Eros e Thanatos e o sentido da vida
No horizonte destas relações nossa conceituação e ideia de: Lei, violência, necessidade, vontade, liberdade, sentido, verdade, é uma. Outra, bem outra, funda a essência de nosso agir. Trata-se então do que Heidegger denomina com precisão a re-ferência ao Ser em nosso agir: “O pensamento... se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a verdade” (Heidegger, 1967, p.25). Sem dúvida nenhuma, para além de nossa vontade e de nossa liberdade, há a Lei de nosso destino e seu poder e violência. Então, quando resolvemos aproveitar a vida podemos cair numa dicotomia mortal, violenta: tornarmo-nos vítimas das meras relações e escolhas entitativas, presentes em nosso mundo consumista. E os efeitos dessas escolhas mais cedo ou mais tarde vêm. Tardam, mas não falham. Todos temos a nossa hora e vez. Édipo que o diga. Este, quanto mais tentava fugir do destino mais o cumpria. E haverá outra saída? Não, pois se vivemos e somos tomados por Eros, o amor, em nossa vida, Thanatos, a Morte, faz com Eros uma dobra. Mas a Morte não é, por nosso destino de entes finitos e não-finitos, algo que nos advém num final sobre o qual não temos nenhum poder. Ela é a violência essencial da Lei, enunciada e anunciada desde que nascemos. Como nos diz o pouco conhecido “Mito de Midas”, quando ele pergunta a Sileno: “O que fazer para ser feliz?” E ele responde: “Para seres feliz, Mísero mortal, o melhor que podias ter feito era não ter nascido. Mas, uma vez que já nasceste, só te resta morrer” (Cf. Castro, 2011, p. 185). O poder de nossa vontade diante da Morte não existe. Por isso, em nossa sociedade do espetáculo e do consumo, até a Morte deve virar um produto embelezado. O morto é rapidamente oculto e retirado do nosso meio. Penso que todos viram o belíssimo filme “A partida” (Direção de Yojiro Takita). A Morte, por sua violência e inexorabilidade, é o que nos causa mais temor, uma vez que, por mais que tenhamos as verdades religiosas, a Morte é o inominável e o totalmente desconhecido. Ninguém até hoje voltou para nos relatar como é viver depois da morte. É algo totalmente ignorado. Mas não sei se perceberam a contradição dessa nossa angústia e preocupação, pois gera muito sofrimento, dor e até desespero. Não perguntamos pela Morte em nossa vida, mas pela Vida depois da Morte. Queremos sempre olhar e compreender e experienciar a Morte no horizonte da Vida, enfim, de entes limitados, pois mortais.  Por que não podemos e devemos experienciar a Vida no horizonte da Morte? Se atendermos apenas ao plano dos entes e suas relações, podemos ter a certeza de que quanto mais plena a satisfação nesse horizonte, mais plena será a colheita do vazio e do sem sentido. É que jamais poderemos chegar a ser pelo que nos satisfaz entitativamente. Se somos entes, somos entes do Ser, queiramos ou não. E Ele, só Ele, pode nos dar a plenitude que essencial e originariamente perseguimos e desejamos. Não há a libido sentiendi – o desejo do sentir -, sem a libido essendi – o desejo de Ser. Eis o paradoxo a que nos conduz a globalização e suas promessas de beleza, felicidade e plenitude. É um paradoxo que, afinal, tenta fugir da Lei de nosso destino e tem como consequência a geração de uma maior violência, uma vez que a Lei do destino é inexorável e nenhum poder é maior do que o dele.  
 
5 – O sentido de ser na globalização   
          Diante dessa realidade, o que fazer? No ensaio Serenidade Heidegger pensa também isso. E o que ele diz?

Seria insensato investir às cegas contra o mundo técnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma obra do diabo. Estamos dependentes dos objetos técnicos que até nos desafiam a um sempre crescente aperfeiçoamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objetos técnicos que nos tornamos seus escravos. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetos repousar em si mesmos como algo que não interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos, ao mesmo tempo, dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa essência (Wesen)... Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen) (Heidegger,  s/d, p. 23).
 
Sermos tomado pela serenidade é termos a coragem e persistência de nos deixarmos tomar pelo mistério em seu silêncio de vazio pleno e sentido.
            É aqui que se coloca com mais pertinência do que nunca o que a Poética defende há muito: em nossa vida aquilo que é essencial não pode vir de fora, de algo sobre o qual se fale e estabelece um conhecimento, essencialmente não nos fale e afete. Não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece. E isto vale também para a paixão e para pensarmos o amar. Temos de estar sempre inter-essados naquilo que fazemos e, sobretudo, pensamos, agimos. Temos de ser e estar inteiros em nosso agir e pensar essencial, em nossa realização ontológica e não apenas entitativa. E essa é a essência da de arte em suas obras, daí a sua perenidade. E dessa integração e inteireza de realização pode e deve nos advir a Beleza, porque então ela é inseparável dos outros atributos transcendentais: o Bem, a Unidade, o Próprio. Mas não é fácil, pois exige de cada um de nós uma caminhada fundada na maiêutica de Sócrates/Platão, que exige muito desprendimento de tudo que diz respeito às relações entitativas, ou seja, ao mero plano dos entes e a posse deles. Se tomarmos nossa vida como essa caminhada maiêutica e livre como realização, então a segunda parte do Mito/Parábola da caverna começará a fazer todo o sentido e nos libertará, sem dúvida nenhuma. O cume e plenitude será a plena iluminação e o sermos totalmente tomados pelo Bem, pois Bem é também Beleza, a Luz como princípio de tudo. É o que nos provocam a pensar os dois pensadores que figuram, com certeza, entre os maiores do Ocidente: Platão e Heidegger. 
            Na, com e diante da globalização, sejamos todos tomados pela Serenidade, para a plena realização nos novos tempos da globalização.    

           
Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Trad. Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
---------------------------. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1967.
CASTRO, Manuel Antônio de. “O mito de Midas da morte ou do ser feliz”. In: ---------.
Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011.


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