06 dezembro 2016


Mythos e genos

                                    Manuel Antônio de Castro

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            A “coisa” no mito se dá como “coisa” sem nenhuma interpretação. Ela articula e reúne Céu e Terra, Mortais e Imortais (cf. Heidegger: “A coisa”, 2002: 143). O grande problema em relação ao mito é que ele, originário de todas as origens, foi medido, identificado e representado pela metafísica, desdobrada em três grandes ramos, dos quais nos vem hoje o que os livros divulgam como sendo o mito, tornando-o vulgo e desfigurado, ficando, por isso mesmo, oculto e até desprezado o que é essencial, o próprio mito.

Esses três grandes ramos são, evidentemente: a filosofia, a teologia e a ciência. Em verdade elas nada têm a dizer sobre o mito, a não ser que seu discurso o silencia violentamente. De antemão, por seus próprios princípios e posições perante o mito já são contra, se opõem ao mito. Por essas vias e desvios, caminhos e descaminhos só colhemos e sabemos o que, de fato, o mito não é. Uma longa Noite de esquecimento e encobrimento pesa sobre o mito, mas ele não deixa de viger nas entrelinhas dos conceitos e doutrinas como “mítico”. Este nunca pode ser silenciado nem reprimido. É claro que o mito também se faz presente na poesia e artes, mas estas também sofrem o assédio dos três ramos do conhecimento, desfigurando o mito e a própria poesia-arte. Sobretudo através das correntes críticas e outras formas da teoria literátia. É isso que veremos em parte no decorrer deste ensaio. Para tanto é necessário uma sábia abertura de escuta crítico-questionante.       

O mito se desdobrou em três dimensões: kaos, kosmos e aletheia.

            Mas o que é o mito? Na realidade, quem pergunta isto já não pode nunca saber o que é o mito, porque já se colocou fora dele para perguntar por ele. O mito não pergunta, o mito é o mito. Que quer dizer a palavra mito? Do verbo mytheomai, significa simplesmente o eclodir, o se abrir como palavra, linguagem. O mito não é por isso um discurso narrativo sobre algo. O mito é a narração, o narrado e a alétheia (verdade) da narração e do narrado. Em grego temos, portanto, mythos e alétheia. São esses “os princípios” de tudo. Só que no mythos não há princípio, isto é, ele o princípio dele mesmo. A leitura do real a partir da procura de um princípio, seja ele qual for, já indica uma posição orgânica e metafísica. Brevemente: Em Hesíodo, quando narra a “gênese” dos deuses, ou Teo-gonia, o genos é o que se poderia chamar de “princípio”, mas não de fundamento. Só que este genos não é princípio porque ele se faz presente em todos os “momentos”, até porque não há “momentos” como cronologia. O genos só pode ser considerado princípio no estar sempre principiando. O genos é sempre um acontecer. Só nos podemos referir a ele como “princípio” porque está sempre principiando para além de toda carga genética e dos principiados.

“Antes” da primeira palavra do mythos já há o mythos, ou seja “o real” como linguagem, palavra que se abre (kaos) e manifesta (kosmos) ou aletheia (tensão entre kaos e kosmos).  Ou seja, linguagem/mythos, kaos/kosmos e aletheia/verdade  é “o uno diferente de si mesmo” (“hen diapheron eautoi”, segundo Hölderlin, Hiperion).  Este “uno diferente de si mesmo” recebe o “nome” de kaos/kosmos/aletheia. Kaos é o que em si se abre, se fende, doando-se como kosmos. Algo o “precede” e “sucede” (palavras impróprias porque já se trabalha com uma certa “experienciação” de “tempo” como “cronologia”): o impensado e o impensável, embora vigorando em tudo que se pensa ou pode pensar. Por isso o genos do kosmos/kaos se dá por cissiparidade. Isso é muito importante, porque mostra que mythos, kaos/kosmos e aletheia não são um princípio do outro. Não há princípio. Há o “uno diferente de si mesmo”. O mais importante a perceber é que qualquer diferente é ao mesmo tempo originário e origem, mas sem separação nem precedência de um sobre o outro, senão caímos aí já numa linearidade, baseada num fundamento primeiro. Não há primeiro, apenas identidade e diferença, diversidade e universidade. É isso o que significa cissiparidade. Quando hoje de qualquer organismo se isola uma célula e se dá origem a um novo organismo, ao mesmo tempo idêntico e diferente, não se faz, não se pensa e nem se diz nada diferente do que o mythos já desde sempre e originariamente proclamou em mythos, kaos, kosmos e alétheia.

Dois aspectos importantes: primeiro, não há primeiro ou princípio. Há, sim, o mistério insondável do que se abre e manifesta ocultando-se. Manifesta-se como mythos e kaos e kosmos e aletheia. E oculta-se como o “E” de mythos “E” kaos “E” kosmos “E” aletheia, onde esse “E” é a identidade e universalidade de todas as diferenças e diversidade. Eros “E” Thanatos “E” Noite “E” Dia “E” Physis “E” Logos já vigem nesse “E” insondável, que sempre se desvela “E” vela. Sendo muito importante perceber que nós também já vigoramos nele e somos irresistivelmente atraídos e seduzidos por ele. É  o vigorar de Eros, esse mito fundador e manifestador. Segundo: a questão do princípio é, pois, uma questão tão originária que qualquer resposta pretende ser sempre mais do que a questão. Só podemos ser arrastados pelo mistério e dizer: no princípio não há princípio. O mito vigora, portanto, em quatro grandes questões desdobradas e simultaneamente vigentes em múltiplos genos, onde cada um é a família em que, em si, se dá ao mesmo tempo o originário, a origem e o originado. Por isso o mythos não questiona. Os mitos e o mítico são experienciações sempre radicais do que se dá como mythos, kaos, kosmos e aletheia. O mito se experiencia então como mítico na poiesis e nas religiões, na medida em que são experienciações do sagrado. Estas não provêm numa linearidade, que não existe, do mito, mas do sagrado: Falar e experienciar o sagrado é possível: como mythos, poiesis, religião (em verdade: religiões), pensamento, metafísica e filosofia.

04 dezembro 2016





         Os três ser-tões de Grande sertão: veredas

 

Manuel Antônio de Castro

           

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Diz Rosa:
 
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença.

Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão.
 Do que não sei.
Um grande sertão!
                        Não sei.
                        Ninguém ainda não sabe.
                        Só umas raríssimas pessoas
                        - e só essas poucas veredas,
                        Veredazinhas.
O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p. 79).

 
A questão do Ser-tão
            Para apreender todo a profundidade do horizonte em que Rosa coloca a questão do Sertão, faço as seguintes considerações, a partir da própria obra Poética de Rosa. A arte, toda arte, é alimento para que cada um faça da sua vida uma obra de arte. Porém, há uma questão, que é o maior desafio em nossas vidas. Qual? Fazer da arte vida. É neste horizonte de fazer da arte vida que se coloca a questão radical para cada um de nós: realizar sua travessia.

Obra: autor e leitor
Um autor sem obra não é autor. Há uma tendência muito grande em nos prendermos à vida do autor e/ou às circunstâncias sociais, políticas e econômicas  em que sua obra nasceu. São dados importantes, mas, quando se trata de obra de arte, não são decisivos, pois o que importa na obra é o seu operar enquanto obra do tempo e da poiesis, essência e vigor da poesia. Ou seja: é o ser-tão e nossa travessia nele.  Nós não lemos o autor, o poeta, mas, sim, a obra e é ela que pode operar e não e jamais o autor ou leitor.

A linguagem
A obra nos chega e se faz real e presente a partir da linguagem e como fala.  Que linguagem? Que fala? Numa palestra em 1954, Heidegger disse: “A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde à linguagem”. Na medida em que a obra, toda obra poética, é feita de e como linguagem, a obra opera falando. Cabe ao autor e ao leitor escutar. A escuta da fala da linguagem é que constitui toda e qualquer narração e sua possível leitura. Há três falas: a do autor, enquanto escrita; a do leitor, enquanto leitura; e a fala da linguagem enquanto poiesis, que funda as duas anteriores. Poiesis é a essência vigorando, o poético. A originalidade de cada autor e da sua obra está na escuta da linguagem. Porém, cada autor, escutando, deve escrever numa determinada língua. E são tantas as línguas! A mãe-mulher também pode ser mãe de muitos filhos e nem por isso deixa de ser mulher e mãe. A linguagem é a mãe de todas as línguas.  

As questões
            O leitor que abre Grande sertão: veredas vê-se logo envolvido num emaranhado de questões, achando, quando se concentra na leitura, que caminha numa selva selvagem e estranha. Mas em nosso viver cotidiano como nos advêm as questões? Aparentemente quando começamos a perguntar. Mas não perguntamos para ter as questões. Pelo contrário. Só perguntamos na medida em que somos convocados pelas questões. Por nascermos e ao nascermos já somos jogados nas questões, de tal maneira que nós, como doação das questões, já vivermos sempre num entre: entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre eros e thanatos (morte). Grande sertão: veredas é a narrativa e ficção poética onde se tecem e entretecem as grandes questões do ser humano, pois estas é que nos levam, no viver a vida como vida experienciada, “a fazer maiores perguntas”, diz Rosa.

O método: o diálogo como caminho
            O método de leitura que propomos é o diálogo. Este é o caminho narrativo de Grande sertão: veredas. Todo ele se estrutura num diálogo paradoxal, onde e cada leitor é solicitado insistentemente a acompanhar todas as profundas reflexões do personagem-questão Riobaldo. O diálogo se desdobrando é a narrativa. O horizonte desta é o acontecer poético e seu percurso é o caminho da travessia. Na obra o leitor/ouvinte não fala, mas escuta. O quê? O que em todo diálogo fala e é. E a quem escuta? A voz da obra de arte:  o ser-tão e sua linguagem. O diálogo como escuta da linguagem é o poético falando e nele e por ele fazemos nossa travessia.  

A travessia 
A palavra travessia vem do verbo latino trans-verto, que significa o verter-se e o figurar-se no trans-correr do viver. A imagem-questão da travessia, como um ímã, atrai e congrega todas as demais questões, por isso começamos com ela. É que só na travessia o homem chega a ser o que recebeu para ser e o realiza como humano. Por isso, Grande sertão: veredas termina com uma certeza: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1968: 460). O que é a travessia? Esta é a questão para a qual convergem todas as indagações, todas as dúvidas, todas as procuras. E é a questão diretriz porque é nela que se dá a conhecer ou não o que é o ser humano. Perguntar pelo ser humano é perguntar pela travessia. Por isso, outro nome para travessia é existência, no seu sentido ontológico e não apenas epistemológico. Já do ponto de vista do sagrado e seus mitos é o rito, hoje também se nomeia performance. Mas o que faz o homem ser homem humano? Sem dúvida nenhuma, o ser. E então já estamos diante não apenas de uma, mas de duas grandes questões: o ser humano (a travessia) e o ser. Que ser? O Ser-tão. É nessa ambivalência que se congrega todo o percurso da obra como indagação e questionamento. E se o leitor notar bem, isso já nos foi indicado pelo título: Grande sertão: veredas. Veredas indicam pequenos riachos em meio ao ser-tão, ou seja, são os caminhos possíveis da travessia.

Os três ser-tões
            Na obra de Guimarães Rosa, o sertão é o lugar onde os seres humanos vivem sua sina ou destino, seus sofrimentos, paixões e alegrias. O sertão é o umbigo do mundo. Por isso Rosa não escreveu sobre o sertão, porque antes de tudo ele é um sertanejo, isto é, o homem do ser-tão. Daí que como seres humanos todos sermos ser-tanejos. É bom que o leitor se lembre de que esse escritor mineiro antes de se tornar um cidadão do mundo exerceu três profissões que o ajudaram a entender como o sertão é amplo, bonito, triste e verdadeiro, lugar de experienciação da vida e da morte. É que ele experienciou o sertão como médico do interior, na então Vila da Conquista, hoje Itaguara, interior de Itaúna. Disso lhe veio uma profunda experienciação do sofrimento e dor. Por conjuntura política, participou da revolução de trinta e dois, como médico do exército. Isso lhe deu uma profunda experienciação da proximidade da morte. Posteriormente, tornando-se diplomata, o destino o lançou na construção dos diálogos entre os povos, levando-o a uma profunda experienciação da consciência humana como diálogo de culturas e poderes. São essas três experienciações essenciais que se fazem presentes em Grande sertão: veredas e o lançaram no desafio permanente de ter coragem, sejam os obstáculos quais forem. São essas experienciações de medo e coragem, no destino de ser o que temos que ser que constituem as veredas e travessias dos sertões. Pois podemos falar, para tornar mais acessível aos leitores o seu diálogo com a obra, de três ser-tões.

O sertão geográfico
            Qualquer leitor brasileiro com um mínimo de formação geográfica identificará imediatamente a sua localização. Aliás, o próprio narrador faz alusão freqüente à sua localização, a lugarejos, vilas, cidades etc. que constam do mapa de Minas Gerais, do sul da Bahia, bem como dos campos-gerais de Goiás. Onde se localiza o sertão? Guimarães tem uma noção de sertão bem ampla e profunda. “Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então em toda parte não é dito sertão?... O sertão está em toda parte” (Rio de Janeiro: José Olympio, 6. e., 1968, p. 9). Todas as outras citações serão dessa mesma edição.
Neste mundo, a bela e simples “natureza” chama a atenção de Riobaldo com suas plantas e bichos. “Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado: o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, se dobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco” (p.24). Também os pássaros e animais comparecem com seus nomes populares. “Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite” (p. 24). Estes aspectos do sertão não são decorativos, eles envolvem o sertanejo em seu mundo e ser, levando-o à integração completa com a physis, palavra grega pobremente traduzida por natureza. Assim é que um passarinho e uma flor adquirem um significado especialmente sentimental e amoroso: “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhas, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinhalagem deles” (p. 111). Outros “elementos” do sertão têm uma grande importância como o vento, os rios e as veredas. Esse sertão natural e geográfico compõe o âmbito e palco onde os homens vivem e cumprem o seu destino.
Um levantamento minucioso dos nomes desses lugares trouxe, no entanto, grandes surpresas. Ao lado de numerosos nomes constantes nos mapas geográficos, outros são pura invenção do autor. Por isso, para além de um mundo “cientificamente geográfico”, há muito mais um “mundo poético”. Na sua obra o geográfico se torna uma geo-eco-poética, onde há uma confluência de Ser-tão e Terra. Trata-se então de um mundo mítico, imemorial, onde há uma profunda ligação de todos com a paisagem, as árvores, os pássaros, todos os animais, todas as plantas. É uma ligação mítico-poética de mundo onde todos se irmanam numa grande aventura da vida. É nesse sentido que temos em Grande sertão: veredas não tanto um espaço geográfico, mas um mundo mítico-poético. O personagem-questão que efetiva esta profunda ligação é Diadorim, na medida em que ele é a alma e corpo telúrico de Riobaldo.

O sertão como mundo-humano
            O Sertão é a morada do homem. Por isso o sertão humano se mostra difícil e mutável. “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 374); “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 59): “O sertão é sem lugar” (p. 268). “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (p. 121). Guimarães Rosa nos fala de um sertão histórico e político, e de um sertão como mundo poético. O histórico, quando se passam as andanças e aventuras de Riobaldo, é anterior à chegada do “progresso”. É o sertão onde os bandos de jagunços exerciam um poder que fugia à autoridade constituída e ao mesmo tempo protegiam e eram protegidos pelos grandes fazendeiros. Era um sertão onde a palavra e a honra eram cumpridos à risca, mas que, por outro lado, fugia à separação e à distinção estabelecida pelas leis do Estado. É o poder político em seu jogo original e originário.  Para o jagunço não havia a ordem e a desordem, o bem e o mal. Tanto que relata: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...” (p. 17). O sertão está muito ligado à condição do ser humano. Não é, pois, o sertão sócio-histórico e político o principal, mas trata-se da aventura humano do homem. Os habitantes do sertão, ou o sertão humano, não são apresentados a partir de preconceitos culturais, como matutos ou qualquer outra qualificação cultural. Pelo contrário, surpreende neles seres humanos que têm seu saber e sabor, seus ódios e seus amores, sua coragem e seu medo. Uma pesquisa meramente do social nada saberá falar deste sertão poético-humano. E é nesse horizonte que devemos dialogar com a obra de arte. Pois aí não se trata de qualquer mundo poético subjetivo, ou seja, de Guimarães Rosa, mas de todo leitor que atenda à provocação, como leitor atento, das falas de Riobaldo enquanto questões nossas.
            Mas o que é mundo? Não se trata aqui de querer qualificá-lo com qualquer adjetivo: regionalista, sertanejo, mineiro, ficcional, primitivo, latifundiário, progressista etc. etc. Será que ao acrescentarmos a mundo um adjetivo ou atributo, não partimos do pressuposto de que já sabemos o que é mundo? No entanto, não sabemos. É desse humano do homem como mundo que se constitui o segundo ser-tão, mas jamais separado do primeiro.

O sertão sagrado
Na medida em que o sertão é humano surge outra dimensão que marca sua presença de início ao fim: o sertão sagrado. Com este, um tema central: a existência e presença do diabo. O longo início do romance mostra como o sertão está povoado pelas muitas estórias em torno do diabo, de que são também testemunho os inumeráveis nomes a ele atribuídos. Em verdade, o nome somente sugere, uma vez que o diabo enquanto força de operar não pode ser nomeado. E em virtude disso, o mesmo e com mais razão se dá com o Ser-tão. Não há como nomeá-lo, substantivá-lo. Daí que Rosa diz: “Nome não dá, recebe. O que é para ser são as palavras”.  E assim surge a dúvida de com ele poder selar um pacto. Que poder advém no pacto? O poder do sagrado, que inclui e supera o do diabo, uma vez que é o poder do ser-tão. Para apreender o que é o poder do sagrado temos, pois de pensar o pacto. Em verdade, todo o Grande sertão: veredas está estruturado narrativamente em torno do pacto e da possibilidade de fazer um pacto ou não. Essa é uma questão antiga que aparece em outras obras poéticas. Lembremos apenas o Fausto de Goethe. Com uma importante observação. Não se trata em Rosa de copiar tais exemplos, mas de repensá-los em novas dimensões. E é em Rosa que se vai mais profundamente, indo além do apenas mítico-religioso e epistemológico-poético, para repensá-lo no plano do Ser, no caso, o Ser-tão e não apenas do diabo: “Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! (Gs: v, p. 355). E na hora do “pacto” o que acontece? Diz Riobaldo: “Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era ideia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo! ... e dele disse somentes – S ... – Sertão ... Sertão ... (Gs: v. p. 447-8). O encontro é com o Ser. Por isso, como disse na citação anterior, a revelação é o operar no vigorar do silêncio.  “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (Gs: v., p. 319).
Lembremos ainda que é nesse horizonte do pacto com o diabo que também numerosas mulheres foram acusadas de pacto com o diabo, passando a ser denominadas bruxas ou feiticeiras e, por isso, perseguidas e mortas. E tais fenômenos pelo racionalismo iluminista e materialista passaram a ser denominados superstições. Temos, portanto, como uma das questões centrais na modernidade iluminista e cientificista a questão do sagrado e seu poder. Este diferencia-se do poder da razão. Foi o poder do sagrado que sistematicamente foi sendo excluído e negado.  Porém, Rosa é um pensador e estrutura sua obra em torno da possibilidade ou não do pacto. Vejam como isso tem profundas implicações para o que, modernamente, se considera obra de arte ou não. Desse modo, sua obra está construída desde a primeira palavra até à última em torno da possibilidade efetiva ou não do pacto. E notem que nem o início nem o fim do romance começa com alguma palavra. Temos de estar atentos ao menor signo nele. Na realidade, começa com um travessão, seguido da palavra nonada, ou seja: “- No nada”. E termina com a lemniscata, o símbolo de infinito: Tudo.
Portanto, o pacto acontece entre o Nada e o Tudo. Não se trata mais do pacto com o diabo, mas com o sagrado. O que é o sagrado? Não podemos confundir o sagrado com o religioso. Ele é mais, porque é um mistério, o próprio Ser-tão. O homem ocidental experienciou de seis modos diferentes o sagrado: no mito, no religioso, na poesia, no místico, no pensamento, na metafísica. Essas seis facetas do sagrado percorrem profundamente Grande sertão: veredas.
A palavra diabo vem do grego e compõe do prefixo: diá- e do verbo ballein, ou seja: lançar através de. É uma força mediadora. O diabo é figura-questão do poder do sagrado, manifestando-se enquanto verbo ou parábola. De parábola formou-se palavra. Verbo é linguagem, sentido e verdade: presença. Palavra origina-se de parábola. Por isso, nesta trata-se da palavra verbal poética, indicando este adjetivo muito mais que uma simples qualidade de certas composições em versos. Aí poética diz o vigorar do agir. Agir é Ser. Sertão é agir. É o próprio ser-tão se manifestando poeticamente, é o vir à luz do ser no agir das obras da poesia, que fazem surgir os poetas. O agir é agir no vigorar da luz. Poiesis significa ação de sentido e verdade do iluminar, ou seja, do vigorar da luz do ser. Isso fica evidente no momento do pacto. O personagem-questão, ou seja, o próprio poeta invoca o diabo poder da poiesis - para que haja um pacto. E como ele o invoca, na hora decisiva? Não chama pelo diabo, mas ele in-voca Lúcifer. Esta é uma palavra latina que diz: aquele que é portador da luz. A luz emergindo do caos é o ser se fazendo mundo pelo poder do sagrado, ou seja, pelo que é o portador da sua luz. Sagrado aí diz o nada criativo, também denominado em alguns textos: caos originário.
Pelas múltiplas manifestações e experienciações possíveis do sagrado, isto é, do
Ser-tão, já podemos notar que o ser-humano tornando-se humano, ao se deixar atravessar pelo sagrado, nunca consegue dizer, isto é, manifestar o sagrado, só experienciá-lo. A tais experienciações é que Rosa denomina veredas, riachinhos, caminhos de vida. Daí o título: Grande sertão: veredas.