10 agosto 2006

A paixão de Cristo segundo Mel Gibson

“APaixão de Cristo” segundo Mel Gibson

Manuel Antônio de Castro

É um filme extraordinário. Os meios de comunicação fizeram dele algo ordinário. E, em geral, as pessoas tendem a repetir o que eles dizem. Pena. Não incentivam a uma visão mais atenta e nem convidam a pensar e a refletir. Daí poder se dizer deles que são ordinários. Não educam. Então no que diz respeito a este filme só disseram banalidades. As críticas que tenho lido prendem-se, em geral a aspectos secundários. Ou então criticam o que o filme não tratou, mas gostariam que tratasse. Porque não é assim, não é assado: esse seria o filme de quem critica e não o do Mel Gibson. Há dois problemas, em geral, nessas críticas, provindas de preconceitos. O primeiro é historiográfico: foi assim, não foi, houve essa violência, não houve. Os evangelhos não narram isso. Ora, a obra de arte cria a própria realidade e não representa nada. O que representa a obra de Proust? O que representa Grande sertão: veredas? Se representassem ficariam reduzidos a meros documentos ou reportagens da época. O poder manifestativo da obra de arte cria o próprio tempo, o próprio real, um real sempre em construção. A historiografia nada sabe nem tem a dizer sobre obras de arte. O outro é mais arraigado: o positivismo com sua secularização. A ciência moderna estabeleceu como único real o que ela apresenta como real e verdadeiro. Só há uma verdade: a científica. E então a paixão amorosa não é verdadeira? Nem por isso é científica. O extraordinário não é real para o positivismo. E aí qualquer dimensão do sagrado se torna ou ficção ou ilusão ou superstição. É a prepotência da ciência, hoje ultrapassada. A própria ciência não consegue entender a natureza, daí haver mais de uma teoria. Mas o ranço positivista e secular ainda perdura. Porém, o sagrado e o mistério se fazem presentes em toda obra de arte, se for grande.

Ora, justamente, o filme tem como centro o sagrado e o mistério, ligados ao próprio homem e sua dimensão sagrada.

É um filme extraordinário. Como poucos. Em geral, os filmes de cunho religioso não se abrem para o questionamento, porque presos a um sistema religioso. Este foge totalmente a essa regra.

Em termos de mergulho na cultura ocidental dá uma visão profunda e inovadora da figura do Cristo e seu significado para os muitos povos e culturas que adotaram e experienciaram e experienciam a possível boa-nova de Jesus, que transformada em sistema levou povos e culturas à morte violenta e à destruição. Mas não culpemos Cristo por isso. É o que nos quer fazer ver Mel Gibson e seu A paixão de Cristo.

Vamos logo ao aspecto mais criticado: a violência “exagerada”. O diretor põe a mão nas chagas das contradições humanas e isso choca. Ficam com saudades daquele Cristo doce e suave, cheio de luzes e auras, de choros patéticos para atingir a sensibilidade dos espectadores. Nada disso acontece no presente filme. A violência deve ser vista no todo do filme e não isoladamente. Essa violência precisa ser vista também não como uma representação da violência que romanos e judeus praticaram num tempo remoto, o tempo de Jesus. Isso seria banalizar o real sentido da figura do Cristo. Inteligentemente, o diretor faz uma leitura da violência que não aconteceu no passado, mas acontece hoje. Senão Cristo nada mais seria que uma figura histórica que sofreu muito e deve ser adorado como salvador e pouco ou nada mais tem a dizer a nossa época. Não. A violência de que trata o filme é a violência que hoje e como sempre se pratica para com todo e qualquer irmão de Cristo, para com todo e qualquer homem em qualquer época e lugar. A violência do filme nada mais faz do que nos lembrar de que estamos continuamente praticando aquela violência, aqueles sofrimentos. O sofrimento dos palestinos, dos israelenses, dos iraquianos, dos espanhóis e dos americanos mortos nos atentados é menor? É menor a violência do sistema para com os marginalizados, os pobres, os excluídos, as populações civis nas guerras recentes do Afeganistão e da Bósnia e outras? Certamente não. Onde então o exagero?

Cristo como que chamou a si toda violência, a violência de todos e de todos os tempos. Ele é um símbolo das contradições humanas. E nisso está o seu poder simbólico humano e sagrado. Simbólico no sentido da epifania do sagrado e do extraordinário na vida dos homens pelo qual se tornam homens. Ele é uma figura mítica atual e extraordinária, porque nele se concentra todo sofrimento humano, mas também a sua contrapartida: a certeza de que esse sofrimento é o terreno fértil de uma nova vida, do renascimento, de uma ressurreição que pode acontecer a cada novo dia, com cada ser humano. E até nisso o filme é genial.

Mas antes de tratarmos disso, vejamos outra banalidade que os meios de comunicação tomaram como importante, desviando a atenção do que é essencial. É a questão: os judeus mataram Jesus ou não? É uma falsa questão. Se se caísse no absurdo de dizer sim, teríamos o paradoxo de que Maria, sua mãe, judia, os discípulos, judeus, Maria Madalena, judia, e tantos outros judeus que não estavam ali e eram amigos de Jesus, judeu, mataram Jesus. Um absurdo. Que a cúpula religiosa judaica planejou e executou a prisão de Jesus e fez com que Pôncio Pilatos, tão-somente um representante dos romanos, decretasse a sua morte isso é evidente. O filme nada esconde nem tem porque esconder. As ações de um grupo dominante do sistema não podem ser estendidas a todo um povo, que não foi consultado. Eles não agiram em nome do povo judeu, mas em nome próprio. Isso fica evidente no filme e mais evidente quando um dos membros da cúpula dos sacerdotes se põe contra os demais e se afasta. Nem toda a cúpula do sistema esteve a favor dessas ações violentas e injustas. Como imputar então essa morte aos judeus? Na realidade, o povo judeu foi a primeira vítima das ações insanas da sua cúpula dirigente. A História está cheia desses exemplos. Em todos os povos.

Para penetramos nos múltiplos sentidos do filme, devemos ter em mente em primeiro lugar que Mel Gibson não se propôs a contar a vida, morte e ressurreição de Cristo numa seqüência linear e historiográfica, com princípio, meio e fim, como é banalmente comum. O seu filme é genial porque se concentra numa profunda reflexão sobre o sentido da vida e morte de Cristo e de sua presença mítica, poética e histórica. Nesse sentido ele nos leva para o mistério da presença do sagrado no humano, transfigurando-o e dando-lhe (-nos) um sentido extraordinário. E isso só é possível com paradoxos. Sendo o maior deles a reunião numa só criatura das mais profundas dimensões do humano e do sagrado. É esse o núcleo forte do filme. Isso solicita reflexão e abertura de escuta diante da figura excepcional de Cristo. É muito fácil cair numa dicotomia excludente pela qual se vê em Cristo ou o homem ou o deus. Ou isto ou aquilo. Ele é muito mais: ele é o mistério vivo e insondável. E é isso que o filme nos propõe para reflexão. Por isso mesmo é um filme trágico. Mas então quando chamamos para cena as figuras trágicas tradicionais aí é que se destaca toda grandeza da figura e sentido de Cristo. A falsa opção humano ou divino esconde todo vigor e todo sentido desse símbolo mítico vivo e atuante em nosso e em todo momento histórico, e de busca de redenção e elevação do humano, da própria construção poética do homem e do real.

A dramatização desse grande paradoxo é que faz desse filme algo único e extraordinário em relação às mais diferentes abordagens anteriores sobre o que ele significou e significa ainda hoje. É um filme denso e concentrado. Ele se passa, como nas tragédias, no decorrer das últimas vinte e quatro horas da vida de Cristo. Já nisso o filme é inovador. E um filme profundamente humano que aponta para a dignidade e para o extraordinário do homem. Mostra o homem em sua liminaridade ambígua, pela qual, ao mesmo tempo se move no que há de mais denso e real no homem: a dor, o medo, o suar sangue, a angústia e o apelo do sagrado pelo qual tudo se transfigura. Essa transfiguração é a difícil e trágica ascese da conquista da vida pela morte. Essa é a experienciação mais radical do homem em sua dimensão sagrada. Essa é a questão maior do filme: a tensão de eros/thanatos, vida/morte. E que há de maior em nossa vida, na vida de cada um, do que essa experienciação pela qual realizamos ou não o que somos. O caminho da vida à morte é o caminho da morte à vida.

Por isso o filme começa num momento altamente dramático: no horto das oliveiras, prestes a ser traído e preso. É o anúncio da morte. E sua sangue. Chegou a sua hora e vez. É o início do caminho em direção à morte. Nesse caminho e caminhada se dará a realização do paradoxo: a morte que se torna vida. Como nos diz o fim do filme, quando Cristo aparece ressuscitado, mostrando que morrer é preparar a ressurreição. É uma cena simples e discreta: nem aparece o corpo inteiro, glorioso e cheio de aura como é costume. Não. Como falar ainda de aura em tempos indigentes e superficiais e de banais sensações estéticas como o nosso? E nisso, de novo, o filme é genial. O que aparece? A mão de Cristo se movendo, mas na qual estão os sinais vivos da crucifixão: a chaga já curada feita pelos pregos na mão, no Cristo ressuscitado. Esta mão simples é o testemunho vivo da morte e ressurreição. Por que esta discrição em relação á ressurreição? Por que nada daquelas figuras diáfanas e iluminadas já tradicionais? Ele não cai nessa simplificação e banalidade. Seria desviar a atenção do espectador e de todo ser humano de sua verdadeira condição. A ressurreição de Cristo só tem importância se implica a ressurreição de cada um, ontem, hoje, amanhã. Agora. Como Cristo fez isso? Como isso é tematizado no filme? Em relação às visões tradicionais isso é um questionamento profundo. Ele não banaliza o sagrado com falsas auras. Mas, de novo, não nos podemos deixar levar por superficialidades e idéias preconcebidas e interpretações estereotipadas e banais. Essas figuras de Cristo tão brilhantes nos alienam numa idéia e imagem que não fala para cada um de nós em nosso cotidiano e em nosso interior mais íntimo, onde se dá a vida como experiencação da morte não como fim, mas como ressurreição. Quem não ressurge a cada dia, a cada hora, jamais um dia irá ressurgir. E é isso o que o filme nos diz. Certamente todos os que já estão alienados e deformados por lugares comuns que nada têm a ver com a vida dura e ascética do cotidiano, gostariam de ver um Cristo glorioso, brilhante, subindo aos céus, não se sabe para onde, para que céus. O filme desfaz essas idéias alienantes e nos põe em contato com nossa condição real e cotidiana: a de que viver é transfigurar-se pelo sentido do sofrimento e da morte.

Que ressurreição é então essa? Sobre o que não se dev e nem nossa língua pode falar o melhor é calar-se para que o silêncio fale. E sobre o que não se pode falar senão experienciar? Sobre o mistério, sobre o mistério da ressurreição. E por isso o filme cala. Quando se faz da ressurreição uma imagem, substitui-se a ressurreição pela imagem, desfazendo o mistério. O filme prefere calar-se. Aí o mistério da ressurreição pode invadir-nos e transfigurar-nos pela voz e vigor do silêncio.

Mas essa cena simples, densa, revolucionária não poderia acontecer se não estivesse interligada com o todo do filme, com a densidade e profundidade do filme, uma verdadeira obra de arte, uma verdadeira obra do sagrado e sobre o sagrado, descendo, portanto ao âmago do humano, onde ele se transfigura pela epifania do sagrado, redimensionando e dando sentido ao limite de toda liminaridade humana. Esse final denso e brilhante é preparado pela ação central do filme. E aí é que se dá a maior criatividade.

Os críticos e espectadores, acostumados a ver uma história linear, em que a vida de Cristo se dá numa sucessão de cenas e fatos que se coroa na crucifixão e ressurreição são surpreendidos por uma inovação radical. É essa inovação que não é percebida. O filme narra os últimos momentos da vida de Cristo: a sua presença no horto das oliveiras, a traição de Judas, a sua prisão, interrogatório e julgamento, contra todo direito e costume, feito à noite, o encaminhamento no manhã seguinte às autoridades romanas, uma vez que não o podiam condenar à morte, o julgamento dúbio e injusto, a flagelação e, finalmente, a condenação à morte e a caminhada para o calvário, onde será crucificado. Se o filme narrasse só isso estaria repetindo o que já se fez centenas de vezes e cairia numa banalidade gratuita. É nessa armadilha que os maus críticos e os espectadores desavisados caíram. Ficaria reduzido à violência e escárnios humanos.

Todo o filme está constituído e tecido na presença dessa violência tanto interior como exterior. Começa com a tremenda solidão no horto, os discípulos dormindo, e, pressentindo que seu kairos (termo grego que diz momento oportuno, de plenificação) chegou, o homem-Jesus lançado na maior de todas as angústias e solidões: só, abandonado, traído, busca na oração, no sagrado a força para o enfrentamento da dor e da violência, e para a realização do seu sentido e transfiguração humana, vigor e vigência de toda transfiguração humana. Porque se não fosse a dor e violência de todo homem, essa dor, violência e solidão não teria sentido. Nesse momento Cristo é todos os homens em todos os tempos. Ele é cada um de nós. É a caminhada de todos os homens e também a possibilidade de encontro da dignidade e libertação de todos que ele realiza.

Mas a seqüência narrativa tradicional do que ocorre depois da prisão no horto não teria maior significado e sentido se não houvesse uma outra seqüência narrativa, a que não se presta atenção. E é ela que dá sentido a toda violência e à morte. Há contraponto entre esses últimos momentos dramáticos e as cenas intercaladas que precederam esse momento final e que lhe dão sentido. São as falas e cenas da vida anterior de Cristo, contracenando com as cenas de violência. E isso é que é essencial. A violência não é gratuita nem encontra explicação em si. Ela tem de ser lida e apreendida nessa outra narração, nessas outras ações. Na reunião e conjunção das duas narrativas. Elas foram tiradas de diferentes passagens dos evangelhos. Uma ou outra ação e cena é que é “inventada” e introduzida pelo diretor, tendo em vista a sua leitura criativa da vida, morte e ressurreição de Cristo. Destaca sobretudo o amor cuidadoso e carinhoso da mãe. E isso é absolutamente real e natural. Ninguém nunca negou o carinho e desvelo das mães. Por que Maria não teria sido? Ainda mais que, em seu silêncio significativo, se sabia a eleita, como o anjo lhe tinha anunciado. O sofrimento, o silêncio e a presença da mãe são de uma beleza sem par.

A segunda narrativa se compõe de poucas cenas, de poucas falas, mas essenciais. Elas estão plenamente integradas no todo que é essa obra de arte. Contudo, sem elas, a violência seria exagerada e até de certo modo gratuita. Tudo muda quando se presta atenção a essas falas e cenas.

E as mais densas e essenciais são as da última ceia. Ela é narrada e inserida aos poucos, em momentos escolhidos. Não é linear, porque nada no filme é linear. Tudo tem um sentido universal e concreto, vivo e essencial, válido para todos os tempos e lugares. É um acontecer. É verdadeira poesia trágica. Na ceia se fala de corpo e sangue. E o que vemos desde o início como sendo aparentemente a narrativa linear e principal: o corpo e sangue de Cristo evidenciado pela violência. Mas aí duas violências confluem, deixando de ser uma e outra, para trazerem a epifania do homem, simbolizada na ressurreição. Ressurreição é isso: o corpo e o sangue do homem transfigurados no e pelo sagrado. Que duas violências? Quando Cristo na última ceia diz que o pão e o vinho que lhes oferece é o seu corpo e sangue que será entregue por todos os homens, não se trata de um simbolismo pro forma, tão caro a uma visão em que se separam corpo e espírito. Não é o corpo e sangue espiritual, mas o corpo e sangue concretos que serão transfigurados pela violência real de que será a vítima. A violência só se explica como fogo transfigurador. Se não houver isto então realmente será gratuita. Mas não é. É uma violência concentrada, única, permanente, que valerá para o que foi, é e será. A ceia tem esse sentido, um sentido de acontecer para todos os tempos e homens. Caso contrário não teria sentido. Ela diz respeito a todos os homens. Limitar a violência e seu significado aos judeus é de uma miopia flagrante e absurda. O drama trágico de Cristo é o drama dos homens. A ceia é um acontecer humano permanente e irreversível. Nela e por ela o homem se transfigura e ressurge.

A grandiosidade do sentido deste drama trágico para os homens aparece quando o comparamos a outros dramas trágicos como, por exemplo, o de Édipo e o de Antígone. Ele é prefigurado por Prometeu. Mas em Cristo se dá o castigo do sagrado e a transfiguração pela ressurreição (que não acontece em Prometeu), onde a dimensão humana e sagrada se integram e redimensionam. Nem o homem é mais o mesmo homem nem o sagrado é mais o mesmo sagrado. Um novo horizonte surge para o homem e para o sagrado. Isso o filme nos faz pensar e refletir, e nos mostra de uma maneira tensa, dramática, maravilhosa. Com uma fotografia excepcional, com uma realização técnica impecável. E por isso é extraordinário.

O homem perdido em tempos de pós-modernidade, meio às realidades virtuais, em que os sistemas são cada vez mais operantes e presentes, gerando uma violência cada vez maior, tanto interna como externa, uma reflexão profunda dessas é de uma atualidade sem par. Como se pode dizer que o filme é violento? Não serão nossos tempos que serão violentos? Com um senão, é uma violência sem fim, sem sentido. E o filme faz justamente o caminho inverso. Expõe toda crueldade gratuita dos homens e na dupla narrativa o seu sentido e possibilidade de transfiguração. É um filme sobre nosso tempo e para nosso tempo. Quem tem olhos para ver? Quem tem ouvidos para ouvir? Não os meios de comunicação, não os críticos desavisados e superficiais.

No entanto, o filme está fazendo sucesso, apesar dos críticos e das falsas questões. Mas será mera curiosidade? Na base do vai ver como é violento. Certamente não é só isso. Pulsa no homem, em todo homem, em todos os tempos, essa ânsia de superação da angústia, da solidão, do sofrimento, da dor, da violência, por um sentido que o transfigure e lhe afirme a certeza de que fomos feitos para a ressurreição. Que ressurreição? Por que não ficar com a do filme, onde a simplicidade e o silêncio nos convidam a experiênciá-la como o abismo insondável do mistério. Nela e por ela o humano recebe o seu sentido. Jesus, Cristo, sua mensagem, seu evangelho, sua vida e morte, é simplesmente isso: o anúncio da libertação pela transfiguração da vida em morte e da morte em vida, a ressurreição.

Apesar e contra todos os sistemas. No filme, outro ponto alto, os sistemas, sejam políticos, sejam religiosos, são reduzidos à sua truculência e ao seu poder aparente. Nada mais que isso. Ontem como hoje são sempre os sistemas, os mesmos sistemas com outros nomes.

E por que eles agem assim? Eles representam a verdade. Esse é outro ponto alto do filme. Jesus foi entregue pelos sacerdotes a Pôncio Pilatos para que o condenasse à morte. Não o fizeram eles porque os romanos não o deixavam. Mas sensatamente, e advertido pela mulher, Cláudia, o governador romano não quer condená-lo. E tenta arrancar de Jesus algumas palavras que o ajudassem a salvar. E Cristo só lhe diz coisas estranhas. Aberto para o extraordinário, mas ciente do seu aparente poder, Pôncio lhe diz que tem o poder de o inocentar ou condenar. E escuta a contraditória resposta de que nenhum poder teria se não lhe fosse dado pelo alto. Perplexo, lhe pergunta em seguida, quem ele era. E nova perplexidade: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. O caminho, é evidente, é o percurso que se faz para achar a vida. Todos os nossos empenhos se fazem tendo em vista o Penhor: a vida. Mas que caminho então seguir? Só há um: a verdade. Caminho, verdade e vida são um e o mesmo. Quem é este mesmo? Cristo. Não se trata, portanto, de conceitos abstratos. Em todos os mitos esses procedimentos são normais. Eles não se expressam por conceitos abstratos, mas por imagens concretas. Cristo é a imagem concreta e o conceito. Cristo é a verdade. Mas o que é a verdade? Essa é a pergunta que desde esse momento, para nunca mais o deixar, faz Pôncio.

Mel Gibson dá especial importância a essa passagem, tornando-se central. É um momento decisivo. É o julgamento. Decide-se o quê? Vida e Morte. Decide-se a verdade. E há três grandes atores: o poder romano, Pôncio Pilatos, o poder religioso judaico, depositário de uma revelação, da promessa de um Salvador, e Cristo. Toda verdade é portadora de um poder. Quem tem a verdade, quem tem o verdadeiro poder? Entre as três verdades como reconhecer a verdade? Cristo já anunciara em suas falas à multidão que viera para dividir e confundir. E é o que faz no momento decisivo. Ele, o frágil, o preso, o desprezado, espezinhado, acusado, reprimido, esmagado, perseguido, ele, o não do sistema-poder-verdade romana, o não do sistema-poder-verdade judaica, como poderia se afirmar a verdade se não fosse ele ali naquele instante a não-verdade? Ou seja, a verdade da não-verdade? Como poderia ser o caminho se estava só, abandonado? Como poderia ser a vida se estava prestes a morrer? Só se fosse o não-caminho dos caminhos, a não-vida das vidas. Mas não era morrendo que ele podia e dava vida? Não era o não-caminho dos caminhos para poder ser o caminho de todos os caminhos? Em sua fragilidade, em ser o não-sistema, em ser o excluído, em ser o que está à margem, em não-ser a verdade dos sistemas é que ele podia e era o caminho, a verdade e a vida. Cristo não enuncia e anuncia um paradoxo: ele é o paradoxo, onde não-ser é ser mais. Ele é o louco da sabedoria da cruz. Cruz da encruzilhada de homem E deus, de histórico E mítico, de verdade E não-verdade, de vida E morte, de eros E thanatos, a experienciação de todas as experienciações. Cristo, o ungido. Pilatos não simboliza o poder romano, simboliza a crise do poder. Os sacerdotes judeus não simbolizam o sagrado, simbolizam o limite e crise de todo religioso. Pilatos e os sacerdotes simbolizam a crise da verdade. Uma verdade que se lhes nega porque lhe é anunciada a verdade da não-verdade.

Por que Cláudia se faz a portadora especial e avançada dessa verdade perante Pôncio, perante os sacerdotes? É outro lado importante e maravilhoso do filme: a presença e ação das mulheres. Se dirigirmos o foco sobre elas, novo paradoxo. Elas não falam e, no entanto, como falam. São uma das presenças mais marcantes do filme. Densas, contidas, trágicas, depositárias de toda ternura e compaixão, sua fragilidade é de uma força extraordinária. Perante o brilho da força dos sistemas, lá estão elas com sua força de mulheres, a cura e desvelo pelo que embora esteja claramente se mostrando e desvelando permanece oculto: Cristo que sofre e é levado para a morte, a fonte de toda alegria e vida. Ninguém lhe dá atenção e nem se importam com elas e, no entanto, são as guardiãs do enigma da mãe Terra, da fertilidade, da vida que pulsa na morte, elas o sabem de experiência feita: elas também não morrem a cada filho, a cada nova vida? Morrer para dar vida. Elas o sabem. Elas velam com desvelo o Cristo, o ungido. As mulheres se calam para falarem mais alto e profundamente. A presença e lugar das mulheres no filme é um dos pontos altos. No centro do drama trágico do homem/deus elas são o silêncio que traz confiabilidade, esperança e libertação. Elas não falam, mas escutam. Elas são o contraponto das falas e crueldade dos sistemas. Não poderiam ter papel mais ativo. Até porque a vida é o poder do silêncio. Elas são vida e silêncio.

Mel Gibson poderia facilmente fazer delas algo melodramático. Mas não, pelo contrário, seu sofrimento contido e expressivo só faz acentuar e dar sentido ao sofrimento de Cristo. Seus silêncios são um grito de denúncia da violêncio e apelo de justiça e amor. Não são simples coadjuvantes. Não. Elas fazem o contraponto tenso e denso das falas, ações e loucuras dos homens, convergindo para Cristo e divergindo dos homens. Entre elas se destaca a presença de Maria, a mãe de todas as mães, a mãe símbolo de nossa maltratada mãe Terra. E levada ao auge da dor, numa cena belíssima, ela se arroja na mãe Terra e se une a ela apanhando-a em suas mãos, que, lentamente, a deixam escorrer. Como se só a mãe Terra fosse abrigo de sua dor e a compreendesse e a recolhesse. É nessas pequenas cenas e detalhes que uma grande obra se diferencia e afirma.

Como as mulheres, Cristo também pouco fala, só o essencial. Só os homens falam. Das muitas falas dos evangelhos, a seleção do diretor é de uma densidade desconcertante. Nada é supérfluo, nada é retórico, nada é estético e diletante. Sem dúvida, assemelham-se às falas densas e oportunas e próprias das grandes tragédias gregas, sendo A paixão de Cristo, por sua concentração, questões e experienciação a tragédia das tragédias. Na realidade há pouca ação no sentido de grandes deslocamentos ou sucessão de fatos. São ações escolhidas e centradas na dor ou sarcasmo humanos. Há um jogo constante e maravilhoso do desempenho dos atores pleno de expressividade e interioridade e o movimento das câmaras.

Entre os pontos altos está o da presença do diabo. Seria tão fácil cair na tradicional apresentação do diabo como o centro de todo mal, uma figura, afinal, ridícula que de repente perde o poder ou então se retira não se sabe bem para onde, quando não para um pretenso fogo do inferno. Mas não. O mal está nos homens em seu desejo de poder, arrogância vontade de preservação dos sistemas, e sua verdade que nada mais tem a ver com os homens nem com o sagrado. Mas não é o mal essencial, senão toda a dramaticidade de Cristo, sua paixão, perderia o sentido. O mal dos homens é muito evidente. O do diabo é mais sutil. Ele faz um triângulo com Cristo e Maria, a mãe de Jesus. Ele se faz presente em Cristo no momento de ele aceitar ou não a paixão. Nisso consiste a tentação: o homem deixando de se medir pela dimensão do sagrado. O seu lado humano faz o diabo presente como opção de recuo. O diabo perde, ele aceita a paixão. O diabo não fala, não é alguém. É o próprio homem se medindo na sua radicalidade e pela sua radicalidade: o sagrado, o infinito de toda liminaridade. Ele pode negá-la optando pela solicitação e tentação do diabo, aquele que está jogado entre (dia-bolo) e por isso mesmo somos nós mesmos em nossa fragilidade e fortaleza, em nossa finitude e não-finitude. Cristo vence. Opta pela paixão. E a cobra se torna um animal inofensivo. O diabo desaparece. Depois ele contracena com Maria. Os dois caminham em lados opostos, em silêncio. Acompanham Cristo. E Maria fica ao lado do filho e vence. No final, plenificado o drama trágico da paixão, o diabo perde sua função e desaparece num esvanecer-se visto do alto. Não há mais necessidade de sua presença nem ele tem mais lugar no drama humano. Está consumada a paixão. E próxima a ressurreição, onde não há mais lugar para o entre, para o diabo.

Qual o sentido do drama da paixão? A palavra drama em grego significa ação. Mas não qualquer ação. Ela é definida e determinada pela paixão. O que esta significa? Qual o sentido profundo? Já dissemos que a paixão de Cristo não é qualquer drama, qualquer tragédia. Nela como que se concentra o humano/sagrado em sua mais radical densidade. Tanta que se tornou o centro em torno do qual o ocidente constrói a sua caminhada e identidade. Identidade em crise hoje. E é aí que o filme cresce porque se coloca como reflexão no centro dessa crise. Ele coloca a questão originária: qual o sentido da paixão de Cristo? Ele denuncia ou nos faz, talvez melhor, refletir sobre o porquê de tanta violência, ontem e hoje. O que se perdeu? Por que não prevaleceu o sentido da paixão, lida, como o faz o filme, a partir da última ceia? Não há uma contradição radical entre a violenta morte de Cristo e o amoroso acontecimento da última ceia? Por que há uma paixão? O que significa a palavra paixão? O que ela nos sinaliza e assinala? Por que ela implica essa ambigüidade de amor e morte?

A palavra paixão formou-se do verbo grego pascho. O seu significado geral diz do experienciar uma afeição, sensação ou sentimento, o estar aberto e disposto para, estar em disposição. Significa, pois, uma abertura para o sentido do que somos e podemos ser. Esta disposição varia e pode ter o sentido de experienciar dor e sofrimento, chegando à morte. Paixão significa então morte. Mas por outro lado tal disposição pode se voltar para alguém. A paixão exige necessariamente os outros. A paixão como morte tem então o significado de sacrifício pelos semelhantes. E só se sacrifica quem ama. E para amar tem que ser algo arrebatador. É a paixão amorosa transformada na doação silenciosa, o amor. Isso não quer dizer nem pena nem anulação do outro, mas diz do sofrer com, do compartilhar dores e alegrias. A paixão aparece então como compaixão. Finalmente paixão nos remete para a disposição pela qual nos transformamos e buscamos o outro. É o transformar-se o amador na pessoa amada, gerando uma profunda e essencial identificação.

Ao dar o título ao filme de A paixão de Cristo e ao centralizar o drama na sua prisão e morte violenta, e ter como pano de fundo a última ceia, o diretor realizou todos os sentidos implícitos no verbo grego pascho e realizados na palavra paixão. A morte violenta de Cristo, sua aparente violência gratuita recebe pleno sentido na doação como pão e vinho da última ceia, transmutados em corpo e sangue no caminho da paixão e morte. A paixão e a última ceia significam não só amor, mas o que ele supõe, eros e thanatos, thanatos e eros: a vida como morte e a morte como vida. E há drama maior para o ser humano? Nele e por ele o homem se realiza, plenifica e liberta.

A paixão de Cristo, o filme, essa obra-prima, se nos apresenta assim em tempos de indigência espiritual e consumismo, de fundamentalismos e banalização da violência, como um sinal manifestador do sentido do humano e do sagrado, das contradições fundamentais do homem, em sua liminaridade, em todos os tempos e culturas. E não foi é e será sempre isso a arte? Uma presença que reconduz os homens para as questões essenciais?

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