23 agosto 2006

A leitura, a interpretação e o corpo (23-08-06)

A LEITURA E A INTERPRETAÇÃO – atualizada 07-09-05

(Atenção: caso queira ter acesso a outros ensaios clique abaixo do índice no nome dos meses)

Prof. Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

Assim, heremeneuein, interpretar, não diz conduzir alguma

coisa para a claridade da razão e o discurso da língua, mas

reconduzi-la a seu lugar de origem no mistério da Linguagem.

Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a pensar I, p. 248.

Os latinos traduziram a palavra grega hermenêutica por interpretação. Hermenêutica é a arte de interpretar e tem diferentes realizações. É uma arte tão antiga como o próprio homem. Somos sempre interpretando. Todas as circunstâncias da vida, sejam ordinárias, sejam extraordinárias, exigem de nós uma interpretação. Por isso os gregos, sempre atentos ao essencial, criaram uma figura mítica, o deus Hermes. Seu nome significa verbo e, por isso, ele é, como mediador, o mensageiro e a mensagem entre os deuses e os homens, e, ambiguamente os conduz pelos caminhos da luz e pelos caminhos das trevas. Por isso preside a toda interpretação.

O seu nascimento é seguido de fatos extraordinários, tornando-o um deus de múltiplas facetas, atribuições e características. Ele tem, sobretudo o poder de atar e de desatar (poder da palavra). Tudo isso mostra, mítica e vivencialmente, a complexidade da interpretação. A ligação do poeta e da poesia com Hermes é muito profunda, pois radica na palavra fundadora e profética. Por isso os poetas sempre se souberam os portadores muitas vezes involuntários da palavra reveladora. Sabedores da insuficiência do seu discurso, invocam as musas, as poderosas filhas da Linguagem poética, a Memória. Nela e por ela a realidade se presentifica.

A interpretação esteve inicialmente ligada à enunciação da vontade e destino que os deuses prepararam para os homens em suas vicissitudes. Quando o mito foi sucedido pela religião, inaugurou-se a necessidade da interpretação da palavra do Deus. Tal interpretação recebeu no seu decorrer histórico o nome de exegese, motiva por uma situação conjuntural de aplicação concreta. As disposições jurídicas dos homens na Polis sucederam à disposição da justiça divina. E esta como aquela também exigiram a sua interpretação e aplicação. Há, pois, diferentes interpretações. As obras poéticas têm sua origem no poder revelador da palavra mítica.

O poeta ao ouvir as musas transcreve o que ouve, não o que as musas falam. Daí decorrem duas conseqüências. De um lado, as diferentes obras de um poeta são uma única obra sempre incompleta de tentativa de transcrição da escuta. De outro, a tensão entre escuta e fala gera uma ambigüidade poética, que exige uma contínua interpretação. É a interpretação poética. Esta também se inscreve sempre numa situação conjuntural, mas diferente da situação religiosa e jurídica, onde há uma intenção e mensagem, a interpretação poética se torna um exercício manifestativo do sentido e verdade da realidade, pela qual se de-cide o que somos e não-somos, ou seja, nos experienciamos sendo. Quando o intérprete inicia a sua interpretação tem diante de si um discurso, a palavra do poeta, mas ele lê para escutar a voz da Memória, na fala das Musas. O leitor é tão importante como o autor. A interpretação poética se torna sempre uma aventura fundadora de realidade, porque na obra está em operação a sua verdade.

As observações que se seguem têm o intuito de levá-lo, hermeneuta/leitor, a penetrar um pouco nessa complexidade. É um convite para trilhar os caminhos de Hermes, da Palavra. Eles estão dentro de você. Na travessia desses caminhos cada um de nós na sua caminhada se descobre naquilo que é, enquanto alguém que caminha para realizar as múltiplas possibilidades que a vida nos oferece. A hermenêutica, dada a sua importância, se torna o centro não só da arte, mas também da religião e do direito.

O difícil e múltiplo caminho da interpretação

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

......................................................................

Penetra surdamente no reino das palavras

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata..

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consuma

Com seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito,

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade

No essencial, o leitor não se diferencia do poeta. Uma leitura interpretativa segue os mesmos passos da elaboração do poema. E diante das palavras não pode haver desespero nem pressa, mas assédio paciente e escuta. É necessário penetrar “surdamente no reino das palavras” para deixar a Linguagem poética falar. Uma leitura interpretativa só eclode quando se faz esta experienciação da poesia. E o diálogo tem nas palavras do poema a medida do alcance de cada interpretação, porque não são palavras nem do poeta nem do leitor, mas da poesia. No entanto, no cotidiano, as palavras em nosso viver cotidiano são usadas sem face, anônimas e automatizadas. Pensamos que fazemos um uso pessoal, subjetivo, quando, na verdade, veiculamos idéias correntes e socialmente estabelecidas: é a linguagem comunicativa e instrumental. Deixar que o poema, onde a palavra manifesta o seu vigor, se “... consuma / com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio” passe a nos provocar, é então que se inicia a leitura interpretativa. É uma caminhada de vivenciação e diálogo com as palavras do poema, que exige de nós disposição, atenção, doação e escuta. Não há um modelo ou paradigma que se torne um caminho único e seguro. Isso não levaria em conta a conjuntura, o histórico e a identidade de cada leitor intérprete. Por outro lado de maneira alguma estes dados devem se tornar os motivos subjetivos para realizar a interpretação, senão o poema e suas palavras só irão confirmar o que o leitor já pensa e sabe. É necessário a partir destes dados haver uma efetiva abertura e escuta do leitor intérprete. Quem fala não é o intérprete mas o poema como voz da poesia. Como preparação e execução da escuta interpretativa alguns momentos e procedimentos são recomendados.

Leitura espontânea e poética.

Há um caminho possível (método, não metodologia) de leitura interpretativa que nos põe mais diretamente em contato com a dimensão discursiva de todo poema. Houve sempre a tendência a separar a obra em fundo e forma, em significantes e significados, como se a obra não fosse uma unidade ambígua de manifestação da realidade, onde é tão real o significante como o significado e onde o sentido é o sentir o significante como significado e o significado como significante. O uso adequado das noções gramaticais, no que elas têm de essencial, pode nos preparar para adentrar os sentidos de um texto, de uma obra. É claro que o uso dessas classificações gramaticais não se pode tornar um fim em si, mas são ponte para estabelecer um diálogo com o texto em primeira instância e, em segunda, com o sentido da Linguagem poética. O lançar mão dos recursos discursivos como etapa interpretativa impede a transformação da interpretação numa glosa, o que ocorre freqüentemente, ou ainda na expressão daquilo que já pensamos – são nossas impressões - e que o texto ou obra parece confirmar. Não é que se queira conhecer o significado objetivo do texto ou obra, porque este, na realidade não existe. Ele é depreendido por uma leitura do sentido do texto ou obra baseada nos significados cotidianos do discurso, onde, portanto, não se faz presente a ambigüidade poética. Vamos dividir a leitura interpretativa em três passos, em três momentos, mas é necessário que fique bem claro que essa separação é meramente operacional, porque, na realidade, já sempre nos movemos no círculo hermenêutico.

A leitura espontânea (literal ou atemática)

O que predispõe para a leitura espontânea ou não é uma questão de disposição, porque o sentido da linguagem poética nunca fica prisioneiro de uma formação ou da erudição ou cultura. É necessário deixar a compreensão, que é o humano se manifestando, se tornar presente. A leitura espontânea atende mais aos dados do discurso e ao horizonte cultural e conjuntural em que cada um naturalmente vive. Mas ela já pode trazer as sementes do sentido poético, para o qual a obra poética naturalmente aponta. Este, muitas vezes, só vai ocorrer numa segunda ou terceira leitura. De qualquer maneira é uma leitura que deve ser valorizada e incentivada, porque é a partir da sua incompletude e de perguntas que não foram respondidas a questões levantadas no seu decorrer, que surge a vontade de se fazer uma nova leitura. Há ainda o prazer natural pelo envolvimento e atração que toda ficção poética desencadeia em nosso imaginário. Se o leitor tiver de fazer uma interpretação, alguns procedimentos podem ajudar.

O “entre” de toda palavra nos lança numa tensão que se faz presente permanentemente numa dupla energia: a) a centrípeta ou para a Terra; b) a centrífuga ou para o Céu. O mito sempre usou as imagens-questões Céu e Terra para mostrar essa dupla tendência que nos move e atrai. Disso resulta em nós um movimento que vai do todo para a parte e da parte para o todo, num encaminhar a leitura num processo de apreensão progressiva do sentido do texto. O processo de leitura deve estar atento, em seus diversos passos, a esta tensão. Assim é que a leitura do todo permite a apreensão da cada palavra em sua força poética, mas também uma palavra ou palavras nucleares imantizam todo o texto ou poema ou obra de sentido. É porque aí sempre se faz presente a poiesis como acontecer. Abrir-se para a vigência da poiesis (força poética), enquanto sintaxe poética (sentido do todo/parte e da parte/todo) e não apenas gramatical, permite uma tripla escuta e os demais procedimentos metódicos, preparando a aprendizagem. Quando a aprendizagem acontece surge e experiencia-se a sabedoria. Mas agir sabiamente é agir eticamente. A aprendizagem é o agir ético que leva à sabedoria. Ser sábio é simplesmente ser.

Para tanto é necessário seguir alguns procedimentos metódicos, mas estes não bastam, se não houver abertura para a fala da obra e cada leitor não abandonar os jargões e preconceitos estabelecidos, confundidos, infelizmente, com a chamada subjetividade.

Procedimentos iniciais

- Ler o texto todo para uma primeira apreensão;

- Reler sublinhando as palavras principais. Em ordem de importância: Verbos, substantivos, advérbios, adjetivos e conjunções. Nunca esqueça que o verbo é o coração da oração e ele, de alguma modo, contém o principal sentido. Numa prova, seja ela qual for, comece sempre destacando os verbos etc.;

- Em seguida procurar relacionar os verbos entre si e com os substantivos etc. Nunca esquecer que os advérbios também são muito importantes, pois eles introduzem uma afirmação ou negação etc.;

- Procurar os significados das palavras desconhecidas, pois a criação artística trabalha muito com a ambigüidade. Às vezes os sentidos são apreendidos dentro da sintaxe poética. Esta nada mais é do que a Terra eclodindo enquanto mundo. É a sintaxe poética que possibilita novas relações de sentido. Sentido é o kaos se ordenando em kosmos, ou seja, mundo.

- Assinalar as alusões a fatos e personagens históricos, a mitos etc. Obter maiores

informações sobre esses dados.

- Anotar as principais impressões e idéias causadas pela leitura.

- Sublinhar as passagens mais importantes, comentando-as.

- Notar se há alusão a outras obras.

- Transformar as passagens ambíguas e as metáforas (personagens) em questões para posterior releitura e discussão.

Divisão do texto em movimentos.

Feita a leitura espontânea ou atemática, é importante tentar aprender já um primeiro sentido do texto no seu todo, procurando distinguir o encadeamento das diferentes partes. Dessa maneira estaremos já exercitando o círculo hermenêutico. Essa distinção do todo nas partes é o que chamamos divisão em movimentos e consiste num primeiro esforço de apreender um sentido geral ainda atemático, numa seqüência mais clara e cada vez mais temática. Posteriormente, esta compreensão pode mudar, porque novos significados se foram concretizando no decorrer da interpretação. Entende-se por movimento uma parte, um aspecto, uma idéia do texto (em prosa ou em verso). Numa comparação, o texto estaria para uma casa assim como cada movimento estaria para os cômodos (sala, quartos, cozinha, banheiro). Propriamente não há casa sem os cômodos, embora a idéia de casa seja mais do que cada cômodo. Dependendo do texto e do seu tamanho pode haver sub-movimentos.

Os diversos movimentos mostram o desenvolvimento do tema que o texto propõe. A compreensão do todo nas partes se torna um passo muito importante no sentido do texto e da obra, seja em prosa, seja em verso. A passagem de um movimento a outro se serve dos diferentes recursos discursivos. É impossível estabelecer uma regra. Mas alguns elementos, dependendo do texto, podem, eventualmente, marcar a mudança de movimento. Exemplifiquemos:

- mudança de tempo verbal.

- introdução de uma conjunção adversativa.

- mudança de parágrafo.

- mudança de sujeito.

- etc.

Como proceder? Numere os versos ou linhas do texto. Depois de uma leitura atenta, indique cada movimento com o primeiro e o último número. Procure sintetizar a idéia de cada movimento numa oração. Inicie depois o outro momento: a interpretação através dos elementos discursivo-estruturais. Pode acontecer que no decorrer deste segundo momento mudemos a primeira divisão em movimentos, porque a compreensão do texto já se aprofundou. Isso é normal. Significa que já estamos desenvolvendo a leitura compreensiva circular, dentro do círculo hermenêutico.

A leitura e as camadas da memória

A melhor metáfora para dizer o que é texto é a rede. Como rede ele se constitui de linhas, nós e buracos. E mais amplo que tudo isso o vazio e o silêncio, pois há textos escritos e orais. As palavras têm uma densidade horizontal e vertical, levando o texto a se constituir em múltiplas camadas. Ao entre-cruzamento destas camadas e vozes podemos denominar: hipertexto, intertexto e hypotexto. É importante ter bem presente que o “mundo” se constitui em múltiplos textos e obras. Mas poderíamos dizer que, à semelhança de um organismo vivo, cada texto têm também as suas células, seus membros e seu corpo, mas onde cada célula contém em si todo o corpo (obra). Em grau de complexidade crescente: palavra, oração, discurso, obra.

Hipertexto

O hipertexto é um conjunto de linhas, nós e buracos ligados por conexões constituindo uma sintaxe de muitos sentidos e significados. O que em geral caracteriza o hipertexto é o fato de se poder constituir ele mesmo de outros textos, sejam palavras, imagens, gráficos, seqüências sonoras, sejam documentos complexos que também podem ser eles mesmos hipertextos. Num exemplo simples, poderíamos dizer que uma obra onde entram múltiplas manifestações artísticas se constitui como hipertexto. Fragmentos, colagens, justaposições, citações, comentários etecetera, tudo junto, são elementos de que se constituem os hipertextos. Hoje, o largo uso das infovias e da intenet permite fazer hipertextos ricos e sofisticados. O interessante desse novo texto é a diluição da autoria e até da originalidade. Mas em termos comunicativos pode conduzir a uma grande complexidade.

Intertexto

O intertexto como tal se constitui na reunião de diferentes textos, seja diacrônica, seja soncronicamente. Ele pode tornar-se uma dimensão de um hipertexto. Os intertextos conjugam perspectivas e realizações discursivas diferentes, mas metabolizados numa nova dicção que lhe dá a originalidade. A identificação da intertextualidade exige muita leitura e conhecimentos, e pode permitir interpretações mais ricas.

Hypotexto

Em si, tanto o hipertexto como o intertexto já pressupõem a presença e vigor do hypotexto. Ele constitui as camadas da memória de que se constitui realmente cada texto. Pensando que a teia em que se tece o texto se nutre do discurso e sabendo que o discurso é a matéria do tempo feito memória, vemos que a palavra traz em si, como um pôr entre, o presentificado, o presentificante e o presentificável. A co-presença destas três dimensões do tempo na palavra abre as inúmeras possibilidades de leituras e interpretações. Na memória está todo o saber. O uso de diferentes dicionários é essencial para adentrar o hypotexto de cada texto.

Quando pensamos e constatamos que qualquer um de nós faz parte de uma tradição cultural, onde as múltiplas criações são intertextos, hipertextos e hypotextos, a idéia linear de início, meio e fim é algo absolutamente aleatório. Sendo então a cultura de um povo um intertexto, hipertexto e hypotexto, onde começa e como cada um realiza uma leitura é algo completamente imprevisível, porque depende da formação, do acesso, das conexões, das intuições, da inteligência, das motivações, das crenças etc. de cada um.

Por outro lado, isso gera uma angústia nova: a de que o exercício da subjetividade é algo mais virtual do que real, porque os passos e caminhos percorridos no intertexto, hipertexto e hypotexto já estão previstos na rede. Somos hoje uma sociedade em rede. Mas não podemos confundir a ambigüidade do texto poético, ainda que faça também parte do intertexto, hipertexto e hypotexto, com a as possibilidades e caminhos da rede. Isso seria um grande equívoco. A ambigüidade poética diz respeito à tensão rede, vazio e silêncio do real. Em verdade, se não houvesse o vazio não haveria rede. Nessa dimensão, a leitura do texto poético só se traduz numa interpretação quando a tensão e escolha se dá numa escuta, não do que os fios da rede prevêem, mas quando e tão-somente quando ela vige na tensão fios-discursos, vazio e silêncio. Por isso o estudo tradicional das obras de arte, baseados em matéria e forma, não dá conta do que a obra como obra de arte é. A matéria e a forma nada são poeticamente sem o vazio e o silêncio. A eles se prende a leitura poética, onde o móvel da leitura é a poiesis.

Os passos e as passagens da leitura

1º. Confira o ensaio Método e ação: passagens. Nele expusemos que uma leitura

mais profunda pode-se desdobrar em oito passagens. Recordando: 1ª. Leitura; 2ª. Escuta; 3ª. Diálogo; 4ª. Interpretação; 5ª. Experienciação; 6ª. Acontecimento; 7ª. Aprendizado e aprendizagem; 8ª. Libertação; Ser feliz

A palavra e o corpo – a teia da vida

Nossa idéia de corpo é muito parcial e influenciada por uma dicotomia entre espírito e matéria. Não cabe agora e aqui discutir a origem dessa dicotomia. No entanto, hoje, a ciência está comprovando a profunda ligação entre o ser humano e todo o restante da vida e da natureza. Considera-se hoje que a vida se constitui numa grande rede. Por isso, podemos apreender o corpo em cinco grandes níveis: 1º. O corpo que cada um tem; 2º. O corpo de um grupo familiar e genético (etnia); 3º. O corpo genético de todos os seres humanos; 4º. O corpo como ecossistema; 5º. O corpo planeta como biosfera. Tais corpos se interligam de uma maneira marvilhosa e misteriosa compondo a teia da vida.

Há uma tendência ocidental por influência dos conceitos em detrimento das questões pela qual julgamos que ler é sempre um exercício racional. Mas não.

O ser humano, enquanto sentido do todo que ele é, se condensa em três energias e impulsos: 1ª. física; 2ª. mental; 3ª. erótica, gerando uma tripla escuta e experienciação: 1ª. palavra lida em silêncio ou falada; 2ª. dança; 3ª. música. Nesse processo rico de leituras se dá e densifica o Logos, pois ele diz fundamentalmente reunir como linguagem. A denominação da linguagem, em português, a partir de uma parte do órgão fonador, a língua, conduz a uma compreensão equivoda da linguagem, identificando-a com algo substancial e material e só acentua o nosso lado corporal. Corpo aqui nada tem a ver com matéria ou carne. Corpo somos o que somos enquanto realização do ser como poiesis. Daí a sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura e das questões.

Descartes, que inaugura a Modernidade, separa o ser humano-corpo em duas realidades: 1ª. Res cogitans (coisa pensante, racional); 2ª. Res extensa (material, carnal). Esta divisão é a base da Modernidade, daí a dificuldade hoje em pensar o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo, o todo que cada um é. A argumentação da consciência determinando não só o ser, mas também o próprio real/corpo só seria aceitável se admitirmos a dicotomia cartesiana. Pode-se ela sustentar? O que ficou esquecido? O corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente. Sem esta ação nada pode acontecer, nem mesmo a consciência. A dicotomia levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-introspectivo ou mesmo em voz alta (rara), mas da qual se afastou fundamentalmente o corpo.

A tripla leitura de voz, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Porém, estas três leituras só são possíveis a partir da escuta do que se é. Neste ser nunca há dicotomias.

As três forças

A compreensão do corpo como matéria ou carne é por demais enganador e insuficiente. Até porque não sabemos o que é matéria o carne. Real não é o que se vê, mas o que age. Por isso o corpo é uma sintaxe poética. Nele e com ele atuam as três forças: 1ª. a física, cuja metáfora é o braço; 2ª. a mental e psíquica, desdobrada misteriosamente no pensamento; 3ª. a erótica, cuja metáfora é o coração e sua experienciação amor. A essas três forças perpassa a compreensão, daí apreensão e aprendizagem. Quando isto ocorre se manifesta o espírito, um fogo secreto e misterioso que é o próprio vigor do corpo como corpo, como ser humano. Essas três forças vivem de uma tensão permanente, que os gregos chamaram de polemós (luta, combate). Dele surge como poiesis a sintaxe e narrativa poética. Um corpo tem em si a narrativa primordial.

O ser que o corpo é abrange o uno (silêncio, vazio, nada) e a multiplicidade das diferenças. O uno se dá como compreensão e linguagem. Por isso é necessário mergulhar no entre em que toda palavra se funda como palavra. O irromper em sentido (sentimentos) e caminho é Hermes se fazendo presente na tripla força, daí ser ele verbo. O máximo da sintaxe poética mergulha e se manifesta no entre como repouso, ou seja, a sintaxe poética se dá na tensão e tende sempre à não-ação, como máximo de ação e silêncio. O corpo abrande as três forças e se torna o lugar/mundo como tal do nada excessivo em que se constitui toda a realidade.

A interpretação é a eclosão do corpo como aprendizagem e sabedoria, a partir de e no entre.

A leitura como escuta não consiste, pois, numa decodificação de letras, mas na integral experienciação e aprendizagem do que somos. Por isso Fernando Pessoa nos convida:

Para ser grande

sê inteiro.

Põe quanto és

no mínimo que fazes.

Nada teu exagera

ou exclui.

Assim em cada lago

A lua toda brilha

Porque alta vive.

A leitura poética

... a vida, a morte, tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos e-xistem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras.

Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).

O estudo da literatura não pode se reduzir à prática da leitura dos elementos sistemáticos do texto ou da obra, aos seus aspectos formais e discursivos. Esse deve ser apenas o primeiro passo e a preparação para que a literatura enquanto poesia/linguagem aconteça. O lugar desse acontecimento não é o texto, não é a leitura, não é a interpretação: é o leitor. E em cada leitor de uma maneira absolutamente singular. Isso não quer dizer individual, mas, sim, nesse acontecimento o leitor, cada leitor, singularmente, se experiencia como realização da realidade, isto é, como a realidade que ele é. É a isso que chamamos deixar a realidade acontecer, ou melhor, tornar-se o que é.

A arte sempre coloca como centro de decisão a questão da verdade, pois opera a verdade da realidade. Ora, normalmente, temos um conceito de verdade muito limitado e imediatista em relação à realidade, e passamos a ler o mundo da arte como sendo ficcional e não real, porque nele opera o imaginário. Acontece que o imaginário é o lugar da arte, mas também do ser humano e de toda realidade. E só por ser do homem é que também é da arte. Mas é por força da ficção poética que o sonho e a utopia eclodem. É por força da arte que o homem ultrapassa as meras circunstâncias e penetra na dinâmica de suas realizações, sondando toda a sua complexidade, de que as grandes questões são o índice, na medida em que eclodem como mundo. As circunstâncias como meio só são apreensíveis e compreensíveis no âmbito da realidade como mundo.

Essas grandes questões, como mundo e lugar, é que nos atraem e alimentam na leitura. Mas só se forem metabolizadas. Elas explicam o forte e apaixonante envolvimento da leitura. O melhor caminho que o homem, até hoje, descobriu para chegar até elas foi a arte. Por isso, em arte, como na vida, a ficção poética é a melhor verdade, é a realidade verdadeira. Realidade é, então, um apelo de realização que ultrapassa os limites do imediato e já dado. É o imaginário vigorando. Só não devemos confundir ilusão com imaginação, com ficção poético-artística. A ilusão se estrutura em exterioridades, repetições e preconceitos. Apenas reduplica o sistema e o reafirma. A ficção poético-artística envolve o homem por inteiro, inaugura novas manifestações e percepções da realidade, enfim, abole os preconceitos e liberta. Um exemplo bem forte do vigor da ficção poética está no poema de Fernando Pessoa “Autopsicografia”, quando põe o ser do poeta e do leitor como a tensão entre o fingir (ficção)/ler e o sentir (dor), entre a dor fingida/lida e a dor sentida, no destino que entretém razão e coração, fazendo do que somos um jogo.

Não podemos esquecer nunca que a Poética da poiesis, antes de ser um conjunto de conceitos e normas formuladas a partir de sistemas filosóficos, se manifesta nas próprias obras de arte. Elas trazem em si todos os procedimentos de realização, que são mais do que procedimentos, e sim a manifestação do real em seu sentido e verdade. A melhor maneira de aprender e apreender a arte é pela própria arte. É a isto que chamamos Poética da poiesis. Mas não podemos esquecer que a arte é um enigma e que para ser colhido por ele é necessário um processo de envolvimento, uma incursão reflexiva até se tornar sabedoria e libertação.

O trabalhar/interpretar um texto isoladamente tem as suas vantagens e os seus perigos. Como célula, o texto presta-se, num primeiro momento, já a partir da decisão da escolha, excelentemente, à exemplificação e à demonstração de uma determinada metodologia. Mas na relação texto/metodologia o que nos move? Evidentemente, num primeiro momento, a operacionalização da metodologia. Mas pensemos no passo seguinte. De posse do metodologia, o que fazer com ela? Continuar a usar os textos para exemplificá-la e, dessa maneira, fazermos um claro e seguro trabalho didático? Isso é que é perigoso. Acabamos esquecendo o texto-obra e nos contentando com a metodologia. O texto virou pretexto. Para que tal não aconteça é necessário que voltemos ao texto e nos lembremos que ele faz parte de uma obra e como célula contém em si de alguma maneira toda a obra. A partir desse momento nosso horizonte deixa de ser a interpretação do texto (célula) e passa a ser interpretação da obra em sua construção e vigor: é o que denominamos poética da obra.

Como fazer a ligação da interpretação de textos com a poética da obra? É um trabalho mais amplo e complexo. Não se trata mais de ver o texto/obra como uma célula, mas de refletir sobre o que é a própria obra, lembrando que obra vem do verbo operar, agir. Quem age, essencialmente, é a verdade da poesia, manifestando a realidade como mundo. Obra passa, pois, a ter um significado completamente diferente do tradicional. Contudo, eis algumas observações sumárias. Quando saímos da célula e passamos a examinar a obra, constatamos que o texto/obra é um sistema de palavras, de imagens-questões, de procedimentos metafóricos, em que alguns sempre ocorrem, e de situações conjunturais básicas. Eles tornam-se os elementos-chave da obra, portadores que são de uma força reguladora e organizadora, e que dá sentido ao todo da obra.

A interpretação do texto deixa de ter um fim em-si e passa a ser o caminho para a descoberta das recorrências em torno das questões essenciais. São elas que organizam o todo sintático, seja em campos semânticos, seja nas criações metafóricas, seja nas situações limites ambíguas. Desse primeiro momento, partimos para um segundo que consiste em surpreender todas as articulações a partir dos elementos-chave. Trata-se, então, de compreender as articulações dos elementos-chave entre si e em constelações de junturas dinâmicas. É aí que se torna evidente a força de criação, pois constatamos que a obra numa certa dimensão é um sistema dinâmico e solidamente estabelecido, onde nada falta e nada é demais.

Se nossa intenção é apreender a bem estruturada realização código-discursiva, a forte coesão estilístico-metafórica, as tensões mundivivenciais, teremos conseguido nosso intento. O poético aparece como um mundo vivo, pulsando energia. Por isso não podemos deixar de indagar e investigar: E daí? Para que toda essa realização formal? Será que o autor na sua cotidiana e incessante luta com as palavras tinha em mente só isso? Não devemos nos perguntar antes: O que cada autor e poeta, com isso, nos quer dizer e fazer pensar? Que verdade advém e acontece com a reflexão? O terceiro passo para delineamento da leitura interpretativa e da poética da obra acontece no momento em que os passos anteriores fazem eclodir em nós a compreensão daquilo que o texto/obra não diz, mas quer dizer, em tudo que nos diz. É a presença e vigor do silêncio. Esse não-dizer, querendo dizer, se torna a questão central da interpretação e da poética da poiesis, e com ela experienciamos o retraimento/escuta do que nos atraía em nossa leitura interpretativa. Era a força da paixão da leitura. Presos a uma tensão que resulta do que a obra não diz em tudo que diz, somos envolvidos e convocados a nos lançarmos na aventura do que somos nas conjunturas e questões da nossa vida, no processar-se sem fim da realidade.

A identificação da poética da obra com a decisão do nosso próprio pensamento nos remete para a travessia de retraimento de um horizonte que cada vez mais atrai, se retrai e nos arrasta. Repetimos, obra não é um objeto que pode simplesmente ser desmontado, analisado e conhecido ob-jetivamente, mas um operar da verdade e do sentido da poesia da realidade. Esta compreensão da obra parece ser muito abstrata e nos deixar soltos, sem dados “concretos” e palpáveis. Não é verdade. Abstratos são os conceitos, porque vazios do pulsar da realidade.

Para desfazer esta impressão, voltemo-nos para uma linguagem poética que se faz presente em nosso viver cotidiano: a música. O que a música opera em nós não é algo de real? Não nos envolve e nos sentimos em pleno ato de realização? Não parece que ultrapassamos nossos limites e nos sentimos livres, em um devir constante de grande plenitude, onde tudo nos parece mais real do que tudo o que existe fora de nós e à nossa volta? A este operar da música é que se chama verdade e sentido da poiesis, onde qualquer pergunta por mensagens ou utilidade é de todo despropositado e inútil. E não é algo determinado pelo indivíduo, nada tem a ver com subjetividade ou impressionismo, pois uma mesma música, por exemplo, numa dança, manifesta seu vigor concretamente e de uma maneira singular em cada um e em todos. Esse é o poder de libertar da arte. Mas não podemos esquecer que a literatura, como a música, também é arte. Nesse momento a literatura se torna Linguagem manifestativa, poética e não, simplesmente, linguagem instrumental ou social. A compreensão da obra, das obras, da poética da obra faz da poética da leitura um caminho de sentido e viagem conjuntural de verdade e não-verdade, de saber e não saber, de querer e de não querer, de viver e morrer, de ser e não ser, para sermos sábios, felizes e livres.

O caminho interpretativo que se faz enquanto caminhada para a clareira da realidade, ou seja, enquanto escuta e abertura para o sentido e verdade da poesia da realidade na sua concretude, sempre consistiu na compreensão e apreensão do centro manifestador de toda obra poética. Rosa também chama a atenção para esse aspecto e diz que é como retirar as camadas de cinzas com que o passar do tempo vai revestindo a brasa viva, em que consiste toda obra de arte. É um movimento de descida ao núcleo poético, pulsante, vivo e abrasivo que manifesta e desencadeia a realidade.

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