23 fevereiro 2017


A presença constante do sagrado

                                   Manuel Antônio de Castro – Prof. Emérito da UFRJ

            A dessacralização que domina hoje é devida a quê? Certamente muitos são os fatores. É no âmago dessa questão que a arte como questão se faz presente. Pode se falar em arte sem levar em consideração a questão do sagrado? Difícil, a não ser formalmente. Porém, ela se faz presente de um modo muito simples e especial, que se perdeu com o próprio distanciamento do sagrado, acontecido na dinâmica das transformações históricas. Transformações essas que dizem respeito à própria dinâmica de o próprio sagrado se destinar. Mas ele, por mais que esteja esquecido, nunca se distancia e torna ausente como tal. Pelo contrário, sem sua presença e sua proximidade, tudo perderia o sentido e o próprio vigor de realização do real, pois o sagrado é energia de sentido. E ele é próximo, tão próximo que até para sermos o que somos só podemos ser sendo essa proximidade. Porém, em tudo que fazemos temos a tendência, hoje e há muito tempo, de considerá-lo distante e inalcançável, como se ele fosse outro que não o vigor do que nos é próprio.

Imersos em meio aos entes, temos a tendência de querer sempre entificá-lo e torná-lo algo que se dê como manipulável e disponível à nossa vontade ou de alguns poucos escolhidos e especiais, dotados de seu poder extraordinário. E, no entanto, ele necessariamente vigora em cada um na intensidade da sua medida, dele e em quem ele vigora. Para e no sagrado é estranha e inadmissível a distinção de superior e inferior, bem como de masculino e feminino. E é então que ele se distancia cada vez mais, um distanciamento que consiste, em verdade, no seu esquecimento. O esquecimento do ser, do sentido do que somos, é o esquecimento do sagrado. Que é a arte hoje senão o testemunho pungente desse esquecimento? Assim se pensa. Mas não seria a verdadeira arte o testemunho vigoroso da presença constante do sagrado, pois não é a essência da arte o sagrado? Quanta obra de arte vazia, tentando, inutilmente, preencher esse esquecimento pelo jogo fútil e mirabolante das formas técnicas. Mas ainda serão essas obras obras de arte? Não serão meros jogos formais que fazem a alegria e fortuna dos donos de galerias? Em meio a tanta ganga é difícil localizar a pepita procurada.  Para isso muito contribuem os ritos em que vivemos mergulhados, sem o seu vigor e aquilo que os justifica e justificava e lhes dá e dava a própria razão de ser: o mítico.

            Há uma disputa entre o que é prático e racional e o mítico, entre o verdadeiro da funcionalidade dos ritos e sistemas de toda sorte, e o verdadeiro do mítico. Como se fossem opostos e não se fundassem numa dobra. Vivemos dessa maneira cada vez mais em situações conflitantes e opostas, em duplos e dicotomias. São essas dicotomias de valores em nossa vida cotidiana que cada vez mais nos afastam do sagrado, isto é, do mítico em seu vigorar de proximidade. Dividimos o tempo de nosso dia em tempos de trabalho funcional e em tempo, num dia da semana, para alguns poucos, de uma atenção para com o sagrado, como se ele tivesse que esperar essa atenção nossa e até como um favor nosso, bem expresso nos ritos de louvor e adoração. Mas são ritos que já puseram distante, muito distante de nosso viver cotidiano a presença e vigorar do sagrado. E, no entanto, ele é tão presente, o único presente; tão próximo, realmente o único próximo; tão pleno, e único de fato, que é o único que dá e pode dar o sentido em que consiste a completude. Pelo contrário, fora dessa presença e energia de sentido, achamos que essa plenitude nos advém da satisfação dos sentidos, muitas vezes só sensações sem sentido, e no exercício de nossa vontade em executar e realizar muitas tarefas e efeitos. São, então, os feitos de quem trabalha. Mas o que é, essencialmente, o trabalho? O próprio trabalho não perdeu o seu sentido originário e original? Ele se tornou muito mais algo que nos volta para fora do que somos, em múltiplas tarefas funcionais de execução de transformações da realidade, assegurando a satisfação de nossas necessidades, não da necessidade ética de ser, única realmente necessária, inevitavelmente necessária, porque dá sentido a tudo que fazemos. No entanto, o que nos é essencialmente necessário? Mais do que nunca, a medida da necessidade se tornou o consumo. Pode este ser a medida de viver e ser? Pode haver viver sem o motivo e sentido de existir? Consumo de quê? Qual o limite entre necessidade e consumo? E esse limite nos vem de que instância? Social? Histórica? Psicológica? Religiosa?, pois o religioso se tornou consumo como possibilidade de substituir o sagrado que já nos é tão próximo que o esquecemos e buscamos em práticas e ritos religiosos que o colocam distante. E eles teriam o poder de o trazer para nossa proximidade. Mas se ele já não vigora em nosso cotidiano e em tudo que fazemos, pensamos e sentimos, dificilmente deixamos que ele aconteça em nossas vidas e dê sentido e motivo de viver existindo. Então são desnecessárias as festas e os cultos? Não. Mas não são elas que nos trazem a proximidade do sagrado. Até podem nos trazer a proximidade, bem como também nos podem afastar, quando os ritos dessas festas são mais importantes do que aquilo que os justifica e lhes dá sentido. Festa e rito devem ser memória e comemoração. Com-memorar deve ser o pensar incessante do memorável como presença, em cada momento, numa participação e unidade total, completa, sempre presente, sempre doação. O memorável como necessidade é o sagrado. Na ânsia do ter, trocamos os muitos bens e penhores à nossa disposição ou passíveis de serem adquiridos, pelo único bem e penhor necessário. É uma troca que nunca nos satisfaz, pois o sagrado por nada pode ser trocado. Podemos trocar o que somos, nosso próprio, pelo próprio do outro? Não. Ou por bens? Não. Não consiste nisso a pergunta angustiante de Riobaldo: A “alma” pode ser vendida? Muito menos por bens que não nos incentivem na procura do bem, do uno, do belo, do verdadeiro/. E isso porque o mal, o diabo, não existe. Eles não podem nem devem substituí-lo. Então como podemos trocar o único necessário pelos bens que pretendem e dizem que nos vão satisfazer? Satis, do latim, significa: muito, pleno; e facere, do latim, significa: fazer. Nos fazer plenos nunca pode advir da quantidade, do muito ter, dos muitos bens que procuram satisfazer nossas necessidades, que não são nossas, mas que nos advêm de fora. Como conseguir a qualidade, o ético, o poético, o mítico, o sagrado? Não se pode conseguir o que já temos e nele vigoramos. Só podemos, isso sim, deixá-lo tomar posse de nós, afastando-nos das relações meramente entitativas, não as abandonando, mas não deixando que tomem conta do sentido de nosso agir e ser. E, no entanto, esse deixar é o mais difícil, o mais penoso. Por quê? Deveria ser o contrário. Deveria, em verdade, ser o mais plenificante, a única e verdadeira qualidade, a única e verdadeira necessidade. Deveria. Só somos pobres do que somos e ainda não temos, porque ainda não nos apropriamos do que nos é próprio. Por quê? Há sempre a tentação de achar soluções fáceis nas auto-ajudas, nas teorias e práticas salvadoras. E delas nos advém a insatisfação e muitas das vezes o desânimo, a falta de sentido de todo agir e procurar. Uma coisa é certa. O caminho é tão mais fácil quanto é mais difícil, não por ser difícil em-si, mas por acharmos que ele nos advém como um bem à nossa mão, aí pronto para ser adquirido, por nosso esforço e mérito. Tudo isso vem do fato de que o caminho é esse, temos certeza, e o procuramos. No entanto, não acontece. Vivemos, parece, sempre insatisfeitos e deprimidos, fora de nós. É que, de fato, a simplicidade da presença do sagrado nos afasta dele. Reconhecer essa presença exige uma renúncia difícil. O de acharmos que tudo depende de nossa vontade e iniciativa e que um investimento contínuo e até privações momentâneas são passos para um objetivo final, certo. Não é. É que o caminho do sagrado é sempre um caminho circular. Sai-se à sua procura e ele vai ser achado, eis o espanto, dentro de nós mesmos, junto e próximo ao que somos já desde o início, ou seja, em todo e qualquer passo e passagem de nossa caminhada. Renunciar ao “eu” para deixar vigorar o “sou” que todo eu é, é o único caminho de encontro da “medida” do eu de cada próprio. Essa medida é o sagrado e sua presença. Tal presença é tão plena e tão simples e tão afetiva e tão gratificante e tão presente, que ela nos envolve como o ar que respiramos, como as lembranças que nos sustentam e dizem nossas ligações familiares, afetivas e sociais. Não é simplesmente o sentido de tudo isso? Quando nos deixamos tomar por estas lembranças algo nos acontece que não é comum: parece que nos encontramos nelas como se no presente estivéssemos perdidos e extraviados, em “outra” realidade. E, no entanto, elas, as lembranças, estão dentro de nós, presentes, vivas, atuando, dando-nos sentido e nos ligando a uma memória que não é só nossa, é de todos que nos acompanham em nossa vida presente e passada. Essa memória é o sagrado, é a presença do sagrado. Portanto, não é algo passado e morto, é algo vivo e atuante. É a simplicidade do vigorar do sagrado. Memória se torna uma planície sem fim porque não tem começo nem altura nem fundamento. Nela nos afundamos, plenificando-nos. Não começa conosco. Pelo contrário, começamos nela. Presença, destino, memória, plenitude, tempo sem divisões, integração, sentido, eis o sagrado. Não somos mais algo ou alguém como um número numa família, somos a própria família, o próprio genos vigorando, dando sentido e se tornando a própria realidade. Não há a realidade, a família, e um eu. Há um todo único, íntegro, sem fendas, sem divisões, sem pressa, sem falta, sem contradições, sem desejos, sem vontades, sem oposições, sem futuro nem passado, pleno presente, enfim, um estar sendo porque é um ficar sendo sentido. Nada falta porque nada é demais nem de menos. Tudo vive e se dá na justa “medida” que é o sentido. A “medida” que nos mede e nos dá densidade: presença do sagrado. Esse é o sagrado que não pode ser esquecido, mas também não pode ser conquistado como se conquista um saber que não se tem e alguém nos pode dar. Há conquista, sim. Mas é uma conquista poética do que já em nós vigora. Há uma conquista, sim, mas que exige de nós a abertura e escuta do que em nós é o próprio de nós mesmos. E é o mistério em seu sentido. E quem se dispõe a ser o próprio e deixar o ser que cada um já é tomar o eu e deixá-lo vigorar plenificando-o? Não é uma plenificação que já esteja pronta e acabada, aí à disposição de quem se sacrifica e luta por ela. Não. É uma plenificação que está dentro de nós, mas tem que ser apropriada a cada segundo, a cada momento, a cada sorriso, a cada recebimento amoroso, a cada passo, a cada entrega, a cada disponibilidade para ser, simplesmente ser, sendo só ser, ficar sendo.

            Não é um isolamento solipsístico, não é um domínio nem do individual nem do social, nem do psicológico nem do epistemológico de qualquer sistema. É um vigorar da comunidade, da comum unidade, do sagrado. É um acontecer incessante e que tende para o que não sabemos, mas também não precisamos saber. Só precisamos ser, deixar vigorar a presença do sagrado. Sentido. Mistério.

O Genos e o sagrado

Essa presença da memória que a tudo e a todos envolve os romanos denominavam de uma maneira muito singular e própria: os deuses Lares/Penates. Mas não eram apenas os romanos. Eles se fazem presentes como sendo o sagrado em muitos povos. Esse esquecimento dos deuses Lares/Penates é que levou ao progressivo esquecimento do sagrado. Ao seu distanciamento, à substituição pelos ritos solenes, tão solenes quanto mais o sagrado se distanciava e mais e mais os ritos nos prometiam o que não podiam dar, porque nenhum rito pode dar se o que o motiva se faz ausente. O quê? O mítico, o sagrado. Os deuses Penates são a memória do Sagrado.

            Os deuses Lares/Penates moram a morada dos mortais, de cada família e de cada um dentro da família. Quando a morte visitava alguém e lhe dava uma plenitude de acabamento dentro da casa, da sua morada, então ele não morria, não se ia embora, não passava a uma outra vida. Continuava a sua vida na família, muitas vezes a quem eram oferecidas as oferendas como aquilo de que mais gostava. Ele estava e ficava ali presente. Era sendo a presença de todos os que nos antecederam. São os antepassados. Por outro lado, o nascimento trazia do mesmo modo a presença da memória, a sua continuidade e permanência, porque estava presente em cada um e vinha e ficava entre os que ali moravam. O futuro e o passado vivem no presente como a presença dos deuses Lares/Penates, do sagrado simplesmente. É a força e energia da presença do genos, do sagrado

            Quando hoje parece que o sagrado se ausentou e nos deserdou não é verdade. Precisamos de novo e sempre deixar falar e nos pormos em estado de escuta e vivência do sentido do sagrado em todos que estão à nossa volta e constituem a nossa família, isto é, o nosso genos. Este não somente é uma questão genética e sexual, é uma questão muito mais profunda, porque aí as palavras não deixam a linguagem falar, que fala em verdade nas palavras, mas não temos ouvidos para escutar a voz da linguagem. Esta é a presença do sagrado se dando como genos. Deixar os deuses Penates falarem e se tornaram presentes é deixar o genos ser genos, isto é, o sagrado ocupar o lugar que nunca perdeu, porque se ele se ausentasse não mais subsistiríamos em nosso ser. Deixar o sagrado retornar não é um voltar de algo ou de alguém que se ausentou e foi embora. Nós é que nos ausentamos e desertamos de nós mesmos, não do “eu”, que socialmente pensamos ser, mas do “sou” que todo “eu” para ser “eu” tem de ser. Só então há próprio (autopoiese). Quando o sou fala nele fala o sagrado. Então se fazem presentes e vigoram como proximidade os deuses Lares/Penates, o Genos, a Memória, o Sagrado.

            E como se dá o sinal dessa presença? Como se assinala seu vigorar? Como nos advém a sua proximidade, uma vez que somos finitos e não podemos suportar todo o fogo, toda a energia, toda a luminosidade de sua presença? Os ritos são isso e nada mais do que isso: a presença no limite do que não cabe em nenhum limite. Os ritos no tempo e como tempo, no espaço e como espaço, na memória e como memória, são as narrações míticas da presença do sagrado. São o nos deixarmos tomar pela sua presença e ação, uma ação sempre nova e inaugural a cada dia, a cada hora, a cada segundo e a cada momento. Nossa vida se dá, portanto, nessa tensão entre limite e não-limite, entre memória e esquecimento, entre luminosidade e escuridão, entre rito e mito, entre presença e ausência, entre proximidade e distância. Mas estas não são do sagrado. São de nossa condição de finitos. Quando superamos e esquecemos nossa finitude, então nos abrimos para a presença e vigorar do sagrado. Isso acontece quando deixamos que as obras de arte aconteçam. Elas nada mais são do que a presença e proximidade nos limites do não-limite e da plenitude. Isso acontece quando os deuses Lares/Penates tomam conta da casa e de suas dependências, de seu vazio, onde habitamos. Deixar a obra de arte operar é deixarmo-nos tomar por esse vazio e proximidades plenas. Só moramos junto aos deuses Lares/Penates quando nossa casa é a casa onde vigora o vazio que a plenifica de sentido, um sentido poético de estar e ficar acontecendo. Linguagem. Isso é o operar das obras de arte: manifestação do sentido de Ser. Por isso, elas não dependem de quem as realiza, mas do que na realização se faz presente: o sagrado; e as conduz e produz na sua condição de obras de arte. Porque nelas quem se doa doando-se-nos é o próprio sagrado, o sentido do destinar-se do Ser. A arte é simples como o sagrado é simples. É próxima como o sagrado é próximo. A arte é o próprio do que somos, é o próprio ser acontecendo em nós. Quando as obras de arte nos lançam na proximidade do que somos então sabemos que são obras de arte. E ver e vivenciar e presentificar as obras de arte se torna um rito e leitura do sagrado, um rito mítico plenificante que nos resgata de nosso distanciamento e esquecimento do que nos é mais próprio e único necessário: o sentido, o sagrado. Não é uma decisão pessoal nem o efeito de alguma decisão coletiva ou externa. É a tarefa de todos que participam e moram na casa dos deuses Lares/Penates. Linguagem. Operar da musicalidade. Casa não são os limites dos cômodos, é o sentido que nos acolhe em sua plenitude vazia e próxima. Tão próxima que até a somos. Somos a própria presença do sagrado. Somos doações dos deuses Lares/Penates, o vigorar no genos do Sagrado. Portanto, nesses nossos tempos de indigência do sagrado não é necessário ir procurá-lo longe nem em algo externo a nós. Pede-se apenas o deixarmos de olhar e não vermos para vendo olharmos a sua proximidade e vigor que sempre já nos toma e dá sentido. Para isso é necessário que as múltiplas e ricas manifestações artísticas se tornem o que são: manifestações da presença do sagrado. Por isso toda arte é sempre coletiva, mas o cultivá-la é o agir de cada um, é o capinar sozinho. É que no capinar se exerce a preparação do que vai ser e está sendo cultivado. O próprio que em cada um de nós já vigora. O capinar é o agir poético de cultivo do que como sagrado está pronto a eclodir. Tal eclosão é o advir do sagrado enquanto verdade e sentido. É na verdade eclodindo que se faz presente o sagrado como vigorar que não cessa de ficar sendo memória. Os deuses Lares/Penates são a Memória sempre nos convocando em nossas invocações a escutarmos a presença de sua Voz. Tal Voz é a fala das obras de arte: musicalidade. E nada mais. Mais nada. Nada: sagrado vigorando. Presença. Próprio. Ficar sendo. Linguagem. Sentido.

 

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