21 agosto 2009

Originário e época: o círculo poético

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Trata-se da questão da relação do círculo com a dobra, onde vamos ter a época. Todo método se funda no círculo poético da época. Diz Cláudio Hummes: “Quando no início da metafísica eu pergunto sobre o seu ponto de partida, eu já sei – como condição de possibilidade de perguntar – qual é o sentido de uma pergunta, como a pergunta se diferencia de uma resposta; já sei algo sobre o que é um conceito, pois é ele quem dá conteúdo à minha pergunta; já sei algo sobre a lei da contradição, pela qual a pergunta recebe um sentido uniforme para todos os que me ouvem; já sei algo sobre a relação entre linguagem e expressão do conteúdo de minha pergunta etc.; quer dizer, já sei implicitamente muitas coisas da lógica, sem nunca tê-la estudado sistematicamente” (Hummes: 8).
Disse João Pinto Moraes: “Nosso coração é uma terra que ninguém habita”. Podemos fazer a glosa: O coração do homem é terra que ninguém habita. Ou ainda: O coração do homem é linguagem que ninguém fala. Ou ainda: O coração do homem é fala que ninguém escuta. E por isso não cabe na compreensão, na lógica do mostrar-se e demonstrar-se. É que aí habitar é muito mais do que ocupar um espaço num tempo. Habitar é fundar lugar, a tensão de coração e habitação, é tornar-se o originário do coração. E o coração como originário faz do ser o noein e do noein o ser, que é o coração vigorando como terra e habitação, assim como o noein é o vigorar do ser.
O ser, que é o coração, nenhum eu pode habitá-lo, só abismalmente o próprio sou do eu. Por isso, o eu se defronta com o abismo do sou no que o eu é. O eu pode ser uma ilusão, o sou jamais. O coração é muito mais do que a compreensão, pois também abriga e se torna a não-compreensão, não como simples negação, mas como o não-limite de todo limite, como o inacessível de todo acolhimento e da proximidade de toda distancia. O coração é muito mais do que a compreensão porque é fonte de toda compreensão, assim como o silêncio é a fonte de toda fala. O coração nunca se pode tornar um conceito. Ele, ao ser “terra que ninguém habita”, é a concretização da questão, em que o mistério se dá como presença. A questão é algo que nos tem e jamais pode ser reduzida a conceitos.
O sou do eu nunca pode ser ocupado por qualquer outro sou. Caso isso acontecesse algum sou seria anulado, deixaria de ser, porque todo sou é único e abismalmente solitário. A solidão do eu é o sou, na medida em que todo sou é sou do ser. Só por sermos é que somos solitários. Mas é uma solidão que acolhe e plenifica quando o ser torna-se para nós o sou. Nessa solidão, o outro só pode ser acolhido amorosamente como o não-eu do eu, como o não-sou do sou, mas jamais se pode tornar outro sou que não o que ele é, ou seja, ser ocupado e habitado pelo que não é. O coração viverá como terra que ninguém habita, a solidão de só poder ser o que ele mesmo não-é. E é deste não-ser que haure o vigor de ser coração e poder viver sem ser possível qualquer coração-habitação que tenha outro habitante que não o que ele é. O amado será um inquilino como o próximo, ainda que sempre como o mais próximo. Este é o paradoxo do amar, só vigorar na proximidade, mas isto não é uma questão de individualismo e isolamento. É a nossa condição de jamais podermos ser senão o ser que somos e só como proximidade podermos ser o amado.
A proximidade não é negativa, mas a possibilidade máxima de poder afirmar no amar a diferença que é o amado. Amar não é anular, mas afirmar originariamente aquele que sendo me é o mais próximo. Só assim podemos co-habitar na proximidade do coração. Amar é co-habitar o coração. A proximidade é mais do que compreender o outro, é aceitá-lo como o que é e não pode deixar de ser. Paradoxalmente o coração não é apenas receptivo, mas tende à apropriação, confundindo muitas vezes o que é próprio com tudo que é. E assim tender a se apropriar de tudo que se deixa apropriar, mesmo que este apropriar seja tomar posse do coração do amado, não deixando que o amado seja o amado, mas o que já não é nem pode ser, por ser propriedade do coração que pretensamente se tornou o habitante do coração do amado. E em algum momento chegará a hora da verdade: “Nosso coração é terra que ninguém habita”.
Nessa afirmação está toda a lógica e não-lógica, ou seja, a causalidade do que se diz e do que eu compreendo quando se diz. Porém, ao mesmo tempo, está o que não cabe na lógica, isso que no coração não é habitável. Esse coração que ninguém habita é como o silêncio impenetrável e jamais redutível a qualquer fala ou gesto, é como o eu irredutível naquilo que o eu é, isto é, o eu que eu sou, mas igualmente o sou que o outro é. Esse coração que ninguém habita é o abismo da solidão e o não-limite do limite da lógica e da própria compreensão.
No limite, apreender o não-limite é que constitui propriamente o método poético. O fazer poético da obra de arte. Por isso, à arte vai corresponder o pensamento. Tanto no pensamento como no poético vamos ter sempre uma dobra que se desdobra arrastando consigo a causalidade para a não-causalidade, que funda toda causalidade, ou seja, é a questão indo além e aquém do conceito. Quando se pergunta e se dá uma resposta, esta só pode vir como resposta porque já está dentro da pergunta e por isso mesmo não esgota o poder de perguntar da pergunta, como um rio que perdesse o contato com sua fonte ao se constituir numa corrente. Até onde o arkhé/arkhonte é um retorno à fonte no seu chegar ao mar (arkhé significa princípio, o arkhonte, o príncipe, o que comanda e está sempre à frente)? Há retorno aí? Não é aqui que surge a dobra da arkhé da correnteza do rio se tornar pleno e realizado como rio em sua chegada ao mar? E onde a chegada não significa ter atingido qualquer finalidade causal, mas simplesmente ser sem porquê, ter reencontrado ao final o seu elemento, (uma chegada como a da vida à morte), não o fim, um fim que não é fim como finalidade, mas a reentrada no seu elemento, o elemento que alimenta a fonte de onde o rio se originou e o acompanhou em sua caminhada. No mar o rio se dissolve ou se reencontra com sua origem que nunca o abandonou como o originário que não cessava de originá-lo? A questão é a fonte que alimenta o rio da pergunta e a trajetória da resposta como conceito.
Na questão que gera a pergunta, a resposta não é algo externo ao que na pergunta se pergunta nem efeito de uma causa. O originário, a fonte, é o Mesmo, mas não é a mesma coisa da resposta, daí que seja necessário retornar à resposta para pensar nela o originário, para pensar nela o não-pensado, e, pensando, dar nova resposta. Não é um retornar que reinicie a caminhada do já percorrido, do já respondido, mas é um retornar ao originário que nunca deixou de vigorar na resposta, por isso mesmo nenhuma resposta esgota o que a origina, apenas houve um desdobrar que não cessa de se desdobrar. Acontece como disse Heráclito: nunca entramos duas vezes no mesmo rio. Na realidade, entramos e não entramos duas vezes no mesmo rio, isto é, entramos duas vezes e mais e sempre no originário do rio, mas como nossa condição é o limite do não limite, como limite não entramos nunca duas vezes no mesmo rio que não cessa de fluir e de tornar o limite não-limite, em que o originário não cessa de originar.
É este o círculo poético. Neste, cada resposta é a obra, ou seja, o que como arte se faz presente e vigora na obra, que é ao mesmo tempo o mesmo e não é a mesma coisa. Esse mesmo jamais pode ser um conceito, uma teoria, um suporte. É o próprio mistério do vigorar da arte na obra de arte. Eis o motivo porque a arte é um enigma e qualquer teoria-sistema uma nescidade. Assim podemos dizer que as respostas à pergunta da questão é que constituem as épocas, mas não é nas suas formas que vamos compreender e apreender a questão que as origina e as faz vigorar Será nas suas formas, como o pensado, que vamos tornar a pensar o não-pensado, a nos abrirmos em escuta do vigorar do mesmo. Prender-se às formas e classificá-las é perder o essencial, puro formalismo causal. Ler dialogando com as obras é estar sempre pensando no pensado o não-pensado.
A época é o que se dando como resposta se suspende, isto é, se retrai como o não-pensado da pergunta originada na questão do questionar. Este é o vigorar da questão. Época como suspensão é o vigorar do que se dá, fundamenta e se presenteia retraindo-se. O que se faz presente traz em si o vigorar da ausência como o próprio vigor do que se dá e está presente. Só podemos pensar uma sucessão de épocas se ficarmos presos às formas da resposta como o pensado, o criado, vendo nelas uma sucessão causal, formal. E será pior ainda se reunirmos as obras em suas diferenças numa uniformidade formal. Época não é jamais reunião de formas sem diferenças e vigor poético.
Mas se notarmos bem, o que na questão nos move e promove como ausculta não é a resposta, mas o que na resposta se retrai e nos atrai: o não-pensado e o não-criado, ou seja, o originário, que não cessa de nos mover como a fonte move o rio, como a morte move a vida. Porque não é só a vida que não cessa de fluir, nela e com ela fluímos sempre em contínuo processo. O não-pensado e não-criado e não ex-perienciado é a terra não-habitada do coração, que é a linguagem das línguas. As épocas configuram a realidade como mundo, mas este, como resposta, é motivo para tornar à questão, isto é, para nos abrirmos para a ausculta do que na resposta da questão não foi habitado, pois se tornou língua da linguagem, limite do não-limite. Só assim somos o que somos como diferenças e não-limite. Coração sem habitante.

Bibliografia

HUMMES, Cláudio. Metafísica. Mimeo, 1964.
João Pinto de Moraes é um homem simples, com primário, 84 anos, pai de minha esposa, Elenice. Sentença ouvida por ela e guardada com o desvelo de filha.