10 agosto 2006

Atualidade e permanência da Poética da poiesis




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Poética
 
A poesia se cria
pensando-se
se pensa criando-se:
poéticas.
As poéticas são sempre concretas e constituem todo ato e obra de criação, isto é, fundam-se na essência do agir. Manifestam a própria essência do agir. Isto não é tão difícil de entender. Poética, poema, poeta, poesia, todas estas palavras são palavras da póiesis. E esta é o agir se fazendo linguagem como dizer do ser. O dizer e nomear do ser é a linguagem enquanto sentido inerente à póiesis. A póiesis que se torna sentido no dizer e nomear da linguagem é o sentido do ser. O sentido do ser é a verdade do ser. A verdade do ser é o nomear da linguagem como manifestação da póiesis. A póiesis é o sentido e a verdade do ser enquanto linguagem que nomeia.
Na sua reflexão em torno da, sobre e da essência da póiesis Heidegger tomou dois caminhos complementares. Num primeiro escreveu um longo ensaio sobre a obra de arte: O originário da obra de arte. Nele, centraliza a criação artística ou obra de arte em torno de quatro palavras essências: Dichtung (póiesis), Sprache (linguagem), Sagen (dizer desvelante) e Nennen (nomear). Estas quatro palavras fundadoras constituem o horizonte de reflexão e de apreensão da obra de arte. Mas já no ensaio sobre a essência da póiesis em Hölderlin ele configura esse horizonte em torno de “Fünf Leitworte”: Dichtung (póiesis), Sprache (linguagem), Gespräche (diálogo), stiften (fundar) e dichterisch whonen (morar/habitar poiético). Notemos que Heidegger intitulou seu ensaio: Hölderlin und das Wesen der Dichtung. E para indicar a configuração e universo em que se estrutura seu ensaio escolheu cinco passagens da obra de Hölderlin. A estas passagens ele deu o nome: Die Fünf Leitworte. Eu sugeriria a tradução: Hölderlin e a essência da póiesis. As cinco palavras matrizes e motrizes.
A importância da escolha de quatro palavras no primeiro ensaio e de cinco no segundo não são aleatórias, até porque há repetições. Elas constituem o que se poderia chamar de Poética Ontofenomenológica ou simplesmente Poética da Póiesis. Dela, nela e por ela advém a permanência a atualidade da Poética. Se o primeiro ensaio se centraliza muito mais numa aparente teorização como qualquer outra teorização, o segundo já escapa mais facilmente dessa falsa imputação, pois as cinco palavras motrizes não são tiradas aleatoriamente de qualquer teoria filosófica, mas da própria obra de um grande poeta, que, aliás, Heidegger considera o poeta. Uma vez que uma tal reflexão se faz a partir de dentro de uma obra poética, podemos sem dúvida nenhuma considerá-la como sendo a Poética de Hölderlin. Mas será que Heidegger quer tratar especificamente da Poética de Hölderlin? Isso fica evidente que não no título, pois nele nos enuncia explicitamente: ... a essência da póiesis. Há aí duas questões básicas, fundamentais para o tema que ora nos pré-ocupa, ou seja, a permanência e atualidade da Poética:
1ª. Essência; 2ª. Póiesis.
Não estaremos nós querendo reviver através de Heidegger e da insistência na Poética aquela idéia ultrapassada desde o século XIX da existência de uma poética padrão, base e paradigma de todas as criações. Essa idéia o romantismo enterrou. E Heidegger vai justamente trazer para cena um poeta que viveu o epicentro do furacão romântico em sentido original e originário. Isso só pode gerar confusões e mal-entendidos. Um pouco de historiografia refresca as idéias e esclarece o que demanda esclarecimento, bem no estilo da consciência crítica do Iluminismo. Talvez o leitor não se dê conta de que o Iluminismo exercitava tanto a consciência crítica que se esqueceu de exercitar e exercer a crítica da consciência. É neste “entre” que vamos nos movimentar em nossos esclarecimentos.
A poética abstrata e paradigmática foi substituída pelo estudo e abordagem científica da criação: a ciência da literatura, da qual nasceu a teoria literária, ou noutra vertente, pela estética, a partir de uma visão crítico-transcendental da filosofia, ou seja, do real e do lugar de ser-humano, como sujeito, na economia desse real. As diferentes correntes críticas trataram de atualizar os conceitos crítico-científicos em torno da arte. E as correntes foram-se sucedendo ao saber das teorias que se sucedem no suceder da história. E umas vão superando as outras numa evolução histórico-científica. As estéticas também se sucedem de acordo com as novas teorias filosóficas.
O final do século XX foi o tempo das metamorfoses e dos impasses tanto nas ciências como nas estéticas. De repente se deram conta de que o real é por demais complexo para caber em qualquer teoria iluminista e rácio-iluminante, e que a arte é por demais complexa para caber em qualquer estética ou em qualquer ismo. É que cada disciplina faz do real um objeto de estudo e conhecimento. E então houve um fenômeno muito interessante de dupla face. De um lado, o real foi sendo loteado em novos e novos conhecimentos, obrigando à criação de novas e novas disciplinas que continuam crescendo. Este crescimento surge da outra face. Se por um lado o crescente número de disciplinas não dá conta de abarcar a extensão do real, e a esta altura ficou complicado saber o que era o real, pois nem a própria macro-física consegue delimitá-lo, de outro lado os conhecimentos verticais cada vez mais especializados e micro, haja vista a própria micro-física, perdem estonteantemente o contato com o real, pois se isolam em conhecimentos tão especializados que nem se sabe mais como inseri-los na vida real e relacioná-los com as demais disciplinas. A crise da representação e a complexidade cada vez maior com que o conhecimento científico se defronta geram naturalmente a necessidade de saídas para os impasses. A Teoria Literária precisa se reciclar. Conseguirá?
E surge a inter-disciplinaridade salvadora. E ao sabor dos gostos se usa transdisciplinaridade e multidisciplinaridade. Só não se pensa o real, quando muito fala-se sobre o real enquanto “disciplinas”. Porém nunca se pensa o “inter”, o “trans”, o “multi”. Natural. A ciência nunca se pergunta pelo ser do real, mas tão-somente pelo como do real. Aliás, a ciência não pergunta, se perguntar deixa de ser ciência. Porque o inter-, o trans- e o multi- dão unidade às diferentes disciplinas, isso nunca é perguntado. Se surge um impasse e limites intransponíveis, faz-se uma reprogramação da pesquisa. A inter-disciplinaridade das ciências aplicada às artes só gera novos conceitos sem adentrar as questões da arte. Estas ficam e continuam à margem.
Uma vez que a teoria literária é sub-produto da ciência no sentido de uma disciplina entre outras disciplinas, o impasse da ciência e seus novos rumos geraram naturalmente novas correntes críticas. Mas elas têm que refletir os novos posicionamentos científicos. Na esteira do desconstrutivismo entram cada vez mais em cena Os estudos culturais. Uma coisa é certa: eles são o epitáfio da teoria literária. Até porque não há mais por que ainda defender a teoria literária. Os estudos culturais se voltam num movimento ambíguo para a desconstrução dos conceitos que davam base científico-filosófica à teoria literária e à estética, procurando trazer para o centro da discussão e embate com o sistema canônico dominante na e pela metafísica as culturas e identidades das margens. Isso exige o abandono do que até agora foi cientifica e filosoficamente (e será que ainda haveria diferença?) classificado como arte ou estética. Estes dois termos foram simplesmente abolidos. Mas será que dá para abolir as obras (a não ser que se tornem os novos bárbaros advindos das margens)? Se querem abolir os conceito filosófico-científicos não percebem a contradição em que se baseiam, pois para defender as margens o fazem através da afirmação conceitual metafísico-filosófica das identidades e das diferenças, onde estranhamente as diferenças das margens são mais diferentes do que as diferenças das não-margens, pois se movem num jogo conceitual dual, centro E margem, metrópole E colonial, masculino E feminino etc. etc. E não se colocam nunca a questão da unidade na diversidade, da identidade na diferença, da linguagem das línguas. Por isso há algo de estranho no querer atribuir sexo à linguagem. Claro que aí então linguagem não passa de um conceito entre outros muitos possíveis conceitos. Mas por que e como nos movemos e podemos nos mover nos conceitos? E se os conceitos fossem as linhas de uma rede sem nós? Ainda haveria rede? Ainda haveria texto/tecer? Um nó na rede articula sempre quatro caminhos possíveis etc. etc.
Eu creio que os problemas apontados pela pauta de tais estudos é real e preocupante, frente aos processos e às condições oferecidas a uma gama imensa das populações e aos problemas advindos dos deslocamentos culturais. Porém, fica sempre a questão se se tem que excluir a arte em sentido essencial como Heidegger a coloca frente a essas condições. Será que para a árvore crescer só é necessária ou água ou o sol ou a Terra? Será possível crescer sem os três? Será que a inclusão vai continuar metafísica: ou mental ou corporal, ou margem ou centro, ou masculino ou feminino? É aí que se faz pertinente a Poética da Póiesis como Heidegger a desenvolve e propõe. Para isso a primeira parte do ensaio O originário da obra de arte trata da questão da coisa e da sua tripla interpretação, fonte dos conceitos metafísicos, esses mesmos também usados pelos Estudos culturais e dos quais, aparentemente, procuram se livrar.
Já na primeira parte do ensaio Hölderlin e a essência da póiesis tematiza a questão da essência e vai distinguir a essência abstrata da essência concreta. E é no horizonte da essência concreta que vai propor a Poética da Póiesis. É essa essência concreta que vai permitir à Poética da Póiesis a sua permanência e atualidade. Por isso ao falar de cinco palavras motrizes e matrizes não as pensa de modo abstrato e conceitual. Elas são questões. E como questões elas se fazem sempre presentes tanto mais idênticas quanto mais diferentes. Também não se pode pensar a palavra como é definida gramaticalmente. Ela está no centro de uma questão radical e decisiva no surgimento da metafísica ocidental: a tensão entre verbo/palavra (essência concreta) e oração/proposição (essência abstrata). À palavra/verbo corresponde a sintaxe poética, já à proposição/oração corresponde a sintaxe gramatical.
A pertinência e o que é próprio do concreto não se desfaz igualmente num horizonte conceitual, porque aí ele é pensado a partir da essência da póiesis. E aqui se dá o círculo poético-onto-fenomenológico: a essência da póiesis é a póiesis da essência. Tudo na vida é ato. Em todas as ações do ser humano se faz presente a essência e sentido da póiesis. E isso é a arte.
A concreticidade e densidade poético-onto-fenomenológica da Poética da Póiesis faz dela uma reflexão inaugural pela qual algumas posições metafísicas e tradicionais não fazem sentido para ela. Por isso quando se parte de conceitos e se questiona a Poética da Póiesis, para quem se posiciona no horizonte desta tais questionamentos baseados em conceitos deixam de ter razão de ser. Para tornar mais claro o que aqui se quer dizer, passamos a elencar alguns desses tópicos com que se questiona a Poética da Póiesis. Tais tópicos fundados em conceitos metafísicos deixam de ser pertinentes.
O ser e o ser-humano
O ponto de partida da Poética da Póiesis não é o leitor, o autor, o meio etc. etc., mas o ser e o ser-humano. Tal posição poderia ser resumida assim: Viver é fazer da vida uma obra de arte. Para assim a vida acontecer é necessário fazer da arte vida. É sabido que os conceitos ocidentais em torno da arte provêm da filosofia grega. Ora, esta tem como centro uma teoria do ser e do ser-humano. Portanto, discutir tais conceitos é discutir essa teoria. Não se trata mais de discutir as teorias originadas por essa teoria. Daí a necessidade de dialogar com os gregos, não para ressuscitá-los, mas para retornar às mesmas questões. Partindo das questões fundamentais acima expostas, fica evidente que não se pode colocar a arte como sendo uma disciplina entre outras disciplinas. Isso muda tudo em relação à arte. Ela não pode ser aprendida nem ensinada. Ela funda saber e não conhecimentos rácio-conceituais. Ela é o próprio ser se manifestando em seu sentido como ser-humano ao lado do mito e do pensamento e de outros modos do ser e do ser-humano acontecerem tanto no ocidente como no oriente. A leitura da arte como uma disciplina, ao lado de outras disciplinas, decorre já de uma posição inicial sobre a questão central ser/ser-humano. Até onde essa posição metafísica tem variado nas diferentes estéticas e diferentes correntes críticas talvez não seja tão numerosa como as variadas teorias querem fazer crer. Neste sentido, a mais dissimulada em relação a essa questão fundamental é a sociologia do saber. Ao procurar mostrar a historiografia do saber dá a aparência dissimulada de que está desconstruindo a metafíscia, quando não faz outra coisa senão aprofundá-la pelo esquecimento da questão básica: o sentido do agir enquanto sentido do ser, evidentemente não hipostasiado em alguma identidade abstrata, mas pro-cura da cura. A maior prova disso é a superficialidade com que trata e iguala as obras de arte fundadoras a meros documentos de conhecimento. Jamais passa pelo seu horizonte a tensão entre saber e conhecer, entre aprendizado e aprendizagem, entre linguagem e código, entre questão e conceito.
A posição fundamental da Poética da Póiesis de modo algum quer negar ou nega as diferenças, pelo contrário, procura tanto mais pensá-las quanto mais as funda na identidade das identidades. Então aí não podemos confundir sintaxe-poética com sintaxe-gramatical. Não podemos confundir mesmice paradigmático-metafísica com o mesmo. A tensão permanente e irresolvida e irresolvível de identidade e diferenças, de questão e conceito, de Cura e pro-cura jamais faz da arte um domínio atópico e atemporal. Muito pelo contrário, a obra de arte é o operar da verdade, ou seja, do sentido do ser. Tal operar não opera no vazio abstrato e conceitual, opera nos leitores concretamente. Partindo deste horizonte surgem então alguns pontos contrastantes, onde se faz presente esse questionamento. E sem essas distinções não é possível começar a pensar o domínio originário em que se move a Poética da Póiesis. Vejamos alguns:
1º. A questão e o conceito;
2º. A história e a historiografia;
3º. O tempo e a cronologia;
4º. A Linguagem e o código;
5º. A arte e a cultura;
6º. O sagrado e o profano;
7º. Póiesis e práxis;
8º. Memória e lembrança;
9º. Mito e filosofia;
10º. Mito e teologia;
11º. Mito e ciência;
12º. Figura/vazio e forma/matéria;
13º. Póiesis e retórica;
Hà o perigo para a Poética da Póiesis de querer estabelecer mais proposições teóricas do que se abrir de fato para a escuta da obra de arte. Sem escuta não há Poética da Póiesis. E há aí também o perigo de querer combater as proposições teóricas da Teoria Literária opondo-lhe o estético e o sentimental, como sendo este o domínio da arte. É aí que é mais necessário insistir que o ser e o ser-humano são irredutíveis a qualquer teoria e que a questão em que se coloca a arte, ou seja, em torno do ser e do ser-humano, não é uma escolha do ser-humano, mas é uma doação do próprio mistério que é o ser e o ser-humano.
Então é fundamental perceber e se abrir para o “saber” da arte que só a experienciação da própria obra de arte pode doar. Há aqui, pois, um paradoxo. Ele se torna bem patente quando se aborda a questão do “como/entre/caminho” (meta-hodos). Por isso ele não se pode destacar e instituir-se de fora da própria questão ser e ser-humano. Toda experienciação do ser e do ser-humano em qualquer lugar e tempo já constitui ipso facto um caminho de linguagem e sentido de póiesis.
A questão do “lugar” da arte hoje é, pois, ambígua. 1ª. O lugar da arte frente ao lugar de outras disciplinas da ciência procura-se definir semelhantemente a um “lugar” com uma historiografia como as outras disciplinas já têm também. Mais ainda para a arte, dada a sua antigüidade; 2ª. Continua a haver arte, mas a sua classificação e até identificação se faz por algo que lhe é externo e que varia muito. Então a questão é: A arte hoje ainda radica na questão ser e ser-humano?
Não se pode esquecer que arte não sendo simplesmente historiográfica, mas fonte real da manifestação do real e do ser-humano, toda obra de arte continua viva. Nenhuma obra de arte nova supera ou exclui a anterior, assim como nenhuma interpretação nova de qualquer obra supera ou exclui a anterior. Claro que esta afirmação precisa de um maior aprofundamento. O que normalmente se chama “novo” real e novo homem real está desfocado previamente pela posição historiográfica em que “novo” versus “tradição” são questões reduzidas a “conceitos” e à sua mudança no tempo. Mas o que é o tempo?
Por isso os diversos tópicos que apontam para o horizonte da Poética da Póiesis devem integrar-se, acentuando que a posição poética não se traduz numa teoria ao lado de outras teorias. Esta talvez seja a questão central da Poética da Póiesis, não em relação à obra de arte, mas no confronto com a teoria pela qual se reduz a arte a uma disciplina ao lado de outras disciplinas e a um conhecimento historiográfico e epistemológico. Nesse sentido é essencial que se torne centro da reflexão a diferença entre questão E conceito, mas dando a devida atenção a esse E (entre) enigmático, pois senão cai-se facilmente numa nova dicotomia metafísica.
A posição se torna central e exige que a questão do método (não metodologia) seja a própria questão do ser e do ser-humano. É o que estacaremos no texto final sobre projetos de Poética da Póiesis. Ora, tais caminhos não são só uma questão de “interpretação”, mas manifestam claramente a questão fundamental de todo real e ser-humano real como uma tensão permanente de identidade e diferença. Por isso esta questão é a própria questão do método enquanto ato e seu sentido, provindo e se movendo na própria essência da ação. Então se explicita a questão da pré-compreensão, entre-compreensão e compreensão. Mas isto só é possível radicalizando a tensão questão E conceito.
Entender este lugar da Poética da Póiesis hoje em dia é muito difícil. Vejamos dois tópicos. Um circunstancial e outro interno. Para o real e o ser-humano real estruturados em disciplinas tudo se torna objeto de conhecimento, de aprendizado. Perdeu-se nisso a idéia de totalidade, de um todo, de uma unidade. Transitamos nessa segmentação sem nos darmos conta de como isso nos influi e desestrutura. E a arte que poderia fazer essa união, dada a sua originariedade permanente, é vista, estudada, ensinada e aprendida em classificações formais historiográficas, onde a história se faz em torno das obras enquanto formas e representações, e dos nomes dos autores, sendo estes mais importantes do que as próprias obras em seu operar. As obras se tornam, por seu valor cultural e historiográfico, objetos de um alto valor. Um dos absurdos freqüentes é usar a classificação ocidental da arte e dos objetos culturais em produções culturais de outros povos e de outros continentes. É aí que se torna gritante o quanto tais clichês classificatórios nada mais dizem do vigor das obras de arte. Contudo, no ocidente só predominantemente isso é ensinado e aprendido. A universalização da teoria literária e das estéticas é algo hoje estranho. Tirante esses extremos, fica para nós que vivemos e experienciamos a cultura ocidental uma questão de fato importante. A arte em seu vigor de operar, de atuar não se pode ensinar, não é passível de aprendizado. Claro só os dados historiográficos das formas, dos movimentos, dos autores e das circunstâncias histórico-sociais.
Porém, na horizonte da questão originária em torno do qual se move a arte enquanto criação, ela diz sempre respeito a uma experienciação, a um acontecer histórico. Não se pode, no entanto, criar de novo uma dicotomia entre aprendizado e aprendizagem, pois o tomar posse da tradição é impossível, hoje, de ser feita naturalmente pelo simples viver e conviver sócio-cultural dos mitos e ritos. O aprendizado é fundamental nesse sentido de tomar posse da tradição. Como, porém, tomar posse dessa tradição? Isto é, como levar, os jovens a tomar posse desse acervo? No fundo, esta questão nos coloca diante da difícil tarefa de pensar uma paidéia poética em lugar de uma paidéia metafísica. Isso não pode ser feito aqui. Porém, posso indicar algo numa breve reflexão. O ensino e aprendizado se estrutura num triângulo: Aluno, professor e o “objeto” de ensino e aprendizado. Qual o lugar do professor nesse triângulo? Ensinar significa aí o quê? Doutrinar, formar criticamente, formatar, educar? E qual o lugar do que se aprende na vida do aluno? Aqui duas observações breves antes de tentar dar qualquer resposta, aliás impossível neste espaço, dada a complexidade de tais questões. A relação entre professor e aluno é possível a partir do diálogo. Mas o que é o diálogo? Ele não pode ser reduzido ao triângulo comunicativo, como se quer fazer crer na ação comunicativa da sociedade de consumo. Conforme Heidegger o diz, ao estudar a essência da póiesis, citando Hölderlin, ele é constitutivo da própria questão originária do ser e do ser-humano. E tal essencialidade é enigmática. A outra observação nos advém das descobertas biológicas de Maturana e Varela ao proporem o conceito de autopoiese. Este rico conceito diz tanto respeito ao diálogo professor e aluno como ao que é ensinado. Se há uma auto-poiese, isso diz que o vetor central sempre é o aluno (e cada professor também é aluno), seja em relação ao professor, seja em relação ao que é ensinado. Cada um se “apropria” do que lhe é ensinado e oferecido como “alimento” de uma maneira “própria”. O ensino consiste essencialmente num processo de metabolização. Porém, qual é o “telos” para o qual se orienta a autopoiese? Aqui se gera uma grande perplexidade, pois cada um se vê tripartido em relação à autopoiese. A) O mundo ambiental-cultural hoje globalizado de oferta de bens e utensílios materiais e de bens de consumo culturais e artísticos, num movimento contínuo de apelos explícitos, implícitos e subliminares de consumo. Neste nível tudo é regido pelo estético, inclusive e sobretudo o próprio corpo e mente. E então a arte exerce um forte apelo, tendo em vista a sua aura sagrado-onto-mítica, mas reduzida a produtos de consumo; b) A formação profissional, objeto do ensino que começa hoje no jardim de infância e se estende pela vida inteira, ou ao menos até a aposentadoria, cada vez mais tardia. Tal formação permite a inclusão de cada um na sociedade globalizada de produção e consumo. Não há como fugir a estas duas dimensões na vida atual. A questão é: Como se pode fazer presente a arte em sentido originário e em seu vigor poético-onto-fenomenológico? Temos que ver ainda a terceira dimensão; c) A autopoiese nos diz que cada um se “constrói” como ente real. Isso indica que para além das duas dimensões externas em que se desdobra cada um há uma dimensão também interna, que constitui o projeto mais original e ao qual estão, ou deveriam estar?, integradas as duas dimensões anteriores para poder haver de fato uma autopoiese. Fique claro que os autores são biólogos e elaboraram o conceito de autopoiese tendo em vista as “unidades” biológicas (entes). Eles não tratam especificamente do ser-humano e até onde o fazem em relação ao conhecimento não conseguem ultrapassar os limites dos conceitos científicos. Pela autopoiese assinalada por eles há essencialmente em cada unidade uma “liberdade” necessária. Como se daria essa liberdade na unidade biológica ser-humano? Isso eles não discutem. Mas para a Poética da Póiesis é a questão essencial, básica, fundamental, porque ela introduz a unidade inerente às três dimensões e como tal dirige e orienta as escolhas, ou deveria, das três dimensões. Cada um em sua singularidade, em seu íntimo irredutível e singular deve se defrontar continuamente com essas escolhas e o que objetiva ao fazê-las. A liberdade nunca é vazia, indiferente, ela é poético-onto-fenomenológica, ela se coloca como telos necessariamente a sua realização plena e nessa consecução consiste a liberdade que se concretiza e orienta para o ser-feliz. Ser-feliz nada mais é do que consumar o que é no como é de todas as livres e necessárias escolhas. E aí é que entraria a obra de arte, a arte. Ela opera este eclodir em plenitude na medida em que alimenta o ser da autopoiese.
Contudo, as duas dimensões iniciais entram muitas vezes, para não dizer na maioria, em contradição e oposição a esta dimensão interna, de busca do que se é no como se é. Esse como se é destoa e distorce pela sua pressão brutal o que se é. E então vive-se num contínuo desfoque existencial que muitas vezes não permite nem o olhar interno, a afirmação do que internamente se pro-cura em toda pro-cura. Essas contradições não podem ser julgadas moralmente. Isso em nada ajudaria, pois só faz inverter o pólo do desfoque. De qualquer maneira essa tripla relação se funda e faz sob a égide e possibilidades abertas pelo diálogo. Ocorre que o diálogo em sua essência não realiza a concordância, mas a discordância enquanto embate de afirmação livre das diferenças, ou seja, da afirmação da autopoiese. Só assim se conquista a identidade e não se denega em alienações. É nesse sentido da afirmação da identidade como diferença que o diálogo faz parte essencial da arte, enquanto faz parte essencial da questão que lhe é inerente: o ser e o ser-humano. Realizar o telos da autopoiese é realizar o que é no como é, ou seja, o ser do ser-humano. Mas isto é difícil e é uma luta cotidiana e que só termina quando a morte advém como possibilidade última de plenificação.
Outra conseqüência do conceito de autopoiese é que as unidades naturais e vivas têm entre si uma ligação básica, fundamental, que preside ao projeto de cada um. Só pode haver essa unidade interna se há uma unidade das diferenças. Isto estabelece uma linhagem direta entre todos. Também a necessidade em que se moviam os outros seres vivos e da qual o ser vivo humano se separa deixa de ser tão rígida, porque há uma liberdade interna em cada um para se constituir na autopoiese. A religação dos seres vivos todos leva necessariamente a repensar o ser e o ser-humano em novas dimensões. E é esta abertura que pode levar a repensar o lugar da arte.
Perguntar, pois, hoje pelo lugar da arte é, no fundo e sempre, perguntar pelo lugar do ser do ser-humano e isto implica não simplesmente um lugar, mas uma abertura permanente de escuta do ser e do ser-humano. Esta abertura de escuta está cada vez mais difícil porque hoje o ser e o ser-humano se movem em meio a quatro grandes concepções, embora ele não se dê conta. Elas estão contidas em quatro verdades. 1ª. A mais imediata é ainda a verdade que rege o cotidiano. Ela se baseia numa forte intuição e vivências do corpo e do universo. O sol continua se pondo. A auto-preservação e os ciclos vitais dirigem ainda muito o uso da língua e muitas das ações. Por mais que se ensine que a lua é um satélite do planeta terra nem por isso ele deixa de comandar as marés, os ciclos menstruais das mulheres e outros “fenômenos climáticos”. Não há ciência nem religião que acabe com essa verdade; 2ª. A verdade científica. Ela preside todo o ensino, as pesquisas e até a produção hoje dos bens de consumo e culturais. É o domínio planetário da técnica. Seus resultados são tão evidentes que tal verdade se tornou o padrão dominante. Por incrível que pareça a própria dinâmica da ciência relativizou hoje muito essa verdade, mas como o ensino traz implícito a leitura verdadeira do real e essa leitura é comandada pela ciência, a verdade da ciência acaba por se tornar o grande paradigma. Até porque a ciência, por mais que mude, não abre mão da sua verdade. Esse monopólio precisa mudar tendo em vista os avanços mais recentes da própria ciência. A dificuldade está em que ela sempre se reprograma e se reafirma através de novas e contínuas pesquisas (haja vista a interdisciplinaridade). A maioria absoluta das verbas está destinada a essas pesquisas, por mais que o ser humano em sua humanidade esteja cada vez mais em perigo; 3ª. Diante das questões radicais e misteriosas que cercam e acompanham permanentemente o ser e o ser-humano, a vigência de uma transcendência encontra sua verdade expressa nas diferentes religiões. A verdade religiosa se torna absoluta para cada religião e a maioria nem se dá conta de que convive com outras verdades, como se houvesse mais de um ser e de um ser-humano e como se eles estivessem divididos. Professar de dia uma verdade científica e à noite num culto, seja ele qual for, uma outra verdade é absolutamente “normal”; 4ª. Há também a verdade da arte, dos mitos e dos místicos. A aura da arte provém dessa verdade. Ela é mais interna (entre), mais sutil e de um apelo profundo e enigmático porque não se deixa reduzir a formulações conceituais. Perguntar pelo lugar da arte hoje é perguntar por essa verdade. Querer fundar a arte numa verdade científica ou seja qual for é negar a própria essência da arte. Agora se torna claro que não pode se tornar uma disciplina ao lado de outras disciplinas.
A convivência destas múltiplas verdades causa muita perplexidade e explica em muito a aparente falta de valores, afinal, fundados em qual verdade? Isso provoca escolhas e caminhos equivocados e confusos. E muitas vezes leva cada um a exercitar uma falsa liberdade, pois tudo parece relativo. Só não se percebe que só é relativo em relação ao que já nos foi dado, como bem poietiza Fernando Pessoa na fala de Alberto Caeiro, no poema transcrito abaixo. Mas então deveria haver uma só verdade? Claro que sim, pois o real e o real humano são só um. Como diz Caeiro, o que muda não é a verdade, mas as experienciações da verdade. Tais experienciações manifestam essencialmente a riqueza do ser e do ser-humano.
Será que as múltiplas disciplinas e seu ensino nos preparam para a caminhada de realização plena enquanto livre ser-feliz? Como isso será possível se a disciplina insiste e persiste na fala do ensino e não tende a se abrir para a escuta, matriz da aprendizagem. O operar da obra de arte só é possível pela incorporação essencial, no diálogo, da escuta. Diante desse impasse multiplicam-se as vozes pela introdução da inter-disciplinaridade.
Em relação à arte e como aqui se pro-cura tematizá-la e apreendê-la dando-lhe o seu “lugar” concreto, a interdisciplinaridade toma dois rumos:
a) reafirmação da arte como disciplina ao lado de outras disciplinas, mesmo que ainda privilegiada. Tomando a rede como imagem-questão vamos ter o movimento das disciplinas e suas relações como as relações e comunicações das diferentes linhas dentro do tecido da rede, gerando uma complexidade de relações e diferenças enormes, proporcional aos conhecimentos das diferentes disciplinas e pesquisas. Maturana e Varela trouxeram uma grande contribuição ao cunharem o conceito de “autopoiese”. Combatem e desfazem-se cientificamente da “representação” e afirmam a singularidade e originalidade de cada “unidade” (ente) e de sua auto-criação. Mas eles ainda a vêm no entre-tecer da rede da vida, sem atentarem para as questões da identidade e da diferença.
b) A obra de arte não pode ser compreendida no jogo de uma tal interdisciplinaridade, pois ela ficaria ainda dependente das relações marcadas pelo lugar e pelo tempo de sua origem, sem possibilidade de compreensão de seu vigor originário. É o caso, por exemplo, de Rei Édipo, de Sófocles. Por mais que se estudem os entrelaçamentos disciplinares nada nos leva ao seu núcleo poiético pelo qual ela é sempre atual. É que precisamos considerar a interdisciplinaridade, neste caso, como tensão de obra e vazio da rede. Esse vazio de toda figura, esse silêncio de toda fala é a fonte e o vigor originário de todo agir essencial, de todo operar da obra de arte que reinventa o real e o ser-humano real enquanto acontecer onde o próprio real e o ser-humano real se apropriam enquanto ser e ser-humano. Então aqui fechamos e reiniciamos o círculo. E os tópicos anteriores podem ser retomados e re-lidos em novos sentidos e horizontes, uma vez que nos movemos já desde sempre no círculo poético-onto-fenomenológico da essência do agir. É nesta circularidade do círculo que consiste a permanência e atualidade da Poética da Póiesis.
Sempre resta para nós localizados num tempo e num espaço o desafio de dar o pulo no vazio, a que se refere Rosa no conto “O espelho”: “Depois, o “salto mortale” ... – digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas ... E o julgamento-problema [questão], podendo sobrevir com a simples pergunta [questão]: - “Vocês chegou a existir?”” (In: Rosa, Guimarães. Primeiras estórias. Rio, José Olympio, 1967, p. 78). As “comuns expressões, amortecidas ...” precisam ser inseminadas pelo vigor poiético da poiesis [Dichtung], da obra poiética, revigorando-as no horizonte originário das questões: O “salto mortale” deixa de ser simplesmente um número de circo para se tornar o salto poético-onto-fenomenológico.
Fernando Pessoa nos poemas de Alberto Caeiro também nos convida para essa travessia da enigmática linha tensional de limite e não-limite, de desvelamento e velamento:
O Universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

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