Póiesis e Linguagem: a questão da ação (Ver o outro ensaio intitulado: poiesis e linguagem)
Prof. Manuel Antônio de Castro
Curso de pós do 1º. S. de 2006-05-23
Podemos e devemos entender a póiesis como a essência do agir. Mas esta está estreitamente ligada à essência da linguagem. Em alemão diz-se póiesis Dichtung, poesia. Porém há também a palavra Poesie. Heidegger distingue as duas nas suas interpretações ou esclarecimentos da poesia de Hölderlin ou escrevendo sobre arte.
No parágrafo 207 de A origem da obra de arte, diz Heidegger em alemão:
Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich dann an den eigentlichen Ort der Erörterung, dorthin, wo das Wesen der Sprache und der Dichtung gestreift warden, alles dies wiederum nur im Himblick auf die Zusammengehörigkeit von Sein und Sage.
Traduzimos assim:
O que aqui vigora como digno de ser posto em questão se concentra, a partir deste momento, no lugar próprio da discussão, para lá, onde a essência da Linguagem e da Póiesis se tocam levemente, tudo isto, uma vez mais, na perspectiva de co-pertença de ser e dizer inaugural.
Como podemos observar, Heidegger é bem explícito aí em não confundir Linguagem e Póiesis. Também não os separa, pois se “tocam levemente” na medida em que há uma co-pertença de ser e dizer inaugural. Vejamos bem que toda a discussão do originário da obra de arte é remetida para essa questão essencial. Logo, a questão da Póiesis não pode ficar subserviente da questão da Linguagem. Mas isso é o que mais frequentemente acontece. Ao longo da trejetória ocidental a predominância do Logos e o uso de seis palavras para tentar (inutilmente) traduzi-lo, tudo isso acabou por deixar em segundo plano a questão da Póiesis. Isso ainda se deve ao fato de que, desde Platão e Aristóteles, todas as teorias da arte provêm do pensamento filosófico. Por isso, fica se debatendo essas teorias e sua superação e se esquece que a matriz própria da arte provém da Póiesis. Repita-se: não se trata de opor e esquecer a Linguagem. Trata-se de re-por a discussão e a questão no seu devido lugar: na Póiesis, sem abandonar a Linguagem. Mas jamais abandonando a Póiesis, como tem sido feito até aqui.
O que é a essência do agir? Como ela se dá na constituição do próprio Ser e do ser-humano? São as seguintes as traduções para Logos na tradição ocidental: verbo, palavra, discurso, sermão, causa, fundamento, razão. Se bem notarmos, não podemos confundir nunca Linguagem com razão ou todas as outras palavras usadas para traduzir o Logos, pois não podemos afirmar de maneira alguma que raciocinar ou racionalizar são a mesma coisa que pensar, refletir, especular. Para entendermos essa diferença temos que apelar, necessariamente, para a Póiesis.
Se, por exemplo, na música a análise material dos sons e da sua estruturação formal se faz bem através do Logos entendido como razão e raciocínio, de maneira alguma podemos entender o sentido da música através do emprego do Logos no sentido da razão ou mesmo das outras palavras com que se traduz o Logos. Afirmo com toda a certeza que aí, como diz Heidegger no parágrafo 207, o diálogo com a obra de arte, no caso a música, necessita da abertura para a essência da Póiesis. Por quê? Simplesmente porque a música (como a dança) eclode em seu sentido na tensão com o silêncio e na dis-puta entre mundo e terra em meio à clareira. Tudo isso pressupõe o agir, não qualquer movimento, mas o agir em que o Ser eclode como Ser
No parágrafo 169 Heidegger leva tão longe esta questão da Póiesis que a deixa em aberto em relação a todas as manifestações artísticas. Será que já pensamos suficientemente este convite ao questionamento do que é digno de ser questionado? Ele não diz isso a respeito da Linguagem, mas da Póiesis:
§169 – A Póiesis é aqui pensada em um sentido tão amplo e, ao mesmo tempo, numa unidade essencial tão íntima com a Linguagem e a Palavra, que precisa ser deixada em aberto a questão se a arte, em verdade, em todos os seus modos – da arquitetura até a poesia – esgota a essência a Póiesis. (Os grifos são nossos)
Reparemos que Heidegger insiste na unidade essencial íntima com a Linguagem. Ao destacar esta unidade essencial íntima, tenho por finalidade chamar a atenção para a Póiesis, para o sentido do agir, para o sentido do ser, para o horizonte onde devemos pensar não só a Linguagem – isto é evidente e corriqueiro -, mas a Póiesis, o que não é corriqueiro e uma falha clamorosa para nós que nos que buscamos o diálogo com as obra de arte. Por insistirmos APENAS na Linguagem facilmente caímos na concepção lingüística e gramatical da Linguagem. Isso fica evidente nas análises, nas classificações formais, materiais-conteudísticas, nos gêneros e na insistência em tratar as obras de arte como objetos distantes de nós e de qualquer ouvinte ou leitor ou espectador. Este empobrecimento da Linguagem e esquecimento da Póiesis é facilitado pela predominância do complexo conceitual constituído a partir da teia de conceitos resultante dos três conceitos básicos em que se estrutura a metafísica ocidental. Pois se ficarmos fiéis ao vigor da Linguagem, necessariamente teremos que nos abrir para a presença e atuação e fundação da obra de arte tanto pela Linguagem como pela Póiesis. Ligando este § com o 207 podemos notar que Heidegger não só nos lança no Abgrund – o deixar em Aberto – da unidade essencial e íntima de Linguagem e Póiesis, mas ainda nos provoca mais ao concluir o parágrafo 207 com os novos horizontes trazidos pela “... co-pertença de SER E DIZER INAUGURAL”.
Estamos traduzindo o verbo alemão sagen por dizer inaugural. Se no parágrafo
O esquecimento da Póiesis não se dá só porque a proposição (Logos/lógico), enquanto essência e fundamento causal substitui o Logos e a Póiesis originárias, enquanto Verbo e narrar inaugural, e se reduz a Linguagem a um instrumento argumentativo e lógico de verdade, bem na linha da conceituação do ser e da coisa pelas quatro causas instrumentais, em que o ser e a coisa são vistas a partir do instrumento, tornando-se a própria Linguagem instrumento. É bem mais complexo. A submissão e esquecimento do Verbo e do narrar inaugural à proposição veritativa e essencialista e ao conceito genérico e suas variantes em função dos predicativos traz embutido uma mudança do lugar da Póiesis e uma redução dramática. O que inicialmente foi, na linha do primeiro conceito de coisa, pensado como hypokeimenon, com as traduções para o latim e a predominância da proposição torna-se o sujeito da proposição e, automaticamente, o lugar da ação. Não se percebeu o deslocamento que houve da ligação do Verbo e do narrar inaugural, como sendo o próprio ser enquanto Linguagem e Póiesis, ou seja, o Ser, para o hypokeimenon lógico-proposicional, em que nesta se localiza agora a Póiesis, o Verbo, o narrar inaugural. Identificado o sujeito com o que pratica a ação, com o que “fala” como enunciado, o sujeito, que era o hypokeimenon, essa misteriosa essentia, ousia, isso é identificado ao Logos divino na Idade Média e, posteriormente, na Idade Moderna, ao sujeito do penso, logo existo, ou seja, ao sujeito racional e enunciador.
Numa mistura do primeiro conceito com o terceiro, a obra passa a objeto de uma análise como busca das causas explicativas, primeiro conceito, e, ao mesmo tempo, tais causas apontam também para o sujeito formal, terceiro conceito de coisa, ou seja, um sujeito narrador, enunciador, gramática da narrativa, assumidor de múltiplas perspectivas, modos de narrar, mediador especulativo e consciência especuladora conceitual. Como um tal sujeito não pode fundar o real, funda e é a única coisa a que temos acesso, a representação do real. Esta duplicidade não vê de fato no abismo em que transita. A Póiesis a esta altura está totalmente esquecida nos labirintos das classificações rácio-conceituais, entregue ao poder e despoder de um sujeito e sua imaginação que a tudo podem imaginar e sustentar enquanto sujeito.
Mas será que esse sujeito é, de fato, o sujeito da Póiesis? Por que não? Com seu agir ele a tudo transforma em objetos e instrumentos. Seu agir causa efeitos, efetua o real e o real se torna real na medida em que é o real efetevo, real verdadeiro. E o mairo de todos os instrumentos é a linguagem. Uma linguagem rácio-conceitual-insturmental. Esta incorpora como instrumento a própria Póiesis, daí não ser mais necessário falar em Póiesis em nenhuma instância, sobretudo nas artes, pois estas, na conjugação do complexo conceitual instrumental do primeiro conceito e do terceiro resolvem todos os problemas – do narrador às formas narrativas, das teorias às vanguardas, das modas aos modos, posturas e atitudes, dos ismos às classificações, das ideologias às funções da arte, das histórias das artes aos museus e coleções particulares. Tudo em nome do sujeito.
Onde a força da palavra e do narrar inaugural? Onde o Mundo e a Terra? Onde a Linguagem e a Póiesis? Onde a memória e o tempo? Onde o acontecer apropriante e o destino? Será que adianta querer reinventar sempre conceitualmente o sujeito quando não se pensa a sua origem conceitual? Por que será que na Moderniidade se passou a falar cada vez mais em sujeito pessoal, histórico, social, cultural, de gênero, identitário, globalizado, ocidental, oriental, técnico etc.? Mas jamais se pensa a Linguagem e a Póiesis em sua essência íntima e na co-pertença de Ser e narrar inaugural. Por que será? Por que se pensa o corpo como sujeito e não se pensa o ser-corpo como Linguagem e Póiesis? Por que tememos pensar a essência do agir como essência da própria arte, pois não é a arte o próprio apropriar-se do que é próprio tanto ao ser como ao destinar-se do ser, pois o próprio de ser e destino do ser é o mesmo e este só se dá como acontecer. Acontecer apropriante e essência íntima de Linguagem e Póiesis são um e o mesmo.
No famoso ensaios intitulado Carta sobre o humanismo, assim o começa Heidegger:
De há muito que ainda não se pensa com bastante decisão a Essência do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade.
(Podemos notar aqui como o agir de que Heidegger fala está subordinado ao terceiro conceito de coisa, ou seja, aquele que se baseia na coisa como instrumento e dependente do agir do ser humano enquanto causa eficiente. Este agir, que ainda se ligava no pensamento de Aristóteles ao ergon e, portanto, à physis como tensão de dynamis e energeia, deslocou-se para a causa eficiente localizada no ser-humano somente e que nada mais tem a ver com a Póiesis da physis e muito menos dos mitos enquanto palavra do sagrado, do inaugural. Por isso, em nota à tradução do texto de Heidegger para o português, Emmanuel Carneiro Leão diz: “Efetividade=Wirklichkeit: nessa segunda frase Heidegger caracteriza o modo em que se tem interpretado o agir, jogando com o radical wirk, em seu tríplice emprego: como verbo, wirken, causar efeito, desensvolver a força de uma eficiência no sistema de causa e efeito; como substantivo concreto, Wirkung diz o efeito, o resultado da eficiência causal; e como substantivo abstrato, Wirklichkeit é a realidade do efeito. Com isso se visa a exprimir que as três modalidades pertencem à mesma interpretação. Pode-se traduzir essa sistemática da causalidade do seguinte modo: “só se conhece o agir como efetuação de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade” “).
A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar.
(Nota do tradutor: Con-sumar é em alemão vollbringen. Essa palavra é composta do verbo bringen, levar, conduzir, e do adjetivo voll, completo, pleno, cheio).
Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude, producere.
(Nota do tradutor: Composta do verbo ducere, levar, e da preposição pro-, diante de, em frente de, pro-dução é a instauração de vigor que leva o modo de ser de algum ente para a frente da presença histórica).
Por isso, em sentido próprio, só pode ser com-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser.
(Nota do tradutor: Re-ferência é
Essa restituição consiste em que no pensamento o Ser se torna Linguagem. A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”.
O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo Ser a fim de lhe proferir a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se (Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967, p. 23/24)
Heidegger diz que os pensadores e os poetas servem de vigia ao Ser. Então os dois se movem na essência do agir. Tentemos, seguindo a indicação do pensador, substituir o pensamento pela póiesis e veremos que a tensão pensador e poieta, e linguagem e póesis se equivalem, se tocam levemente.
A Póiesis con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. A Póiesis apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, na Póiesis, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”.
A Póiesis não se transforma em ação por dela emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. A Póiesis age enquanto age. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. A Póiesis, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de lhe proferir a Verdade. A Póiesis con-suma esse deixar-se (Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967, p. 23/24).
Se lermos o mesmo texto de Heidegger com a modificação proposta, creio que fiquem mais claras duas coisas: 1ª. A profunda ligação de pensamento e Póiesis; 2ª. A tensão evidente entre Linguagem e Póiesis. Se bem notarmos, ao tentarmos substituir linguagem por póiesis nota-se imediatamente algo estranho. Esta estranheza fica um pouco compreensível se ligarmos a póiesis ao tempo e a linguagem à memória. Por isso a proximidade de pensamento e póiesis não é a mesma da linguagem e póiesis. Tanto pensamento como póiesis são duas modalidades do agir do Ser em sua manifestação como Verdade. Isso não acontece com linguagem e póiesis, pois estas se fazem tanto presentes no pensamento como na póiesis. A recorrência de póiesis se explica por um fato muito simples. Como essência do agir nunca pode faltar, mas também não pode faltar a linguagem. Porém, isto é evidente. O que se tem em vista é que no percurso do ocidente a póiesis foi silenciada e isso implicou em silenciar e esquecer o sentido do ser enquanto arte. Se não se pode aproximar da arte sem levar em consideração a linguagem, devemos igualmente dizer e com a mesma propriedade que não nos podemos aproximar dela sem levar em consideração a póiesis.
Isto tem uma grande importância para as artes onde não se faz presente a possibilidade de transformá-las em linguagem instrumental, como ocorre com a maioria das artes. A essência de tais artes é acessível se nos voltarmos para a póiesis, para a essência do agir como o Sentido do Ser. Isto significa que devemos nos voltar essencialmente para a essência do agir no diálogo com as obras de arte. É a essência do agir que nelas age. Por isso devemos nos deixar atrair pelo agir que nelas e com elas se faz presente.
Nesse sentido, podemos fazer uma paralelismo interessante. Diz Heidegger do pensamento: “O pensamento age enquanto pensa” (idem, p. 25). Podemos dizer:
A póiesis age enquanto poietiza.
As obras de arte agem enquanto operam.
Ora è a este operar que deve visar todo diálogo com as obras de arte.
Porém, não podemos esquecer que toda obra é um “isto” que opera enquanto se estrutura. Seria um grande engano achar que a estrutura consiste na forma e que o que opera consiste na matéria da forma. Analisando a forma/estrutura acharemos a matéria. O operar não vem da estrutura nem da matéria. Simplesmente porque a visão da obra nesse conceito não parte da obra, mas do instrumento e das causas que a explicam. Todo “isto” precisa, necessariamente, de uma figura, de uma estrutura, tendo em vista que a physis é numa primeira instância ta onta, a totalidade dos entes. Esta totalidade é própria physis como póiesis. Sem esta não há multiplicidade. Mas ela, nessa multiplidade (panta) ama retrair-se (kryptestai) e nisso consiste a sua unidade, ou seja, a memória como linguagem. Por isso a linguagem é o cuidado da unidade, o que foi, é e será.
A confusão provém de um fato muito simples. Há duas modalidades de agir como Heidegger explica no início do ensaio. Isto está dito por Heidegger da seguinte forma: O primeiro agir causal produtor de efeitos, o real efetivo: “Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente”. É o mundo dos entes enquanto “objetos”; o segundo agir não-causal: “O pensamento [e as artes], ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade”. É o mundo enquanto abertura e clareira do Ser na sua Verdade. Ainda há um terceiro agir de que trataremos mais tarde, mas que é a fonte e funda estes dois.
Aos “dois” agires correspondem também “duas” linguagens (dois e duas entre aspas porque na verdade só são “agires” na vigência do terceiro). A linguagem instrumental e a linguagem poética ou das artes e do pensamento. De novo podemos perceber que não é possível falar da linguagem em sua duplicidade sem falar no agir, isto é, na póiesis. Mas aqui se manifesta algo estranho. O agir que se dirige aos entes é o agir instrumental. Porém, este agir não existe independentemente do agir poético, ou seja, da póiesis como tal nem da linguagem como tal. Então como se dá a referência entre os dois?
Heidegger ao falar da interpretação da coisa como quatro causas, onde predomina e se torna visível a causa material e a formal dando origem ao instrumento que se cumpre como ente em sua serventia para algo, dia que há algo de misterioso no instrumento em relação tanto à Terra como ao Mundo. É que na referência ser-humano e Ser o instrumento é portador de uma “confiabilidade”. De onde vem e o que quer dizer então essa “confiabilidade”? Heidegger não o diz. Mas pensemos. Hoje a physis não aparece apenas como ta onta, mas também como o “mundo dos objetos”, a que Heidegger se refere dizendo-os Gestell: o conjunto de tudo que está dis-posto. Na ordem da physis esse Gestell é de algum modo ainda uma doação do próprio ser, um dos modos como o ser se vem destinando. Nesse destino, de onde vem a “confiabilidade”?
Olhemos o ser-humano em sua facticidade. Ele é um ser-do-entre: entre limite e não-limite; entre vida e morte; entre ser e não-ser. Não podemos dizer de maneira nenhuma que o agir causal se funda a si mesmo, mas é o próprio agir do Ser enquanto póiesis e linguagem, só que voltado para os entes. De um lado estes entes dão na facticidade uma convivência e uma integração com os demais entes e até aí há sem dúvida uma “confiabilidade”, além do fato que nesse agir de algum modo, como decorrente do outro agir, o ser-humano se realiza numa “profissão”, ou seja, num conhecimento técnico-conceitual, na instrumentalidade. Mas no fundo, essa confiabilidade e o próprio sentido da instrumentalidade não pode vir dela mesma, pois aí seria a physis reduzida a matérias e formas, embora esta seja uma dimensão possível da physis. Ocorre que a physis além de se doar como ente, como matéria e formas, ama retrair-se. Mas este é o terceiro agir que está em tensão com o os dois primeiros. De onde vem a confiabilidade? Não pode ser deste terceiro, embora deva se fundar nele, mas então de onde vem no sentido de termos na confiabilidade uma confiança que como tal permanece não só em meio à multiplicidade mas também em meio às mudanças. Então a confiabilidade tem um duplo aspecto: em relação aos entes como tais, os instrumentos, os objetos; em relação ao fato de que o instrumento aponta para uma certa constância, uma certa disponibilidade. Esta provém da physis na constância da mudança. Ela é constante na mudança. Ela é póiesis. Ela traz sempre sentido, pois não é um agir cego. Na medida em que há dois agires e duas linguagens, o sentido do agir e a unidade da linguagem também se fazem presentes nos instrumentos. Mas a physis interpretada e compreendida e apreendida nessa dimensão só me remete para o ente como ser e para o ser como ser dos entes, ou seja, o ente enquanto ente. A confiabilidade se funda neste ser. Pois devemos dizer com Heidegger: “Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser.” (idem, p. 24).
Como fica a confiabilidade dos “objetos” – instrumentos em relação à Terra e ao Mundo? É a mesma dos conceitos. Estes se movem nos e nutrem dos conhecimentos e das informações. Os conceitos são por isso mesmo sempre instrumentais. Na medida em que tais conceitos predominam no agir do ser humano e como agir na sua realização, toda a sua realização parece ser realizada no domínio dos conceitos e da produção dos instrumentos seja como linguagem seja como póiesis. Mas os conceitos e instrumentos visam aos entes e à realização do ser-humano como ente. Mas será que isso basta?
A redução das artes aos conceitos é a conseqüência da interpretação da coisa tanto como proposicional quanto como causal. Tais interpretações trazem em si uma certa “confiabilidade”, pois nelas se chega ao ente enquanto ente, na medida em que o que é, antes de tudo, é o Ser. Neste horizonte, a distinção das obras de arte dos objetos se mantém na fina e tênue linha da confiabilidade. Mas isso não basta, porque ainda se vive e pensa e realiza no plano dos entes. É necessário mais do que uma confiabilidade. É necessário o quê? O sentido esquecido do Ser. O ser da metafísica nos enche de confiabilidade, de confiança em muitas coisas, sobretudo, na confiança de sermos felizes, do futuro céu, da justiça social, da segurança, do vencimento da morte, da proximidade sem distância, do diálogo sem diferenças. Sem notarmos, a “confiabilidade” da confiança se funda, porque não há fundamento, na fé. Só que esta fé está cada vez mais sem confiança, está desconfiada. Vê o abismo da destruição da mãe-Terra muito próximo, do perigo da própria extinção da vida-humana. Mas cada dia vê mais que a mãe-physis é imprevisível e sem controle. Ela ama retrair-se. A confiabilidade dos objetos e do agir humano cada vez mais perde a confiabilidade. Quer dizer, tal confiabilidade perde o que ela não pode dar, pois ela tem um limite. Qual? O da ação, do sentido do agir, da póiesis em que ela se funda, do ente enquanto ente, ou seja, dos dois primeiros agires. Seja este ser Deus, seja o ser-humano-sujeito-racional.
É que há um terceiro, que é o que funda os outros dois. Como ele nos advém? Como a própria póiesis, e como a própria linguagem: como pensamento e como arte. Mas não e jamais como obras de arte instrumentais, ou seja, lidas e explicadas proposicionalmente ou como matéria e forma. E de onde ele nos advém? Heráclito já o disse: Physis kryptestai philei. Nossos olhos só vêm a póiesis e a linguagem da physis em seu manifestar-se excessivo. Porém, o fragmento é bem claro e explícito: Ela ama retrair-se. Só se manifesta porque se retrai ou só se retrai porque se manifesta? O enigma não está no ama? Como physis ela tanto ama manifestar-se como ama retrair-se. Que amor é esse? O que quer dizer aqui amar? Não implica esta pergunta: O que é póiesis? O que é linguagem? A physis como manifestação, a physis como retração, eis o amar. Logo o amar é ao mesmo tempo a póiesis da multiplicidade, pois “o que é, antes de tudo, é o ser” (idem, p.24), e a póiesis da unidade, o que não-é, pois “o ser não pode Ser. Se fosse ser não mais permaneceria ser, mas seria ente” (Heidegger, Martin. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 95). Logo, o amor é ao mesmo tempo a linguagem da multiplicidade, pois “o que é, antes de tudo, é o ser” (idem, p.24), e a linguagem da unidade, o que não-é, pois “o ser não pode Ser. Se fosse ser não mais permaneceria ser, mas seria ente” (Heidegger, Martin. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 95). Então devemos dizer que o amar é a póiesis e a não-póiesis, a linguagem e a não-linguagem. O amar é ação e não-ação, linguagem e silêncio, verdade e não-verdade.
Verdade não diz apenas o que se desvela e vela (aletheia), mas também e ao mesmo tempo a ação e a não-ação, a fala e o silêncio.
Se Heidegger procurou repensar o Ocidente a partir do esquecimento do Ser e demonstrou a construção deste mesmo Ocidente dentro de uma essência essencialista e metafísica, onde se pensou o ente enquanto ente, e não se pensou o Ser em seu sentido, sua tarefa exige que a esse novo Ocidente que surgirá do pensamento, se venha juntar o Ocidente que também foi esquecido, pelo predomínio do Logos, linguagem enquanto razão-proposiconal-língua, o da póiesis. É o Ocidente esquecido do mito e das obras de arte, não lidas nem analisadas a partir do ente enquanto ente, do ser instrumental das formas e matérias, mas o Ocidente da arte da póiesis e da não-póiesis, da linguagem e da não-linguagem, da verdade e da não-verdade.
É um Ocidente novo, inaugural, mítico, artístico. Mas se até o instrumental e sua confiabilidade acabou por destruir a fé no ente enquanto ente, no ser dos entes, no Deus enquanto fundamento, no sujeito enquanto fundamento, pois hoje vivemos na mãe-Terra como a paisagem dos instrumentos-objetos, que com-põem todo o real efetivo, como ainda esperar por um novo Ocidente, o do Ser esquecido?
“Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem cominho de
encontro nem vias de acesso” ( Heráclito, frag. 18. Trad. Emmanuel Carneiro
Leão).
Para estudar o terceiro agir:
§90 – Com os traços essenciais nomeados, tornamos conhecido na obra, se há nisso alguma precisão, antes um acontecer e de modo algum um repouso. Pois o que é o repouso senão o contrário do movimento? Aquele, por sinal, não é nenhum contrário que exclua de si o movimento, mas que o inclua. Somente o movimentado pode repousar. O modo do repouso é de acordo com o tipo de movimento. No movimento como mera modificação de lugar de um corpo, o repouso é de fato somente o caso limite do movimento. Se o repouso inclui o movimento, então pode haver um repouso que é uma reunião interior do movimento, ou seja, a mais alta mobilidade, suposto que o tipo de movimento exija um tal repouso. Porém, o repouso da obra que repousa-em-si é deste tipo. Nós nos aproximamos deste repouso quando, de modo unificado, se consegue apreender a mobilidade do acontecer no ser-obra. Perguntamos: Que referências mostram o instalar de um mundo e o produzir da Terra na própria obra?
Um comentário:
Obrigada!!
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