15 agosto 2006

A questão do real

A QUESTÃO DO REAL

Faculdade de Letras – ufrj

Prof. Manuel Antônio de Castro – Titular de Poética

O REAL, A COISA E O HOMEM

O real e os significados dicionarizados

Dicionário Aurélio

Real. Do b. latim reale {lat. Res, rei, ‘coisa, coisas’. Adj. 2 g. 1. Que existe de fato; verdadeiro. 2.Filos. Diz-se daquilo que é uma coisa, ou que diz respeito a coisas. [Opõe-se a aparente, fictício, ideal, ilusório, possível, potencial, etc.] S.m. 4.Aquilo que é real, verdadeiro. 5.Filos. Aquilo que é uma coisa, ou que diz respeito a coisas. 6. Mat. Número real.

Dicionário Aulete

Real, adj. Que tem existência verdadeira e não imaginária. (Jur.)Que se refere aos bens e não às pessoas: direitos reais; ações reais. (Fis.) Imagem real, a que é formada diretamente pelos raios refletidos num espelho ou lente.

Dicionário etimológico

Real, realidade, realização provém da palavra latina res, rei, através do latim medieval.

Res, rei: bem, propriedade; o que existe, a coisa, a obra (ergon, em grego); natura rerum: natureza dos entes; causa (coisa), negócio, motivo. Res publica tanto pode significar: a propriedade pública como a causa pública. A etimologia: em indo-iraniano significa: bens, riqueza, e em itálico, negócio, causa. No sentido de causa traduziu o termo grego aitia.

Nota: Há um termo muito usado atualmente: realidade virtual, mas que não é tematizada. Fala-se muito em virtual e não se pergunta o que é o real para saber em que medida é ou pode ser virtual.

Um mínimo de reflexão exige uma distinção: real e mundo. Não são separadas mas também não são o mesmo. Diante disso é necessário logo perceber que o virtual se refere muito mais a mundo do que a real. E só se pode falar de real virtual na medida em que mundo implica real. Então a pergunta se desdobra em duas: como se dá a referência real/mundo? Como se dá a referência mundo/virtual?

Aí entra um dado imediato bem interessante. O que significa a palavra virtual? Quais os seus significados? Qual a sua etimologia? Depois notamos que hoje o virtual – não todo – se pensa muito através da possibilidade de uma programação. Esta programação que “cria” o real se auto-desdobra em novas programações e sobretudo se reduplica através não só da internet como de hipertextualidades, mas também através de aparelhos que fazem cópias e cópias das cópias num reduplicar sem fim. Essa é uma realidade que nos cerca e que está disponível para cada um. Eu posso em casa fazer cópias de qualquer dvd ou cd. Mas aí n. está o problema principal do virtual, pois isso acontece também com a escrita e as diferentes modalidades de impressão, desde as pequenas tiragens às grandes tiragens. Onde está então o problema do virtual. Que diferença há entre os signos escritos e os signos digitais? Em si nenhuma. Onde está então o “perigo”? E o que entender por perigo? Essa é a questão. Por que se pode ligar a palavra escrita à palavra divina e não se liga a palavra digital à palavra divina? O que há aí? A questão do virtual está no suporte? Sem dúvida isso pode ser um problema mas não uma questão. Creio que devemos nos abrir para a questão do “mundo”. O que é mundo? Como se dá a referência com o real? Mas então o que entender por real? Sem aprofundar essas questões é impossível começar a responder ao problema do virtual.

Porém, como falar de real, virtual e mundo sem falar em homem? O que entender por homem nesse horizonte de questões? E será que a questão do homem não é a primeira questão?

A partir dessas questões podemos ainda dizer que o real e o homem podem ser construídos? E qual a relação ou referência de real e poético? Isso remete sem dúvida nenhuma para a essência da ação.

O termo real e sua origem filosófica

Em verdade, o que entendemos por realidade se nos apresenta como algo evidente em si ou algo de que não precisamos duvidar e que não precisamos tematizar. Mas não é bem assim. Os significados dados pelos dicionários também não ajudam muito. Dizer que algo é real porque é verdadeiro, apenas transfere o problema: O que é verdadeiro? Aí podemos cair num círculo vicioso: verdadeiro é o que “existe de fato”. A apreensão do real por oposição a aparente, fictício, ideal, ilusório, possível, potencial, etc. pressupõe que já estejamos de posse de um conceito verdadeiro, ou de um real verdadeiro, a partir do qual julgamos que algo que se nos dá não é verdadeiro porque é aparente, fictício etc. Ainda que confusamente, o conceito de real como algo verdadeiro está ligado à ciência: é algo de que se pode ter certeza por comprovação objetiva científica. Neste caso só é real o que é científico. Isto sem dúvida é problemático: o que é verdadeiro para a Física clássica não é verdadeiro nem válido para a Física Quântica. E se pensarmos um pouco, veremos logo essa falácia. Para o que tem fé, Deus é real e verdadeiro, e nem por isso pode ser comprovado objetivamente. A certeza da ciência não é a certeza da fé, mas ambas são reais. O que significa aqui então real, no que diz respeito à fé? E até podemos experienciar isso fora da fé, por exemplo, as sermos envolvidos por uma forte paixão, ela se nos apresenta como uma realidade da qual não duvidamos. E dela temos certeza, e nem por isso ela pode ser comprovada científica e objetivamente.

O mito não fala de e nem pressupõe o real, porque não há nada fora do mito. Este se realizando como rito é o próprio real se manifestando. O questionamento e a busca do real já pressupõe, portanto, um certo distanciamento crítico. O real só aparece como real quando se torna questão. Mas nessa questão o próprio real já se oferece como real, senão nem poderia ser colocada a questão. Assim sendo, o real não aparece com o exercício crítico do questionamento. Ao se oferecer ao homem o real como questão, ele já está para além de todo alcance de questão e resposta, ou seja, sabemos do real na questão, mas não sabemos o que é o real. Daí que toda resposta já é uma comprovação do que é o real, mas não que o real se dê inteira e completamente em cada ou em todas as respostas que conhecemos. Mas é delas e nelas que nos alimentamos do real como experienciações em que o próprio real se doa, num jogo tenso e ambíguo onde ele tanto mais se dá quanto mais se retrai. Por isso a poiesis é uma das experienciações mais radicais da presença e ausência do real, porque nela sempre vigora a ambigüidade, uma ambigüidade por isso mesmo poética.

No entanto, por mais que argumentemos, a atual construção do real e do homem nos parece de uma evidência tão pregnante que é difícil pô-la em questão. Por isso é que é necessário apelar para a Linguagem, como que constatando uma verdade simples: o que ficam são as palavras, elas abrasam a alma, ou, num desespero inverso, repetimos com Shakespeare: “Palavras, palavras, palavras”, porque notamos então que a realidade não corresponde à realidade. Mas haveria uma incompatibilidade entre realidade e as palavras? Notemos aqui que não estamos usando as palavras com simples sinônimo de Linguagem. Elas se copertencem, numa identidade de diferenças. Mas deixemos esta questão agora em suspenso. Trata-se de atentar para a palavra real e realidade no seu sentido corrente e cotidiano, e não em situações radicais como acontece na passagem de Shakespeare. No cotidiano, a nossa experiência do real e da realidade passa pelo alcance que damos aos conceitos que essas palavras encerram. Mas que conceitos são esses? Como os conceitos se originaram e qual o seu alcance? Responder minimamente a estas questões só pesquisando em que momento histórico e em que conjuntura se originou a palavra real. Origem tem aqui dois significados: a) uma marca temporal-cronológica e pode ser enunciada num número ou numa situação historiográfica; e b) uma questão como fonte jorrante de onde brota a delimitação e escolha da palavra real, e que se faz presente em todo o percurso: da nascente à foz. Isso significa que lançaremos mão de dados historiográficos e de dados e questões filosóficas, mas sem querer descer à radicalidade das questões envolvidas, mas tão só com o intuito de levantar as questões, para que possamos nos mover num mínimo de densidade questionante.

Os gregos, de onde nos provêm todas as grandes questões, não falavam em realidade. Não há uma palavra equivalente em grego, mas a vivem, por outro lado – e é possível não viver na e a partir da realidade? -, e a pensam como “physis”. Esta seria a totalidade dos entes, em grego, on, ontos, particípio presente do verbo einai, traduzido para o latim por ens, entis, particípio presente do verbo esse. É necessário uma observação importante: como particípio presente, tanto on como ens têm ao mesmo tempo um significado de substantivo e verbal. Na perspectiva e vivência grega, o on é sempre “algo” que está sendo e só por estar sempre sendo é que se pode pressupor e interpretar que haja uma sub-stância (de onde se origina o termo gramatical substantivo). A perda do caráter verbal e a acentuação do caráter sub-stantivo terá sérias conseqüências na vivência, denominação e conceituação da escolha das palavras real, realidade e realização. Ou seja, houve um empobrecimento, desfiguração e traição na tra-dução/tra-dição. A reflexão pela qual se volta aos gregos e a sua língua e pensamento não é, pois, de maneira alguma, um ato nostálgico e historiográfico. Trata-se, muito pelo contrário, de pensar a origem no que ela tem de fonte a partir da qual a própria physis se faz Linguagem na língua grega. Para sair da ambigüidade semântica do vocábulo origem usa-se freqüentemente a palavra originário, onde não vige qualquer traço historiográfico, mas um acontecer poético, pelo qual e no qual a physis se faz Tempo e Linguagem.

As escolas surgidas após Platão e após Aristóteles já encaminham estas questões dos filósofos dentro de uma ótica completamente diferente daquela que lhe deu origem (nos dois sentidos), na medida em que se preocupam muito mais com a precisão dos conceitos dentro dos sistemas em que se transformaram as experienciações de pensamento tanto dos pensadores originários como de Sócrates, Platão e Aristóteles. Este empobrecimento conceitual ainda vai sofrer novas transformações e desfigurações ao serem tais questões transformadas em conceitos sistêmicos, apreendidas, compreendidas e conceituadas a partir do embate com o pensamento judaico-cristão. Este processo terá uma longa história onde tais questões (e conceitos) largamente debatidas e pensadas sofrem, dependendo do pensador, nuances significativas, mas que tenderam para uma padronização, por efeito do pensamento e doutrina uniformizantes do cristianismo medieval, configurados no ensino das escolas e universidades, recebendo por isso mesmo o nome de Escolástica. Não podemos esquecer que a filosofia escolástica era uma preparação para o estudo e ensino da teologia, sendo aquela considerada uma “ancilla” (serva) desta. É algo complexo, pois as posturas teológicas resultavam do alcance das posturas filosóficas. Daí a mistura do cristianismo com o platonismo, neo-platonismo e aristotelismo. Ou seja, a nomenclatura, o vocabulário, os conceitos são o resultado de uma tensão entre cristianismo e filosofia grega em termos gerais, onde as questões deixaram de ser questões para se tornarem um esforço até criativo de precisão conceitual, caindo em geral num abstracionismo formal largamente distante da dinâmica do simples cotidiano como da própria dinâmica do real, melhor dizendo, da physis.

Todas estas questões ainda se tornam mais complexas, porque dentro da dinâmica do pensamento grego a formulação original e originária de Parmênides já sofrera um empobrecimento. Ainda num pano de fundo mítico, o pensamento de Parmênides é o primeiro a nos apresentar a physis como a totalidade dos onta (entes). Porém, ele, nos fragmentos que nos restaram de seu poema Peri physeos, trata do ser, não-ser, aparecer e pensar/perceber (noein). Ele diz explicitamente que ser e pensar/perceber (noein) são o mesmo (onde temos já a questão originária de identidade e diferença): “... pois o mesmo é pensar e ser” (Frag. III, Os pensadores originários, p. 45. Petrópolis, Vozes, trad. Sérgio Wrublewski, 1991).

A reflexão ocidental abandonando o caminho inaugural e originário de Parmênides se concentrará no ente por oposição à aparência e aos dados dos sentidos.

Os sentidos do real

Nem sempre os significados de real e realidade dicionarizados dão conta das diferentes acepções em que tais palavras são empregadas, pois decorrem de problemas e posições filosóficas diversas. Senão vejamos:

1 – A afirmação de que algo é real, no fundo, ainda não diz algo mais específico, porque esse algo pode ser redondo, quadrado, preto, branco, etc. Ou seja, o vocábulo real neste caso não precisa a que corresponde a realidade de algo. Algo como suporte ou princípio (sub-stância) de qualidades é um dos modos de os gregos apreenderem o que o ente/coisa é. Por outro lado, fica implícito que esse algo é quantificável, de tal maneira que se lhe podem atribuir propriedades e qualidades e que simplesmente se constata que está aí.

2 – Dizer que algo é real pode significar que se pode relacionar a expressões como “autêntico”, “natural”, “verdadeiro”, em que de maneira alguma diz respeito ao real como tal, mas em relação a uma outra “forma” de real a que não se podem atribuir tais qualificativos. Como por exemplo: esta maçã é real porque é natural e não de vidro nem uma simples imagem virtual.

3 – Podemos entender e afirmar que algo é real porque não é virtual, ficcional, ilusório ou só “possível”. Nesta acepção, fica implícito a delimitação de real a partir de uma determinação do que é real que exclui outras possibilidades de real. É uma construção do real a partir de uma teoria bem explícita do real.

4 – Finalmente, a acepção de real pode querer marcar a sua existência no tempo como sendo atual, que é vigente e não algo que já deixou de existir.

As quatro posições já implicam uma posição e uma visão filosófica , mais explicitamente tematizada pela metafísica ou ontologia, do que seja o real. No entanto, é importante observar que:

a) o “ real” é mais do que essas posições, no sentido de que as precede e ultrapassa;

b) a adoção do termo “real” (ou realidade) já implica uma determinada posição filosófica, de modo que tal termo pode ocultar mais do que manifestar “realmente” o que o real é;

c) o que seja o real para uma pessoa ou grupo social pode se encerrar nos limites desses conceitos e vocábulos, havendo ainda o fato de que o conteúdo atribuído a tais vocábulos (real, realidade) pode mudar historicamente, gerando confusões semânticas e ontológicas;

d) um levantamento semântico e conceitual é um primeiro passo para deixar emergir a questão originária sobre o “real”;

e) a construção do real e do homem é sempre uma de-cisão histórica a partir do próprio destinar-se do ser, ou seja, de modos como o ser se deixa explicitar epocalmente na medida em que ele mesmo como ser se oculta e retrai;

f) por isso mesmo, as diferentes leituras históricas da História/Memória podem mais do que desvendar o ser ocultá-lo, embora nos movamos sempre (aparentemente) só no que está manifesto;

g) a predominância dos vocábulos “real” e “realidade” já mostram a vigência de uma visão em detrimento da questão originária em torno do ser, que é mais complexa, pois, explícita ou implicitamente, ela já desde sempre se faz presente;

h) a reflexão sobre o “real” e a “realidade como modalidades do ser implicam, no fundo, uma questão prévia e sempre presente: o sentido do ser, ou seja, na terminologia corrente, do real e da realidade. Como o ser, o real e a realidade nos precedem e excedem passamos a nos mover no alcance, amplitude e radicalidade do seu sentido. Daí que perguntar pelo sentido do real implica perguntar pela sua verdade;

i) a questão do real implica necessariamente a questão do homem, havendo quatro posições: 1 – o real determina o homem, sendo este um ente entre outros entes; 2 – o real se constrói a partir da experiência que o homem tem do real, desempenhando aí papel fundamental o conhecimento racional (logos: razão, linguagem, pro-posição); 3 – o real se constitui de duas “realidades” distintas, podendo ou não serem complementares, mas radicalmente distintas: Natureza (gregos) e Espírito (cristianismo), dependendo da teoria uma brota da outra: ou o espírito da natureza ou a natureza do espírito. Como veremos, desta dicotomia surgiu a dialética hegeliana e marxista; 4 – o real como tensão de contrários (pólemos) physis/logos. Teríamos aqui a tensão de identidade e diferença (ser e não-ser, saber e não-saber, querer e não-querer, dizer e não-dizer, fala e silêncio como escuta, vida e morte, eros e thanatos, etc.), onde experienciamos o “real” como proximidade e distância. Numa referência (e não mera relação) de manifestação e retraimento ou velamento e desvelamento teríamos o ciclo em que circulam as questões: Natureza, Tempo, Linguagem, Memória, História. Por serem originárias, fogem a toda e qualquer conceituação, embora dêem origem a todas elas. É nelas e por elas que fazemos nossa travessia poética;

j) sobretudo na modernidade o homem toma a precedência sobre o real porque em última instância, partindo-se de uma radicalização crítica – e a crítica enquanto krinein é uma questão – da construção do real e do homem, se constata o papel fundamental do conhecer e do modo de conhecer, podendo então falar-se de realidade sub-jetiva, objetiva, experimental, ideal, virtual etc. A aceitação destas diferentes realidades parte do pressuposto de que o real nos advém sempre como ob-jeto. E isto é que é questionável, porque surge o paradoxo pelo qual o real como ob-jeto pressupõe algo ou alguém diante do qual se constitui o ob-jeto, não se incorporando a estes diferentes ob-jetos tanto a mediação quanto quem ou o que exercita o meio da mediação, o próprio meio da mediação e a possibilidade do agir de quem age. Há ainda o fato de que o conteúdo destes ob-jetos é de uma variedade não só muito grande como também, em alguns aspectos, incompatíveis: o material, o espiritual, o pessoal, o social, o temporal, o ficcional, o possível, o utópico, o transcendente, o transcendental, o virtual, etc.;

k) devemos distinguir basicamente os modos de ser (real e ideal, essência e aparência, espírito e matéria, racional e sensível), os modos de conhecer (subjetivo e objetivo, consciente e intuitivo) e o momento de ser (essência e existência) implicando este plenitude/não-plenitude, compreendendo que a temporalidade/linguagem deve ser vista de modo radical, onde se possam incluir os entes animais e inorgânicos. Ou seja, tanto os modos como o momento não abraçam a totalidade dos entes. Por isso o real se encara de diferentes perspectivas: possibilidade, atualidade, existência, essência, efetividade e virtualidade, tendo sempre como irredutível e incontornável o ser (e o não-ser). Tradicionalmente, o estudo do ser se denominou ontologia, que se define: “ a ciência da realidade qua [enquanto] realidade”. (FERRATER MORA, José. Diccionário de filosofia. 3.e. Madrid, Alianza Editorial, 1981, 4 v., p. 2792);

l) mais recentemente a posição crítica diante do real que deu tanta importância ao real como ao modo e à possibilidade de conhecer o real (subjetividade e crítica da razão), colocando, por isso mesmo, a questão da essência e do alcance da consciência (surgindo neste contexto o problema do in-consciente), tende a constatar que ela passa necessariamente pelos modos de expressão, ou seja, a questão dentro dessa perspectiva passa pela linguagem. Refletir sobre o real é refletir sobre a linguagem, observando-se desde já que não se pode opor realidade e linguagem, como se a linguagem não fosse real. A referência e pertinência realidade/linguagem pode, no mínimo, tomar dois caminhos: 1- Lógico, transformando-se no problema: “Lógica e realidade”; 2 – Poético, dizendo respeito a todas as manifestações artísticas, ou seja, é a questão originária e mítica da poiesis.

m) Nós não sabemos o que é o real, por dois motivos fundamentais: O real nos precede sempre; ficamos na impossibilidade de dizer o que é o real porque não só porque não podemos dar uma definição de real mas nem apreendê-lo como questão. Por quê? Muito simples, o ente, tudo que é, e tudo é de alguma maneira, não é o ser, pois o ser não é. Quando perguntamos o que é o real, a pergunta se faz no âmbito do ente e a resposta sempre virá no âmbito do ente e não do ser e o real é o ser (veja o paradoxo desta afirmação). Por isso não sabemos nem nunca saberemos o que é o real, mas o importante não é saber o que é o real, mas os níveis e amplitude de sua experienciação. A poiesis é onde se dá a experienciação mais plena do real.

n) Há um problema tradicional que é um problema criado pela metafísica e que não é uma questão: a mimesis. Já muito se escreveu sobre esta palavra e o que ela quer dizer. Sobretudo teve uma enorme influência no marxismo vulgar, no plano ideológico, na concepção da arte como imitação, na análise das obras como matéria e forma. Tudo isso são falsos problemas, porque resultam dos silenciamentos e esquecimentos que a metafísica teorizou em torno da tensão physis/ser e on/ente. É muito simples: o sensível e o inteligível só são vigentes na medida e na proporção que são manifestações da physis. Por isso perguntar depois se a enunciação corresponde ao enunciado (mimesis) é uma falsa questão e se torna um simples problema, operacionalizado dentro dos conceitos da metafísica. A questão é a physis, pois esta ao mesmo tempo que se desvela se vela. Jamais saberemos determinar, definir e explicitar se há ou não mimesis, isto é, entre desvelado e velado, porque se está velado como saber? Contudo, essa tensão se dá no ente na medida em que todo ente, o que é só é em virtude do ser. Portanto, a questão não é a mimesis, mas a difícil e profunda tensão ente/ser.

5 – A questão do real gera algumas confusões por causa de uma diversidade de nomeações para uma mesma questão. Diz-se: real, coisa real, objeto, ente (on,ontos em grego). Todos eles são conceitos ontológicos, daí se definir a ontologia, segundo José Ferrater Mora, como a ciência da realidade enquanto realidade.

6 – Se hoje predominam três termos: real, coisa e objeto, nem sempre foi assim. Eles surgiram da tentativa de entender e explicitar o ente/ser pelos filósofos medievais, tendo elaborado as diferentes doutrinas dos transcendentais. É delas que nos vêm os termos: realidade e coisa, aos quais já corresponde uma determinada posição ou posições diante do ente/ser, da physis.

Os transcendentais

Os transcendentais dizem respeito às propriedades do ente e são transcendentais porque serão modos diversos de dizer-se o ente, constituindo modos, abributos ou propriedades comuns a todos os entes. “Estas propriedades, atributos ou modos são ‘transcendentais’ (transcendentes) porque transcendem todo ‘ser de um modo determinado’. O ser de um modo determinado é o ‘ser tal’ e a propriedade de ‘ser tal’ pode chamar-se ‘talidade’. Pois bem, o ser tanscendente é justamente transcendental pois transcende toda ‘talidade’. Por isso um transcendental não é uma realidade, mas o modo de ser de qualquer realidade” (FERRATER MORA, José. Idem, p. 3314). A doutrina dos transcendentais que predominou foi a de Santo Tomás de Aquino. Esta doutrina já se elaborou dentro de uma postura fundamentalmente intelecutal e lógica, pois o intelecto em primeiro lugar apreende o ente, o ente como ente, em que o ente é um conceito comum a todos os entes. Está-se aí dentro de um universal ab-strato e não mais falando dos entes concretos que constituem a physis. Na sua linha de pensamento, agregar outro conceito ao de ente só pode ser desde que o que se agrega seja ente. Agregar qualquer novo conceito só pode desde que simplesmente ex-plicite o que o ente é, sem ajuntar-lhe nada distinto do ente, ou seja, se expressando algo do ente considerado absolutamente. Isso se pode fazer em cinco casos:

1 – Afirmativamente: o ente é uma res (coisa).

2 – Negativamente: o ente é unum (um). Se não fosse, teríamos mais de um ente.

3 – Relativamente a outro cada ente é aliquid (algo). Daí se falar às vezes em qüididade.

4 – Relativamente ao intelecto é verum (verdadeiro). Ou seja, há uma adequação do intelecto e da coisa ( adaequatio intelectus et rei).

5 – Relativamente à vontade todo ente é bonum (bom). Porque ele é apetecível, desejável, pois toda ação visa a um bem, segundo Aristóteles.

Podemos constatar que ente (ens), coisa (res), e algo (aliquid) são termos sinônimos. Quando o ente eclode no esplendor dos seis transcendentais temos o belum (belo). Todo belo tem um fundo ontológico, muito distante da sua mera identificação moderna com o estético.

Dessa maneira, o que denominamos “real” e “realidade” está diretamente ligado à doutrina medieval dos transcendentais e à concepção do ente como res (coisa), de onde se formaram em português os substantivos: real, realidade e realização. A questão da res (coisa) se torna uma das grandes questões filosóficas da Escolástica porque está ligada à questão dos universais.

Os Universais

Universal é a tradução do termo grego: to katolon (de onde se formou a palavra católico). É formada do termo latino unus (um) e do verbo vertere: virar, transformar, verter, traduzir, etc. Refere-se ao todo, ao inteiro, a uma totalidade plural de objetos, coisas, entes, opondo-se, portanto, ao particular e ao singular. Toda ciência se baseia em conceitos universais. Em filosofia, a não existência de universais pode dar origem tanto ao ceticismo como ao relativismo. Tanto na ciência como na filosofia, onde os universais se desdobram em espécies e em gêneros, pressupõe-se a ab-stração, palavra de origem latina que diz: abs- para fora e traho, trahere: tirar, arrastar. Indica o abandono dos traços singulares para só se afirmar o que é comum a diversos entes ou coisas. O contrário do universal abstrato é o universal con-creto. Esta palavra vem de cum- com, junto, em conjunto, e cresco, crescere: crescer. Há o con-crescer do singular e do universal. Isso é o que acontece em toda verdadeira obra de arte, sempre ligada a algo singular e conjuntural, e, no entanto, ultrapassa essa singularidade e conjuntura para manifestar um acontecer universal, onde se dão novos tempos e lugares.

Os universais estão diretamente ligados à interpretação da physis como res (coisa/causa), ou seja, ao real, à realidade. Tal questão tem sido colocada com freqüência em diferentes momentos históricos, especialmente desde Platão e Aristóteles. Porém, como foi discutida intensamente na Idade Média, costuma-se localizar nela a origem explícita da chamada questão dos universais. É uma questão primordialmente ontológica, que tem implicações na lógica, na teoria do conhecimento e até na teologia.

Os universais são os gêneros e as espécies, e opõem-se aos indivíduos. Pedro é um nome próprio e com ele nos referimos a uma determinada pessoa, a um ente concreto e singular, cujo nome é Pedro. Agora bem, dele eu posso dizer: Pedro é um homem, Pedro é alegre. Homem e alegre são nomes comuns, que usamos, não para nomear a um ente singular, mas a outros também, como João, José, isto é, homem e alegre são universais, porque posso atribuí-los a entes diferentes. Outros exemplos de universais: leão, mesa, triângulo etc. Tradicionalmente, os universais foram chamados de noções genêricas, idéias e entes abstratos. Surge a questão: Que tipo de realidade corresponde a esses universais? No cotidiano, o que vemos e o que sentimos são indivíduos ou objetos singulares, mas que são concebidos, pensados, apreendidos mediante as suas espécies e os seus gêneros. Que relação têm os universais com as coisas? Ou: Em que medida os nossos conhecimentos se referem à realidade e são eles ou não existentes em si? A resposta implica em colocar três outros problemas: a idéia que vamos ter do ser das coisas, do seu conhecimento e do alcance da língua/linguagem em dizer o real.

A Escolástica debruçou-se sobre os universais e foi tecendo distinções sutis, mas numa abordagem introdutória podemos distinguir três claras posições:

a - Realismo ( universalia ante rem). Este vigorará até o séc. XII e um dos seus maiores representantes é Santo Anselmo. Por realismo entende-se o realismo extremo, segundo o qual os universais existem realmente e sua existência é prévia e anterior à das coisas, daí a denominação: universalia ante rem. Pensam os seus defensores que, se assim não fosse, seria impossível entender, apreender qualquer coisa particular ou singular. De fato, já precisamos estar abertos para o que as coisas sejam. As coisas particulares estão fundadas metafisicamente nos universais. Não há, pois, diferença essencial entre os indivíduos englobados por um mesmo universal. A diferença está apenas nos acidentes. Essencialmente, não haveria mais do que um homem, e a distinção entre os indivíduos seria puramente acidental. É importante destacar que, quando a maior parte dos realistas afirma que os universais são reais, não querem dizer que sejam reais como as coisas corporais ou os entes situados no espaço e no tempo, pois se assim fosse, tais universais estariam submetidos à mesma contingência dos seres empíricos e, por conseqüência, não seriam universais.

b - Nominalismo (universalia post rem). O nominalismo floresceu em dois momentos na Idade Média. O primeiro no séc. XI, tendo como principal representante Roscelino de Compiègne. O segundo no séc. XIV, girando em torno do filósofo Guilherme Ockam. Para este, admitir os universais (idéias) em Deus, seria limitar a onipotência divina de algum modo, e admitir universais nas coisas seria supor que elas teriam ou poderiam ter idéias ou modelos próprios, com o que também se limitava a onipotência divina. Ockam cinde o campo da filosofia e da teologia, pois subtrai a divindade a toda e qualquer especulação racional. Esta posição abre as portas da investigação da modernidade, pois a ciência refere-se aos universais e, portanto, não é ciência de coisas, mas só de signos e símbolos.

O nominalismo afirma que um universal - como o gênero ou a espécie - não é nenhuma entidade real nem está nas coisas reais: é tão-somente um som da voz (flatus vocis). Os universais são nomes, vocábulos, termos. Para o nominalismo só têm existência real os indivíduos ou os entes particulares. Nele podemos destacar: 1 - a noção de universal como som da voz; 2 - a noção de que só são reais os entes particulares; 3 - a noção de que uma qualidade não é separável da coisa da qual se diz que tem tal qualidade.

Podemos falar de um nominalismo moderado, de um exagerado e de um absoluto. As diferenças aparecem quando se trata de indicar que função têm as supostas entidades abstratas. No nominalismo moderado, afirma-se que não existem as entidades abstratas e só existem as entidades concretas. No exagerado não existem nem as entidades abstratas nem os conceitos abstratos, reduzindo-se os conceitos abstratos a simples nomes comuns, para designarem as entidades concretas. No absoluto, afirma-se o mesmo que no exagerado, com o acréscimo de que os termos que designam as entidades concretas são por sua vez entidades concretas.

c - Realismo moderado (universalia in re). Pedro Abelardo ao criticar tanto o realismo extremado como o nominalismo aproveitou, no entanto, elementos de ambos e encaminhou a posição do realismo moderado. O grande representante desta posição é Tomás de Aquino.

Segundo o realismo moderado, o universal não está fora da mente, como se fora uma coisa entre outras. Tampouco está na mente, como se fosse apenas um processo psíquico. Fora da mente, está como coisa concebida (res concepta) e, dentro da mente, como conceito (conceptio mentis). O universal tem um fundamento na res (coisa) ou na realidade, pois se não fora assim, tratar-se-ia de simples imaginação. Para Tomás, há que distinguir a natureza da coisa e sua abstração. Quanto à natureza, só existe nas coisas singulares, quanto à abstração, só existe no intelecto. Enfim, para o realismo moderado, os universais existem realmente, mas somente enquanto formas das coisas singulares, isto é, tendo seu fundamento na res (realidade). Aqui o indivíduo é a verdadeira substância, mas como indivíduo de uma espécie. Os universais, considerados formalmente, são produtos da mente, mas têm um fundamento in re (na realidade, na coisa). O universal está in re. O grande problema é encontrar o princípio da individuação, ou seja, aquilo que faz com que algo seja uma coisa e não outra. As respostas variam de filósofo para filósofo.

O final da Idade Média tende a afirmar cada vez mais a predominância dos indivíduos. Os universais são exclusivamente criações da mente, são termos. E estes são simplesmente símbolos das coisas: substituem na mente a multiplicidade das coisas. Não são convenções, mas símbolos naturais. As coisas conhecem-se mediante os universais ou símbolos. Desta maneira, o conhecimento torna-se simbólico e o homem renuncia a possuir as coisas, ficando apenas com os seus símbolos. Até então buscava-se o conhecimento do que o movimento é, por exemplo, agora procura-se apreender as variações do movimento, não importando o que é o movimento. Surge um novo homem que desvia os olhos do céu e os volve para o mundo. E passa a construir uma ciência da natureza enquanto constituída de símbolos naturais.

A coisa

Nós não sabemos o que é uma coisa. Esse não-saber não é negativo, quer dizer simplesmente que é impossível de-fini-la definitivamente, daí surgindo diferentes concepções. Tomar conhecimento de tais concepções é um caminho prévio para deixar a coisa repousar no que lhe é próprio e em seu mistério. Por outro lado, é importante ter presente que ao longo da cultura ocidental surgiram três vocábulos que dizem e não dizem o mesmo:

1º. É o grego on, ontos, inaugurado por Parmênides no poema Peri physeos, onde convive com o me-on, o não-ente, a aparência e o noein, o pensar/perceber. A reflexão ocidental metafísica vai centralizar-se no ente (on, ontos, particípio presente de einai, ser). Foi traduzido para o latim como ens, entis, particípio presente do verbo esse. Teria, portanto, um sentido originariamente verbal e não substantivo ou essencial. Tentar resgatar sua vigência de Linguagem seria traduzi-lo por: o que está sendo ou simplesmente essente. Os entes desde Parmênides estão profundamente ligados à physis, na medida em que esta é apreendida e compreendida como a totalidade dos entes (essentes).

2º. Na Idade Média, com os estudos escolásticos em torno do ente, constatou-se que este tem modos de ser. São os transcendentais, como já vimos. O primeiro e propriamente considerado sinônimo é a res (coisa/causa). O importante a assinalar é que tal transcendente toma a preferência sobre o ente e passa-se a considerar a totalidade da physis como res (coisa/causa). Em princípio, ao serem sinônimos não haveria problema na substituição de res por ente. Mas o posterior desenvolvimento das reflexões filosóficas mostrou que não foi bem assim, sendo desdobrada tal problemática em facetas que acabaram por desviar a reflexão da questão originária em torno do ser, perdendo-se o seu sentido. É muito difícil não considerar o ser/ente como universal, pois tudo e cada coisa é. Até para negar nos servimos do ser. Outra é a posição em relação a res (coisa/causa), colocando o problema dos universais em relação à res. Desta discussão surgiu a substituição da questão da physis/entes (ser) pela de natureza/res (coisa/causa). Só que não se fala mais nem em natureza nem em ser, mas em real, realidade e realização. Esta, infelizmente, se tornou a problemática vigente até hoje. É fácil falar de e definir uma realidade virtual (onde o virtual também perdeu o seu vigor de linguagem para denominar apenas seu aspecto mais secundário, porque até o sentido moral se perdeu (ligado a virtude). A palavra virtus (força, vigor) indica originariamente o vigor de ser enquanto excelência). Mas já não é tão fácil definir uma realidade virtual enquanto é. Quem hoje ao falar em real, realidade e realização pensa o ser? A realidade vigente ou a realização de um filme ou de um evento em nada lembram a pretensa sinonímia de ente (ser) e res (coisa/causa). E a physis como totalidade dos entes nos fica cada vez mais distante, em que tal esquecimento nos lança facilmente nos jogos ilusórios de códigos e sistemas como fonte de real e realização. É claro que podemos resgatar a dimensão ser/ente em real/realidade e realização, mas às custas de muitas dificuldades conceituais e semânticas, onde a semântica mais que ajuda atrapalha, porque, no fundo, não se trata de um problema semântico, mas do destino de ser e não-ser enquanto Linguagem.

3º. Para piorar essa confusão, no final da Idade Média, predominou na Escolástica a interpretação nominalista da res enquanto universal, onde se separa definitivamente a palavra res do ente. A palavra, cada palavra, mero flatus vocis (sopro de voz) não diz mais o que é cada coisa (res), mas torna-se o seu símbolo e como tal passível de uma representação matemática. Estava aberto o caminho para a pesquisa e investigação das coisas (a que ficou reduzida a physis, já então denominada natureza) enquanto expressão matemático-numérica. Por isso Martin Heidegger diz: “Uma frase de Max Planck diz: ‘real é o que se pode medir’. ...O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda teoria do real”. (Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 49). Não se pode medir nem expressar matemático-numericamente o que é o movimento (como ente), mas se podem definir e determinar os tipos de movimento. A physis, encarada como ser, não-ser, noein, aparência, foi reduzida ao ser, este à res (real) e este, finalmente, ao conjunto das coisas, passíveis de uma determinação físico-matemática, através do novo conhecimento científico em que se transformou a filosofia.

Se aparentemente se podia identificar ente e res, esta transformada em coisa, acabou por suscitar um sério problema. Se dizer que tudo é, é fácil, o mesmo, agora, não se dá em relação à coisa. Aí começaram a surgir as classificações das coisas: individuais, coletivas, naturais, exteriores, físicas, criadas, etc. Mas aí notou-se que era muito difícil chamar de “coisas” às “realidades” espirituais, artísticas etc. Uma pedra (no meio do caminho), um martelo (utensílio) são coisas. O mesmo podemos dizer das obras de arte “David” de Michelangelo e “Mona Lisa” de Leonardo Da Vinci? Difícil. Pior ainda: dizemos tranqüilamente que o homem é, mas quem admite dizer que ele é uma coisa? Justamente não se diz que o capital ao transformar o trabalho do ser humano em valor numérico e este em mais valia acabou coisificando-o, originando a famosa alienação denunciada por Marx? Por que coisa e por que alienação? Aqui se vê claramente a insuficiência semântica ao consultarmos tais verbetes no dicionário. O mesmo pode acontecer com o lançar mão da etimologia. Semântica e etimologia podem se tornar meros recursos filológicos, onde se esqueceu o essencial: a questão da physis, de ser, de não-ser, do Logos, da Linguagem enquanto vigor de todo pensamento e poiesis. Em tais casos a semântica e a etimologia só são válidas imantadas pelo vigor originário manifestativo do mito, da poiesis, do sagrado e do pensamento.

Diante da aporia da impossível redução do homem a uma coisa, pôs-se mais um conceito em circulação, no já inflacionado mercado do ser (para novos consumos, como ocorre atualmente com realidade virtual e outros fenômenos do suporte digital). Surgiu o conceito de pessoa. Este conceito facilita, aparentemente, o conceito de coisa, por exclusão: o que não é pessoa é coisa. Mas será que tal oposição é real ou apenas mental? A questão do corpo, do nosso corpo se coloca na encruzilhada desta questão. E todos os estudos e conhecimentos do “homem” pelas mais diferentes disciplinas, e até do feminismo/masculinismo e a denominação imperfeita de “gêneros”, passam todas elas pela encruzilhada desta questão. Parodiando o famoso verso de Drummond, do poema “No meio do caminho”: para todos esses conhecimentos e reflexões “Tinha uma coisa no meio do caminho”, ou ainda noutra versão mais atual: “Tinha um corpo no meio do caminho”. Não se sabe lidar com o corpo porque não se pode reduzi-lo a uma coisa nem se pode identificar com pessoa (muito menos com personalidade). Seria tão mais fácil e rico se voltássemos ao ser e ao mito. Mas tal só é possível como experienciação de pensamento e de poiesis. Quem está disposto, numa sociedade do conhecimento, de consumo, de fast-food, de curtição de som (e de outras curtições) à Escuta da voz do silêncio? Somos educados para isso ou só para ter um função no sistema? Onde a e-ducação para o saber-sabedoria?

No embate coisa/pessoa, alguns autores, esquecidos da questão originária, optaram por reduzir tudo à coisa, já outros, à pessoa (sobretudo fundados na subjetividade moderna, onde tudo vira “ob-jeto” de conhecimento do “su-jeito”). Nesta aparente tensão surgiram as dicotomias que parecem tudo resolver: coisa se tornou sinônimo de matéria e surgiram os materialistas ou realistas (o sistema para ser sistema precisa sempre classificar tudo). Pessoa se tornou sinônimo de espírito e ideal, e surgiram os espiritualistas e idealistas.

Historiograficamente uma tal dicotomia já começa no pensamento grego quando, sobretudo na experienciação do pensamento de Platão, ao retomar a questão de Parmênides, se elabora o conceito de idéia (eidos: o que se mostra enquanto a-specto) e posteriormente ao se tomar o Logos (Linguagem) como Lógica, e o seu conteúdo como algo inteligível, numa redução do noein parmenídico à percepção, e a redução do substantivo derivado de noein, o Nous (Noos), de onde se formou Noesis (noético, que se conhece), simplesmente à faculdade de pensar, à inteligência, ao espírito, pensamento, intelecto, reflexão, intenção racional, sentido racional. Com Platão e Aristóteles ainda não se trata de qualquer conhecimento (oposto ao provindo dos sentidos, da sensibilidade, aisthesis, em grego, de onde se formou na modernidade a estética), mas “a intuição intelectual, o conhecimento direto e imediato da verdade de uma essência ou de um princípio” (CHAUI, Marilena. Intorudução à história da filosofia. S. Paulo, Brasiliense, 1998, p. 355). Fica claro o distanciamento já na própria filosofia grega do pensamento originário de Parmênides, quando no fragmento III diz: “ ... to gar auto noein estin te kai einai : ... pois o mesmo é pensar e ser” (Os pensadores originários. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 45, trad. Sérgio Wrublewski).

O conceito de pessoa também vai se impondo à medida que, reduzido o ente à res (coisa/causa), se constata que há “realidades” não redutíveis à coisa enquanto algo fixo, estático, exterior. É o caso (que no fundo é outra acepção de res) de “vida íntima” ou “espírito”. No pensamento clássico a alma correspondia à razão. Na medida em que Cristo foi identificado com o Logos (palavra, razão) e Deus com o Ser, e a natureza passou a ser uma criação de Deus, segundo a tradição judaica, o “espírito” tem uma precedência sobre a natureza ou coisas. Podemos notar que primeiro houve uma dicotomia entre noein e einai e depois, como o advento do Cristianismo, uma inversão pela qual Deus precede a natureza (esta como criação daquele). Mas uma inversão mais radical se efetivou. Iniciou-se com Santo Agostinho e vai radicalizar-se na Modernidade. A physis como totalidade dos entes é identificada somente com o ser e este com Deus, podendo ser considerado transcendente a toda natureza e a todos os entes criados. Com Santo Agostinho a dicotomia espírito/corpo (coisa/matéria) se radicaliza de tal maneira que não só a alma é imanente ao corpo, mas o próprio Deus é imanente à alma, afirmando que Deus é mais interior à alma do que a própria alma é interior a si mesma. Esta radicalização, pela qual se opõe Natureza (physis) e Espírito só aos poucos amadurece e explode com a Modernidade e a questão da subjetividade, que aí tem a sua raiz. A pessoa, o homem toma a precedência sobre a “coisa”, sobre o real (res), dando origem ao idealismo iluminista pelo qual Kant opõe “noumenos” a “fenômenos”, ou coisa-em-si a sujeito/objeto, ou seja, há uma coisa-para-si, que é o sujeito e suas construções objetivas e o ser-em-si (que apresenta diferentes significados na obra kantiana). Hegel tenta dissolver esta dicotomia na sua famosa tríade dialética: Natureza (dos gregos), Espírito (do Cristianismo) e Idéia Absoluta (iluminista/idealista) como síntese. Entre as grandes inovações de Hegel está o propósito fundamental de que não quer simplesmente fazer uma história da filosofia com seu sistema dialético, mas elaborar uma filosofia da história que abarcasse todas as manifestações anteriores e futuras. É dentro deste sistema que ele vai ler todo o passado, toda a história. O grande problema do sistema dialético de Hegel é que nele não há como preservar as diferenças como diferenças, porque são subsumidas (aufheben) na síntese final. Isso será decisivo no fundamento do projeto iluminista e da construção do homem e do real na modernidade. A cultura ocidental não ouve nem dá vez às diferenças de outros povos e culturas, como hoje podemos facilmente constatar. Ao adotar o sistema hegeliano, Marx substitui a idéia absoluta de Hegel pelo materialismo científico e dialético e a utopia da sociedade sem classes. Voltado para as condições materiais dos povos, Marx também não faz uma história dessas condições, mas elabora uma teoria dialética que explica o real passado, presente e futuro, apontando como ideológico tudo o que se opuser a essa leitura totalizante, onde, como em Hegel, não há hora nem vez para as diferenças, inclusive ideológicas. No fundo, como se constatou historiograficamente, se tranformou numa super-ideologia com seus patrulhamentos ideológicos e receitas de real. Com a queda do Muro de Berlim e o vendaval tecnológico da pós-modernidade, tudo isso saiu da esfera da certeza para a do questionamento. O poder ideológico passa hoje pelo viés do poder-técnico-científico, de onde surge uma nova visão e prática do poder político. Pois a técno-ciência põe em questão a essência da Polis.

A última manifestação da dicotomia em que se contrapõe ser-em-si e ser-para-si nasceu no clima que precedeu a Segunda Guerra Mundial e se afirmou em meio aos seus escombros sem-sentido e horrores: é o existencialismo. Foi a última afirmação de um humanismo metafísico, em meio ao avanço avassalador do desenvolvimento técnico-científico.

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