13 agosto 2006

A arte, a verdade e as quatro realidades 13-08-06

A arte, a verdade e as quatro realidades – agosto de 2006

Prof. Manuel Antônio de Castro

São muitos os conceitos de arte, de verdade e de realidade. Porém, arte, verdade e realidade resistem sempre a qualquer conceituação, daí os conceitos mudarem segundo as diferentes teorias e as diferentes épocas. Diante dessa constatação só nos resta questionar em dois sentidos: 1º. Os diferentes conceitos; 2º. A própria arte, verdade e realidade. Isso não significa criar conceitos novos, mas produzir reflexões que nos permitam ver como se relacionam arte, verdade e realidade e o que elas são essencialmente. Nesta estratégia talvez possamos dar alguns passos para ver em maior profundidade o claro enigma em que se movem arte, verdade e realidade.

As questões e os conceitos

A palavra realidade indica para nós algo que está aí e que independe de nós, de cada um, pois nascemos e morremos, e ela nos precede e continua sempre. O que é esta realidade? As respostas variam de acordo com as culturas, as teorias filosóficas e científicas, e as crenças religiosas. E, sobretudo, com as épocas históricas. Falamos então das representações da realidade. Mas o que é a realidade para que possa haver representações? O que é uma representação? Como e através do que ela se realiza? Se de alguma maneira já não soubéssemos o que é a realidade como poderíamos reconhecer qualquer representação? O que é conhecer e reconhecer? Afinal, tudo isso não faz parte da realidade também? Portanto, devemos retornar e insistir na questão: O que é a realidade? Ela não é tão evidente como um certo vocabulário corrente nos quer fazer crer. De outro lado, a força de sua presença é extremamente vigorosa e atuante.

A palavra realidade se aplica a muitas “realidades”. Basta acrescentar-lhe um adjetivo: realidade social, corporal, psicológica, econômica, poética, estética, artística etc. etc. Até podemos falar de uma irrealidade ou ilusão ou imaginação ou fingimento. Aqui então parece que se trata de uma realidade que não é realidade, mas existe. Qual seria a diferença entre ser ou não ser real e existir? Aí caímos nos paradoxos. A ilusão seria uma realidade que não existe? Se não existe como pode ser realidade? Ou será que para além da realidade existe “algo”, mas que não é realidade? Mas como existir se não é realidade? Ensinam-nos que as realidades poéticas são ficções. Porém, a ficção existe, só que é uma realidade diferente. Mas é real. Até se pode falar, por exemplo, de um “eu lírico”, mas não se pode falar com um “eu lírico. Seria ele, então, real ou não passaria de um conceito abstrato a que nada de concreto corresponde? Para que servem então tais conceitos abstratos, uma vez que é com eles que se constrói toda a realidade científica? E pode ser uma ficção, uma imaginação sem ser real? Então não teria nenhum conteúdo de realidade, nada lhe corresponderia? Se não existe, como poderíamos com coerência falar dessa realidade que não existe? Ou será que neste caso há dois conceitos de “realidade”? No entanto, em relação à poesia ninguém pode afirmar, em são juízo, que ela não é real, pois ao lado da religião é o que nos mais toca e diz algo de profundo, de indubitavelmente real. Então fica a dúvida maior: Afinal o que é realidade?

Devemos perder a ilusão de que há uma resposta única verdadeira. A realidade é uma questão. Dela se formulam muitos conceitos, sem nenhum conseguir dizer o que ela é. Por que a palavra realidade se torna algo tão forte na nossa vida, de tal maneira que por mais que formulemos perguntas e suscitemos dúvidas, não podemos deixar de viver e acreditar na realidade? Até porque crendo ou não crendo ela continua aí a existir concretamente. Talvez uma pista esteja num fato muito simples: a relação entre a “realidade” e a palavra “realidade”. Que relação é essa? Não será que a realidade como tal não muda, o que muda são as palavras? Ou será o contrário? A realidade sempre está mudando e as palavras é que ficam fixas em seus significados conceituais? E as palavras poéticas? Uma vez que a poesia é feita de palavras, como se dá nela essa relação com a realidade? E as palavras da poesia não são reais? Quando a poesia é verdade, todos sentem concretamente que são.

Então surge uma pergunta muito simples: O que é a palavra? Como surgem as palavras? Ao surgimento das palavras corresponde o surgimento da realidade? Por exemplo, como surgiu a palavra realidade, a palavra poesia? Realidade vem da palavra latina res, que significa: coisa. Já a palavra poesia vem da palavra grega poiesis, que significa: ação. Talvez na poesia prestemos mais atenção às palavras, aos versos etc. e não ao que lhes constitui o cerne, a sua razão de ser, a sua “realidade”, isto é, a ação. Mas o que é a ação? Já a palavra latina res surgiu com o sentido de realidade ao ser usada para traduzir a palavra grega on, que significa, o que é, o ente. Então a realidade é o ente, o que é. E o que é é em virtude e pelo poder do ser. Perguntar pela realidade é perguntar pelo ser. O que é o ser? De tudo dizemos que é. Até para duvidar do ser já temos que estar sendo.

O que é o ser não nos vem desde o momento em que criamos uma resposta. Antes dela, seja ela qual for e em que época for, todos nós já sabemos o que é o ser, pois já estamos sempre sendo. Só nos percebemos como reais, porque já desde sempre somos. Mas sabemos o que somos? Talvez por isso é que não saibamos o que é a realidade. Por que é tão difícil saber o que somos? Não será por causa das palavras? Será que elas não nos encobrem o ser que já desde sempre somos? E por que as palavras, em vez de manifestarem o ser que já desde sempre somos, podem-nos encobrir o ser? Não será porque reduzimos as palavras aos conceitos? Não será que em nossa vida, em vez de experienciarmos o que somos, vivemos na limitação e até ilusão dos conceitos? Na realidade, os conceitos tendem a nos encobrir e silenciar o ser, ou seja, a realidade em seu vigor. Os conceitos são muito importantes, mas não são tudo. E o que é o experienciar e como se diferencia do experimentar? O que ele implica na vida de cada um? São muitas as questões e notamos que não somos nós que temos as questões, mas elas é que nos têm, pois nos precedem e já desde sempre nos movemos nelas.

As quatro realidades

Não devemos tomar estas questões como sendo algo abstrato sem relação com nossa vida cotidiana. Esta nos é tão próxima que é, sem dúvida, algo de verdadeiramente real e concreto, aquilo que julgamos o mais concreto e real do real. Porém, pensemos um pouco em nossa vida cotidiana e vejamos se ela se constitui apenas de um real, de uma realidade indiscutível. Podemos destacar quatro.

1ª. Realidade. Tomemos um exemplo simples. Em geral nosso dia começa quando o sol se levanta e termina quando se põe. É hora então de encerrar os trabalhos ir para casa, descansar e voltar a dormir. Nossa vida como que está regulada pela trajetória do sol. Isso, como outras coisas, é algo de real e verdadeiro em nossa vida. Essa é a nossa realidade cotidiana com todos os seus afazeres, com suas tristezas, decepções, prazeres e alegrias. Nela vivemos e nos realizamos. É nossa vida em seu plano mais profundo. Só termina com o advento da morte. Mas por que ela parece tão evidente e repetitiva? Não será porque repetimos até inconscientemente as mesmas palavras, as mesmas idéias, as mesmas representações?

2ª. Realidade. Porém, na escola, já no primário, nos ensinam que isso não é verdade, que, de fato, é uma falsa idéia e impressão. A realidade é outra: Em relação ao dia é a Terra que gira em torno do sol, pois este é fixo e é uma estrela de quinta grandeza. Faz parte do sistema solar e este da via Láctea, que faz parte do universo etc. Mas quem diz isto? A ciência. E não diz apenas isso, mas muitas mais coisas que contradizem nossas opiniões do dia a dia. Então temos, de fato, duas realidades? A cotidiana e a científica? Qual a verdadeira, uma vez que afirmam coisas diferentes e até, aparentemente, contraditórias? Se em nosso cotidiano o sol nasce e se põe, e é isso verdadeiro, porém, o planejamento de uma viagem à lua só pode partir da verdade científica.

3ª. Realidade. Por outro lado, à noite, depois de um dia de trabalho, para me enriquer existencialmente, vou ler o romance de Machado de Assis Dom Casmurro. E acompanho com interesse e prazer as peripécias de Capitu. Bentinho, o personagem narrador quer provar desesperadamente que ela o traiu com o amigo Escobar. Não consegue, sempre resta uma dúvida. A questão da traição se torna uma das grandes questões apresentadas no romance. Mas, afinal, realmente Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Mas isso não é ficção? Ninguém vai encontrar na cidade a Capitu ou em qualquer outro lugar. Sem nos darmos conta já estamos falando de uma outra realidade. E não podemos dizer que é algo meramente ficcional, pois a questão da traição e do ciúme é algo muito real e verdadeiro na vida de muitas pessoas. E essa obra-prima de Machado não se reduz a isso. Muitas vezes diante da obra de um poeta de que gostamos, nos vemos repetindo os versos de determinado poema, palavras que não mais pertencem ao poeta, nem ao poema, mas são como que a nossa voz interior. São elas que dizem com mais intensidade o que sentimos e é profundamente real e verdadeiro. Porém, quem diz que a literatura é ficção? A verdade científica.

4ª. Realidade. Hoje em dia, tornou-se universal o descanso no final de semana. Muitas são as atividades que nele realizamos. Contudo, essa pausa no trabalho e no tempo, tem um fundo religioso. Diante do mistério que é a vida e a morte, o sentido do sagrado deu origem a muitas religiões e ritos. No fundo, o ateísmo moderno é também uma forma de se colocar diante do sagrado, porque não podemos confundir as diferentes religiões com o sagrado. Todas elas, à sua maneira, procuram experiênciá-lo, mas isso jamais quer dizer que o sagrado se esgote nos sistemas e ritos religiosos ou nas experiências epocais da arte e do pensamento. Dentro das religiões certas práticas meramente ritualísticas bem como nas artes simplesmente retóricas e formais até o negam. Para quem tem fé, a realidade da religião é até a mais verdadeira. Mas uma realidade que varia de religião para religião. Seja na experienciação que for o essencial é a concretização do sagrado, pois diversas são as experienciações possíveis do sagrado.

A verdade

E, de repente, nos achamos em nossa vida diante de quatro realidades. E então nos assalta a pergunta: Qual a verdadeira? Disso se tira uma conclusão simples: A questão da realidade é a questão da verdade. O que é a verdade? No evangelho de São João, Cristo, o ungido e divino poeta do sagrado, responde: Eu sou a verdade (aletheia), o caminho (hodós) e a vida (dzoé). Vemos que a questão do real passa pela questão da verdade. Outro exemplo. Hegel, com o método dialético, quis ler e explicar toda a história, que significa para ele a realidade em processo histórico. Com a dialética, Hegel quer chegar à verdade absoluta. Em relação às quatro realidades haveria quatro verdades? Eu creio que não. Há apenas uma verdade: a da realidade. Por que então a aparência de diferentes verdades, com predomínio da científica? É que hoje o sistema de ensino, restrito à visão científica, só considera verdadeiro o que é explicado pela ciência. Ela se tornou a única detentora e fonte da verdade. É claro que não podemos viver hoje em dia sem a ciência. Contudo, ela não pode se arrogar o direito de ser a única na determinação do que seja a realidade e a verdade. A realidade do cotidiano, da religião e do poético, vividos como algo diferentes da realidade científica, são, no entanto, lidas e encaradas e até vistas a partir da verdade científica. Sobretudo a poética. É da verdade científica que nos vem a afirmação e o conceito de ficção para a literatura. Sua verdade se tornou omniabrangente quanto à questão da verdade e, por isso, acabamos vivendo as outras formas de realidade sem o vigor da realidade e, o que é pior, sem o seu vigor de presença e determinação em nossas vidas.

Tudo isto porque lemos a variedade de realidades no paradigma da verdade científica. Mas esta não pode anular toda a presença da verdade nas outras realidades, daí as diferenciarmos, mas sem saber torná-las vivas e presentes em sua verdade de realidade ou vida.

Fora da verdade científica, o que é então a arte? Isto significa perguntar como ela se torna realidade e verdade. No entanto, querer tratar da realidade da arte só é possível partindo da questão da verdade. Isso não quer dizer que deva ser feita uma oposição à verdade científica, até porque esta é uma forma derivada da verdade da realidade, pois a realidade só nos advém como verdade, ou seja, como desvelamento. O contrário do desvelamento é a representação filosófico-científica. A verdade essencial, a poético-ontológica, faz-se presente em nossa vida como aquele agir já sempre pré-lançado no decidir e tentar realizar o que somos, porque o ser que somos só se manifesta pelo agir, enquanto acontecer poético. Deste acontecer está afastada toda poesia meramente retórica, formal, ideológica, representativa, metafísica. Não podemos esquecer que ser é agir (poiesis/poesia em sentido essencial). Por isso, o cotidiano é feito do habitual e do não-habitual. O habitual nada mais é do que a repetição de frases feitas, lugares-comuns, valores já estabelecidos em que já se pré-enquadra todo o nosso agir. Do não-habitual nos vem o apelo que emerge continuamente em meio ao habitual.

Um apelo que nos joga na insegurança, na insatisfação, na incompletude da completude, na ansiedade, na angústia, na solidão e na pro-cura incessante do novo, do inaugural, enfim, do poético. Este nunca é moralista, é sempre ético. O ético é a realidade se dando enquanto verdade. A pro-cura do originário e do inaugural é a véspera de uma completude e alegria e felicidade em processo de realização. Por isso, quando tais sintomas são mais fundamentais, ontológicos, não bastam as terapias baseadas nos diagnósticos das análises científicas, ou seja, é necessário apelar para instâncias essenciais. Então as realidades começam a se distinguir. Isto nada mais quer dizer do que a necessidade de apelar para uma outra verdade mais profunda do que a científica, a partir da qual encontramos sentido para o nosso agir, o nosso viver, pois a verdade científica não pode dar o sentido da vida para cada um ser feliz, só contribuir.

E entram em cena as ajudas das auto-ajudas, das religiões e de outras experiências e soluções de vida. A pro-cura delas é ainda e inegavelmente um sintoma real da necessidade da verdade. O problema está em que então a verdade se pode travestir de certos moralismos e receitas e paradigmas que, nas suas certezas, substituem a verdade se dando enquanto a realidade em proceso que pro-curamos e de que necessitamos. Daí a sensação de alívio e até de uma certa tranqüilidade. Resta a questão se a verdade que está inscrita na realidade do que somos pode ser reduzida a fórmulas prévias ou paradigmas auto-ajudativos (válidos como receita certa para todos), psicologizantes ou moralistas ou não passam de alívios passageiros. Então de onde nos vem a cura de nossas pro-curas?

O que aí se está decidindo é se esses “saberes”, aceitos como fórmulas de fé, dão conta da profundidade e complexidade da verdade da realidade – nas mais diferentes expressões: material, espiritual, existencial, psicológica, histórica, política. Não serão fórmulas de verdade derivadas, adjetivas, parciais? Será que a verdade não exige um mergulho no mistério que nos habita, mais interior a nós do que nós somos interiores a nós mesmos? Será que nos dispomos a nos abrir para a escuta e ressonância desse mistério em nós, sem fórmulas simples e representações ideológicas, nas quais as soluções já estão prontas e acabadas?

Claro que essas instâncias de verdade são importantes, mas fica sempre a questão se elas podem nos abrir para a verdade da realidade. Esta suficiência ou insuficiência não pode ser determinada de fora por nenhuma sistema – científico ou religioso – ou definição de verdade ou realidade ou saber. O mergulho no mistério que, queiramos ou não, já desde sempre nos habita, exige uma atitude de escuta permanente e humilde, uma ascese e disponibilidade de pro-cura daquilo que em todas as nossas pro-curas se constitui a cura: um penhor misterioso que nos advém na insistência permanente dos empenhos em que nos empenhamos. Nossa vida se torna um caminho que se faz caminhando. É um caminho de empenho e de pro-cura da verdade do mistério. Um caminho de verdade da realidade que descobrimos na medida em que nos abrimos para o advento da realidade em seu mistério, um advento que tanto mais advém quanto mais se retrai.

A arte e o sagrado

Ora, é com esse mistério da verdade da realidade que as grandes obras de arte e de pensamento, e os grandes textos religiosos nos confrontam. Então, as religiões não podem tornar-se sistemas moralistas e dogmáticos, nem a arte e o pensamento, catálogos classificatórios de obras, com soluções fáceis e prontas. Nelas deve ressoar um sério profundo apelo de escuta, pelo qual devemos necessariamente nos defrontar com o mistério do sagrado. Ler tais obras é deixar-se envolver por um desvelo amoroso. É desse mistério da realidade que são tecidas todas as grandes obras de arte, de todos os povos e culturas. Por isso, a essência da obra de arte é o desvelamento da verdade da realidade em seu sentido (a realidade, o sentido e a verdade são uma e a mesma coisa). O des-velamento é a manifestação do que se dando se nega a aparecer, ou seja, do que ama velar-se e retrair-se. A representação só representa o já desvelado. No dar-se e retrair-se está o mistério imcompreensível para nós: o que se nega a se manifestar porque sempre se vela, algo aparentemente negativo que é a possibilidade positiva de tudo que se manifesta (des-velamento). E justamente por isso mesmo é inesgotável. A representação fica sempre presa a algo circunstancial e conjuntural. Ela se esgota em ser representação e seu alcance se limita às funções sociais, ideológicas ou estruturais dos sistemas. Ela não alcança o que sempre está à margem e se nega a tornar-se sistema. Se a margem tornar-se sistema deixa de ser margem.

A arte é uma questão. Ela foi, é e será sempre misteriosa. A nós cabe apenas refletir sobre tal mistério como modo de preparação para poder experiênciá-la no desvelo.

Originariamente tanto as artes e o pensamento (poiesis) como os ritos religiosos provêm e são manifestações do sagrado. Quando então se pergunta pela verdade da realidade, em verdade, estamos perguntando pela verdade do mistério do sagrado. Mas o mais intuitivo, simples e admirável é que ele já perfaz e se faz presente em todo nosso viver cotidiano, em suas diferentes facetas. Apenas o habitual repetitivo do cotidiano tende a nos obstruir a visibilidade da presença do sagrado misterioso. É para ele que nos impulsionam as grandes obras de arte e os apelos de uma religiosidade sincera e essencial. Apelo não é aí uma força de expressão, mas o chamado, num vigor inusitado e admirável, da verdade misteriosa da misteriosa realidade. Mistério vem do verbo grego myestai e significa: o que se retrai no e como silêncio. Por isso, o sagrado é a voz do silêncio.

Talvez agora possamos compreender melhor as quatro realidades e o apelo que nos vem das obras de arte e de pensamento, não definidas nem compreendidas com os conceitos da verdade lógica ou científica. É claro que esse apelo continuará inaudito por nós, enquanto não nos abrirmos para a verdade como a questão das questões. Todas as obras dos grandes pensadores e das grandes figuras religiosas de todos os tempos e povos se moveram e movem em torno da verdade. O próprio mito, em sua essência, é uma figura-questão da questão da verdade. Mito vem do verbo grego myomai e quer dizer: fazer eclodir na palavra poética. Nos mitos se faz manifesto o sagrado. Daí que tanto as religiões como as artes têm um fundo mítico. O mito de Édipo é um dos grandes exemplos. Toda a vida desse personagem-questão gira em torno da procura da verdade, ou seja, ele quer-nos colocar diante desse mistério que nos atrai e envolve, embora sempre se retraia e vele. Outra palavra para nomear o mistério é o destino. Quando afirmo que a verdade é a questão das questões não estou estabelecendo uma hierarquia e, sim, que ela, necessariamente, chama e articula em torno de si as demais, por um motivo muito simples: a verdade é o mesmo que realidade.

A compreensão do que é verdade é muito simples, se tivermos a coragem de pôr em suspenso tudo o que já pensamos saber sobre ela e sobre a realidade. Mas não se trata de achar um novo conceito, no lugar dos já existentes, nem achar que os outros são falsos. Pela dicotomia falso/verdadeiro nunca se chega à verdade, como não se chega à realidade, pois esta nos ultrapassa e não se deixa reduzir a palavras e conceitos opositivos. No fundo trata-se simplesmente do des-velamento, do advento da realidade que tanto mais se mostra quanto mais se retrai e vela. A representação só representa o desvelado. A realidade sempre foi, é e será ambígüa. É o que já foi dito, com clareza enigmática, no famoso fragmento 123 de Heráclito: O que sempre se desvela ama sempre permanecer velado.

A dificuldade maior de adentramento da questão da verdade está em dois fatos correlatos. O primeiro diz respeito à tradição metafísica, pela qual se estrutura o conceito de verdade em cima do já desvelado, do manifestado. É o problema da representação. Então verdadeiro é o que dizemos e representamos quando coincide com “isso” que já se desvelou e manifestou. Porém, jamais podemos confundir verdade com verdadeiro. O segundo diz respeito ao conceito de “coisa”, que se diz em latim res, de onde provém a nossa palavra realidade. Por tal conceito, a coisa, o ente, é composto de um núcleo que se denominou essência ou fundamento e acidentes ou qualidades, expressas pelos adjetivos. Contudo, desde o início se separou a essência dos acidentes. A essência, para ser verdadeira, não pode mudar. Mas uma vez que a coisa muda como o indicam os diferentes acidentes ou qualidades e a própria vida, pois tudo muda, tais acidentes só podem ser aparência, algo falso, não verdadeiro. Com a separação reduziu-se a verdade ao verdadeiro, na medida em que o adjetivo expressa algo inerente à essência. É a partir da essência do ouro que dizemos que ele é verdadeiro ou falso. A verdade consiste em o ouro ser ouro. Só já conhecendo a verdade do ouro (o que é) é que podemso dizer se o ouro é verdadeiro (é o que é) ou falso (não é o que é, mas parece).

Se bem notarmos, não há nem pode haver separação entre essência e predicativos, pois cada coisa só chega a ser no que é quando se manifesta no como é. A realidade só é realidade enquanto acontecer. A tensão não está nesses dois aspectos, mas, sim, numa disputa da realidade entre o que se manifesta e o que se oculta e permanentemente se retrai. Se prestarmos atenção a um detalhe muito simples dessa tripla oração, notaremos que nelas se faz presente um se, que, gramaticalmente indica uma reflexão. Mas esse “se” não indica apenas um detalhe gramatical e, sim, o próprio mistério da realidade ou da verdade que se manifesta e, ao mesmo tempo, se retrai, se des-vela e se vela. Esse SE é o índice enigmático da presença/ausência da realidade. A partir destas constatações é necessário começar a pensar numa nova gramática: a gramática poética.

O ser-humano e o agir

Porém, o que nos acontece quando nos defrontamos com essa verdade, essa realidade misteriosa? Fique claro que não estamos diante dela como se não fôssemos também verdade e realidade. Por isso ela nos possui no mais profundo de nós mesmos. A questão agora é: como ela nos advém. Ela se nos doa numa tripla atividade:

1ª. Uma compreensão, realizada como um pensar; 2ª. Uma inteligibilidade, realizada como um raciocinar; 3ª. Uma fé, realizada como um acreditar. Estas três atividades são diferentes, embora provenham necessariamente do mesmo. É que nunca nos sentimos ou percebemos como sendo três pessoas e tendo três atividades diferentes. A cada atividade corresponde um nível diferente de relação com a manifestação da verdade. E os três níveis são importantes. Só chegamos a ser o que somos agindo para atingir aquele fim que nos plenifique no que já desde sempre somos e nos foi doado. É o mistério do destino. É que a essência do agir é o ser.

O método

Que lugar ocupam estas três atividades em nossa vida? Voltemos à passagem do evangelho de São João e notaremos que falamos o tempo todo de duas dimensões: a verdade (em grego aletheia) e a vida (em grego dzoé). E a terceira? Ela diz caminho (em grego hodós). E que é um caminho senão o per-curso de manifestação vertical e horizontal do que somos, de nosso ser? Nós ouvimos falar muito, em nossos estudos, do método. Ocorre que o uso cotidiano, fazendo de tal palavra um lugar-comum, a encobriu com camadas de cinza e esquecimento do que nela nos convoca a pensar e a viver. É o mét-odo. Este diz o metá-hodós, ou seja, o metá:entre e hodós: caminho. O método é o caminho-do-entre.

Este entre diz que somos seres da liminaridade, ou seja, que vivemos no horizonte do limite e do não limite, do finito e do não-finito, do desvelamento e do velamento. Ele indica o “lugar”, a nossa “abertura” constitutiva ao ser. O método, enquanto caminho, na tripla atividade se reúne e con-cretiza no experienciar. Este é o jogar inerente à “abertura” que nos joga na pro-cura, como caminho, da Cura, do Ser.

A linguagem

Em relação à criação, fala-se normalmente de imaginar. Mas este não dá conta da complexidade que envolve o que poderíamos chamar o que há de fundamental na obra de arte. O criar da arte vai estar muito mais relacionado ao agir, ao criar. A palavra grega para este agir sempre foi poiein, de onde se originaram as palavras: poeta, poema, poesia (poiesis). O poietizar, enquanto o pensar, o raciocinar e o crer, tem sua manifestação reunida na linguagem. Linguagem se diz em grego logos. Vem do verbo grego legein, que significa: ex-por, reunir e dizer. A linguagem é o sentido do agir, ou seja, da poesia, da arte, do pensamento. Às vezes também se traduz logos como palavra, outras vezes por dis-curso e ainda por proposição. Mas estas diferenças não podem ser expostas agora e aqui. Se o poietizar ou agir remete para o tempo, já a linguagem diz respeito à memória.

A linguagem não é algo acidental à realidade e à verdade. Só será linguagem se for a própria realidade e verdade. Porém, a linguagem sempre se nos apresenta como língua. A linguagem é a mãe de todas as línguas. A língua enquanto sistema se constitui de palavras que podem perfazer diferentes vocabulários. Cada realidade e cada verdade se configura dentro de determinados vocabulários. São estes vocabulários que permitem perfazer os diferentes textos e obras ou, talvez melhor, as diferentes falas de nossa vida.

Basicamente, teríamos os seguintes vocabulários: 1º. Cotidiano; 2º. Informativo; 3º. Científico; 4º. Religioso; 5º. Poético. Embora se possam distinguir, fazem parte de um sistema maior que se chama língua. Os vocabulários são como que vestimentas (conceituais) que vestem, revestem e configuram as realidades como diferentes mundos, mas que, ao mesmo tempo, sempre encobrem e dissimulam a realidade, uma vez que esta sempre se retrai e vela.

As questões da arte e da realidade

Do que vimos até agora, surgem as seguintes questões, que se interligam:

1º. O que é a realidade, o corpo, a Terra, o Universo?

2º. O que é a verdade, a ética, o mundo?

3º. O que é a linguagem, o verbo, a palavra, o dis-curso, o vocabulário?

4º. O que é o objeto, o texto, a obra?

5º. O que é a leitura, a compreensão, a interpretação, a análise? (Não esqueçamos que a palavra leitura vem de logos, daí sua ligação com a linguagem).

6º. O que é desvelo como experienciação e método? Em que níveis se dão?

7º. Como essas questões se relacionam com: pensar, raciocinar, compreender, criticar, crer?

8º. Como tudo isso nos advém nos textos e nas obras enquanto informar, conhecer, saber?

9º. Como tudo isso se faz presente enquanto agir (poiesis), como criar? E qual a ligação com a realidade, o corpo, a Terra e o mundo?

10º. Como tudo isto acontece como poesia, tempo, linguagem e memória, ou seja, como acontecer poético?

11º. Qual o lugar da consciência e do inconsciente como espelhos mediadores de métodos e identidades, conceber e ser?

Se bem notarmos, pelos dados levantados, o aprendizado e a aprendizagem da literatura se constitui em algo bastante complexo, mas muito rico. Daí ser a leitura algo também extremamente complexo, pois a questões acima enumeradas constituem realmente as questões da leitura, seja de textos artísticos, seja de textos religiosos. Como saber ler bem sem refletir e adentrar todas essas questões? Só como o empenho e dedicação amorosa que todo desvelo pressupõe.

O que aprendemos tradicionalmente é muito importante e tais conhecimento nos permitem uma certa aproximação da literatura, mas nem de longe dão conta de toda riqueza e complexidade das obras de arte e de pensamento. Por isso restringir-se a tais conhecimentos descritivos e classificatórios é ficar preso apenas à realidade concebida cientificamente através de conceitos abstratos e disciplinas que segmentam a realidade sem a auscultarem em sua riqueza. Estes conhecimentos configuram a realidade e a verdade numa grande rede que não pára de crescer, mas em que se perde o sentido do todo em que se constitui a realidade e a verdade. É que não percebem que uma rede é feita de buracos amarrados pelo vazio. A rede, em verdade, é uma doação do vazio. Por mais que se aumente a rede de conhecimentos, mais se aumenta o vazio. Diante do alarido dos conhecimentos, o silêncio do vazio que os doa e constitui sempre se retrai e vela.

No lugar deste todo rico e fundamental, tais conhecimentos, em nome de uma objetividade abstrata ou de um ensinamento ideológico, se estruturam em disciplinas, em que cada uma se julga portadora de uma verdade, ou seja, de conhecimentos verdadeiros correspondentes ao conteúdo da disciplina. Em todas predomina a idéia de representação. E sua verdade se limita a ser verdadeira num sistema, o científico.

Porém, a realidade e a verdade em sua essência ficam ignoradas e esquecidas. Ora, a riqueza e complexidade das obras de arte e de pensamento consistem justamente em nos manifestar a realidade e o mundo de uma maneira originária, sempre nova, original e inaugural. Com elas podemos experienciar o sentido da realidade e nosso sentido de vida, na medida em que nos lançam na experienciação do mistério da realidade e da verdade. É isto que explica a atração que a arte exerce sobre todos os seres-humanos, em todos os tempos e culturas, e, ao mesmo tempo, a sua estranha permanência. As obras de arte não são a-temporais, pois nada se mantém fora do tempo. Elas fundam o tempo, fundando a verdade e a realidade.

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