19 abril 2011

A história, a arte e os atributos

Convido os leitores deste blog, que se interessam por arte e por história, a dividirem comigo estas dúvidas e a estabelecermos um diálogo para uma caminhada de renovação poética. Se mandarem email, não esqueçam de colocar o seu para que possa responder. O meu é: profmanuel@gmail.com. Peço que façam uma leitura circular e poética, de tal modo que o tópico que trata do passado, no final do texto, se torne o motivo que conduz todas as considerações anteriores.


A história, a arte e os atributos – para debater o ensino da literatura e das artes nas escolas e faculdades.


Manuel Antônio de Castro

São as obras de arte que recebem os atributos e daí passam a ser a arte e as épocas ou se dá o contrário? São as épocas que geram os atributos e daí passam para a classificação atributiva das obras de arte? Pode haver uma atribuição sem a outra, isto é, da obra sem a época ou da época sem a obra? São as obras e as épocas atributivas em si, como maneira de diferenciá-las ou são artifícios conceituais para organizá-las cientificamente? As coisas são atributivas em si ou não passa esse expediente de uma forma de diferenciá-las formalmente? Se são as coisas atributivas em si, em que se baseiam os atributos? Dizem respeito às diferenças das coisas ou são expedientes propositivos para apreendê-las formalmente nas suas diferenças? Se for um expediente conceitual e expressivo pode-se aplicá-lo indiferentemente às coisas e às obras? As diferenças das coisas são o mesmo das diferenças das obras de arte? Mas será que o atributo apreende as diferenças, seja das coisas, seja das obras de arte? Qual o estatuto conceitual do atributo? Como o seu conteúdo genérico e abstrato, como é próprio de todo conceito, pode apreender a dinâmica diferencial das coisas e das obras de arte? Qual a diferença entre a coisa e a obra de arte? Podem-se igualar as diferenças das coisas e das obras de arte? Não haverá na proposição um limite conceitual que não corresponde à dinâmica de diferenciação contínua das coisas? Como se diferencia o vigorar das coisas e das obras de arte? É a mesma coisa o conceito genérico e epistêmico com que se conhecem e classificam as obras de arte e o pulsar vivo das coisas? Não haveria pulsar vivo nas obras de arte?
Quando se passa das coisas e das obras de arte para a história qual o lugar dos atributos nas classificações históricas? Só as obras de arte têm história, as coisas não? Como pode haver história sem coisas, uma vez que não há coisas sem physis? E não há techne sem physis? A techne é a physis vigorando enquanto conhecimento. Qual a diferença do vigorar da physis nas coisas e nas obras de arte? Não estará aí a diferença que funda e possibilita a história? Mas então a história é um princípio da própria physis? Tudo isto é importante para que se possa apreender o vigorar da época? O que é então época? Não é a própria physis em seu acontecer? Acontecer é o vigorar desvelante em retrair-se e velar-se. Poderia ser vista esta dobra do entre na imagem do farol infinito que se acende e apaga, tanto em vigorar na luz desvelante quanto no vigorar da escuridão velante. O que nunca se ... (ver aqui a sentença de Heráclito que Heidegger comenta no livro Heráclito) põe. Como nenhum giro se repete, cria a linearidade. Mas como todo iluminar e todo velar-se é total também acontece o vigorar da physis em plenitude, circularmente. E sempre o mesmo. O que o iluminar ilumina quando a physis se ilumina? Ela ilumina algo diferente dela mesma? Não há aí o vigorar da dobra, que é o entre? Sem entre não há possibilidade de diferenciação. A physis é originariamente um entre, um polemos. O entre fundando as diferenças faz delas um fenômeno coletivo. A inteligência é epocal e coletiva. Não há uma época de uma obra só. Do ponto de vista da história o entre é o diálogo vigorando. E como se dá esse diálogo epocal, porque em toda época não há só desvelado, há igualmente o velado? O velado não é falta, mas o que nas obras é seu vigorar. Como as obras são fruto desse entre, elas só vigoram no e como diálogo. Sem diálogo não há época nem obras. A época são as obras dialogando. Todo diálogo se dá não só entre os dialogantes, mas mais essencialmente no entre desvelar-se e velar-se, porque estes vigoram no princípio da physis. Este princípio não é estático é dinâmico. Não é linear, é circular. Não é finito, é infinito. Não se gera por exclusão, mas sempre e continuamente como inclusão. É na e pela vigência da inclusão que as épocas são ao mesmo tempo lineares e circulares, estáticas e dinâmicas, finitas e infinitas. A finitude das épocas não está nas formas, mas estas só se constituem na medida em que as épocas se diferenciam na tensão de finito e infinito e estática e linear do princípio. Tanto o finito quanto o estático só o são para quem não vê e não compreende o que nas épocas sempre vigora e as torna desvelamentos do velamento. Por isso o princípio do acontecer poético é o diálogo. Sem princípio da physis não há acontecer. E sem acontecer não há diálogo. Este é o princípio vigorando e fundando as diferenças. O diálogo é a voz do entre como princípio constitutivo de tudo que é e aparece e de tudo que não é e se vela. Sendo tanto os leitores quanto as obras históricas seu ensino e aprendizado é uma questão de diálogo. A diferença do diálogo é tanto de fala e escuta quanto de posição e oposição. A physis enquanto história é o próprio dispor da realidade em sua história e diferenças. Neste dispor a physis se dá enquanto sentido. O sentido e não os limites são o próprio das épocas. Sem sentido não há épocas em suas diferenças. A impressão de limites advém do vigorar do sentido das diferenças em que a physis acontece. As diferenças não são de conteúdo de conceitos e conhecimentos, mas de verdade e não-verdade, de desvelamento e não-desvelamento, de posição e oposição. É este acontecer das obras de arte como acontecer da physis que constituem o que se denomina formas ou limites. Estes são decorrentes do vigorar da physis no e como entre.
Pode-se reduzir a história e seus períodos ou épocas a atributos diferenciadores? Como se dá então a relação genérica dos atributos com o acontecer da história? Pode-se reduzir o tempo, núcleo essencial de todo acontecer histórico, a classificações genéricas ou atributivas? Qual o real poder do atributo em apreender e manifestar as diferenças? Pode o tempo ficar tributário e dependente do atributo? Até onde o atributo se fundamenta na realidade, seja das coisas, seja das obras de arte, ou nas teorias sobre a realidade, seja das coisas, seja das obras de arte? Pode-se reduzir a arte a uma teoria e esta a posições epistemológicas? Qual a relação efetiva e a referência real do atributo com a epistemologia e com a teoria do conhecimento? Pode a realidade e as coisas e as obras de arte e arte serem todas igualadas e reduzidas a teorias do conhecimento?
Os atributos são definidos em seu alcance pela lógica. Mas de onde vem a lógica para poder reduzir toda a realidade ao lógico, ou seja, a um atributo? Pensar a realidade já significa pensar a realidade lógica ou a lógica da realidade? E o que fazer com o que na realidade não é lógico nem se reduz à lógica? Por exemplo, o silêncio é lógico ou ilógico? E se não for um nem outro? O silêncio é real e nem por isso pode ser reduzido a qualquer classificação atributiva, melhor, nenhuma classificação lógica pode apreender toda a densidade real do silêncio. Ou pode? O silêncio também não é uma questão de ponto de vista, seja subjetivo, seja epistêmico, seja lógico, seja científico, seja epocal, seja cultural, seja religioso. O mesmo se pode dizer de toda e qualquer questão. Outro exemplo, a vida. E outro, a morte. E outro, o tempo. E outro, o amor.
Qual a relação e a referência da questão com o conceito e os seus atributos? Pode uma questão ser reduzida a uma teoria? Pode a realidade ser reduzida a uma teoria? Os atributos são jogos das línguas ou qualidades efetivas da realidade na realização das coisas, do real? Pode-se reduzir a diferença das coisas e das obras de arte ao seu jogo lingüístico, representado pelos adjetivos? Não há como negar na realidade as diferenças, como não há como negar as identidades. Não reduziriam os atributos as diferenças reais das coisas e das obras de arte a uma identidade genérica atributiva, de tal modo que os tributos manifestariam muito mais identidades abstratas das coisas e das obras de arte do que a sua realização real?
E pode o ensino da arte e a própria criação de uma história das artes serem reduzidas a épocas diferentes pela atribuição diferente? E como pode um atributo de uma época apreender e manifestar as diferenças concretas das obras de arte e das coisas? Seriam inferiores as línguas por não derem conta da dinâmica da realidade e das diferenças das coisas e das obras de arte através dos atributos? Mas pode haver língua que não se funde na linguagem? Pode haver separação entre língua e linguagem? Pode haver separação entre linguagem e realidade? Por que temos a nítida sensação de que nunca conseguimos dizer aquilo que está acontecendo ou que nos está acontecendo? Qual a relação e a referência entre estar e ser e dizer e silenciar? O que não conseguimos dizer no que acontece ou no que nos acontece é uma questão de silêncio ou de riqueza e transbordamento da realidade em relação à sua manifestação na língua? Toda língua concreta é surgimento de posições. Só a linguagem é fonte de todo vigorar da realidade. A linguagem é a realidade vigorando em seu acontecer.
Sendo os atributos tão genéricos e tão pobres em relação à realidade e ao que acontece como se pode ensinar a arte através de atributos classificatórios? O que tem o atributo a ver com as formas? O atributo diz a forma de algo no seu limite ou a sua classificação genérica dentro da proposição? Sendo a realidade e as obras de arte essencialmente dinâmicas, um acontecer sempre inaugural, como podem os atributos darem conta delas? Qual a real relação do atributo com as formas, seja da realidade, seja das obras de arte, seja da arte, seja do tempo, seja das épocas? Só temos o atributo proposicional como único recurso para dizer e manifestar as diferenças? Mas será que podemos reduzir as diferenças às formas? O que entender por formas quando se trata do acontecer da realidade, das coisas, das obras de arte, da arte? Qual a real relação entre limite e diferença? Qual a real diferença entre diferença, limite e forma? Qual o real lugar da obra de arte nesta dinâmica, neste acontecer? O que então pode querer dizer a palavra “obra”, uma vez que vem do verbo operar? Como Aristóteles apreende com as palavras gregas “energeia” “ergon” essa tensão da realidade se realizando em obras? O que quer dizer então “entelekheia”, onde aparece como palavra-chave o “telos”? Qual o lugar do “telos” na determinação dos atributos e das classificações atributivas? Pode o “telos” da realidade e das obras de arte ficar reduzido aos conceitos epistêmicos e às teorias do conhecimento e às teorias científicas, sempre entitativas e finalistas?
Até onde podemos tentar uma via, dentro deste cipoal amazônico de questões e perguntas, apelando para a crítica? Até onde a crítica fica dependente das teorias críticas e da razão crítica? Pode a razão crítica dar conta da crítica da razão? Como sair deste paradoxo? Não destrói ele justamente o impasse, seja da crítica, seja da razão, na determinação da realidade e da arte, seja das coisas, seja das obras de arte, na sua classificação crítico-atributiva, isto é, não se manifesta já aí o impasse e o impossível poder de se fundarem os atributos na crítica racional? O que seria uma crítica não-racional? Pode existir? Até onde a crítica dá conta das diferenças acontecendo, isto é, das coisas sendo realizações da realidade, das obras de arte sendo realizações da arte?
Pode a Poética trazer novas dimensões para encarar de uma maneira criativa e não excludente todos esses impasses e complexidade, seja das coisas da realidade em sua realização, seja das obras de arte em sua realização? Como pode a Poética redimensionar todo o ensino e estudo das coisas da realidade, das obras de arte da arte, sem cair nas generalizações classificatórias dos atributos? Partir de onde? Da realidade ou da linguagem? Da lógica ou da realidade? Não estaremos com esse “ou” reintroduzindo as fraquezas e limites reais dos atributos, das dicotomias destruidoras do sentido do ser e da memória viva? Não haverá em relação aos atributos a necessidade de um encaminhamento novo em relação á lógica tradicional, fonte dos atributos? Mas para isso não seria necessário reestudar a lógica na sua referência à linguagem e na sua referência à verdade? Não seria necessário reestudar a referência da língua à proposição e de ambas à linguagem? E não seria necessário reestudar a referência entre linguagem e verdade e verdade e acontecer da realidade, que se denomina tradicionalmente história? Não seria necessário reestudar a referência do ser humano e linguagem e verdade? E seria isso possível sem reconduzir a questão ser humano à sua referência à realidade? E não implica esta essencialmente a referência tanto do ser humano quanto da realidade à linguagem, à verdade e ao acontecer em que todos eles e elas vigoram?
E qual seria o ponto de partida? Não teria que ser o estudo essencial e revisão fundamental do que seja o acontecer? Pode haver lógica sem acontecer da realidade e do ser humano, o que significa, da realidade enquanto linguagem e verdade? E qual o lugar da arte nesse âmbito fundante e essencial? E como o atributo “essencial” pode dar algo novo e não ficar reduzido a mais um “atributo”? Pode-se reduzir o essencial a um atributo? Ou o essencial é o próprio acontecer da realidade na medida em que é um acontecer da arte nas obras de arte? Mas então não poderemos partir da classificação e caracterização das obras de arte e da arte sem questionar tudo o que aí está sendo proposto, porque tudo gira em torno dessas questões. Uma questão que parece tão simples, a questão dos atributos nos leva assim a abismos antes jamais pensados. E será que conseguimos achar caminhos conceituais e atributivos que façam as pontes e estabeleçam as ligações comunicativas? Não cairemos nos mesmos impasses? Não exigirá todo este questionamento a humildade da escuta e de espera do inesperado como caminhos plausíveis do pensar? Não será então o pensar senão um sempre estar a caminho para ser o que somos na e como realidade? Não serão as obras de arte e a própria arte o pensar caminhos, um sempre por-se de todos a caminho da linguagem como caminho do pensar? Isso afastará de nós a pretensão das generalizações dos atributos e das classificações para se abrirem caminhos de pensamento em cada um que quer se abrir para o próprio. Não há próprio sem arte porque não há realidade sem próprio, porque não há próprio sem realidade. E não há realidade sem acontecer da realidade enquanto linguagem e verdade. As diferenças serão necessariamente diferenças do que em cada um dinamicamente em seu acontecer se dá como diferente e identidade inaugural, seja do próprio, seja da realidade enquanto lugar do acontecer o próprio. No lugar dos atributos conceituais, teremos que deixar acontecer a realidade, isto é, a arte enquanto obras de arte, pois cada próprio será uma obra de arte. E como pode cada próprio ser obra de arte? Sendo o que é, aprendendo a ser o que já desde sempre é. Esse aprender é o aprender com. Ser obra de arte não é algo que se faça. Essa é a pretensão moderna, inviável. A arte nunca depende de um fazer. Só se é obra de arte sendo o que já se é. Como? Isso já nos foi dito pelo poeta-pensador Píndaro: “Torna-te o que és, aprendendo”. E com este imperativo categórico chegamos ao questionar inicial, estampado no título. A arte e os atributos. Atributo diz agora simplesmente o próprio. Mas este não depende de um fazer, mas de um manifestar o que já se está sendo desde que somos o que somos, pois o recebemos para realizar e não depende de um fazer para ser. O realizar, e não o fazer, diz respeito e sempre dirá respeito ao estar sendo, mas este só pode estar sendo na medida em que o estar é o sendo sendo o que já é e deve, no estar sendo, sendo o que já é. O ser funda o fazer no estar sendo. E é nesse estar sendo como fazer que cada um se torna necessariamente obra de arte. Mas então o fazer é propriamente realizar. Claro que uma tal obra de arte que cada um é está a uma distância-luz dos atributos conceituais. No estar sendo no vigorar do ser é que os atributos deixam de ser atributos para se tornarem o que vigorando no ser em todo estar são: diferenças. Mas então não serão mais nem diferenças genéricas nem identidades genéricas: serão diferenças e identidades poéticas.

O atributo surge quando a proposição em vez de se centrar no verbo como vigorar da linguagem em tudo que é e acontece se deslocou para o sujeito, tornando-se o predicado o como do sujeito. Desse modo a proposição passou a ser o enunciado sobre a coisa e não mais a própria coisa vigorando em seu sentido, ou seja, na linguagem. A predominância do sobre como tarefa principal do aprender e ensinar resultou da opção moderna pela correlação de sujeito e objeto que determina todo conhecimento como único verdadeiro e acabou por se impor também às artes e a todas as histórias, pois o saber da correlação de sujeito e objeto funda-se na demonstração objetiva e racional científica. Desse modo todas as histórias, das artes ou não, resultaram de pesquisas objetivas sobre os temas de que tratam. Tais conhecimentos sobre pressupõem a objetividade pela qual tudo fica reduzido ao como se conhece, não importando mais o que cada coisa é em sua essência. Daí todas as histórias tratarem das circunstâncias e jamais do que acontece enquanto realização essencial da realidade. A mudança dos focos diz respeito unicamente a determinadas circunstâncias em detrimento ou em negação de outras. A correlação racional sujeito/objeto a tudo fundamenta, porque a razão é o fundamento. Tudo isso em detrimento do acontecer da realidade. Este não tem o menor valor em tal perspectiva e fundamento, porque na modernidade só é o que for feito pela ação racional e objetiva do ser humano. Parte-se do pressuposto de que a correlação sujeito/objeto pode determinar no como se conhece o que é e o como é. Por isso todo fazer moderno é um fazer essencialmente racional, entitativo, funcional, finalista. É o império da realidade em seu acontecer reduzido aos sistemas. Desse modo a correlação sujeito/objeto sempre constrói a realidade como sistema. Só há realidade quando ela é conhecida dentro de um determinado sistema. Tudo o que estiver fora desta possibilidade será julgado acaso, irracional, acrítico, fantasioso, ficcional, imaginário, individual, transcendente, crença, dogma, crendice, senso-comum, superstições etc. etc. Seja para afirmar a sua realidade, seja para negar a realidade, o moderno parte sempre e termina sempre nos atributos. Enfim, tudo se reduz a atributos. Numa sociedade do conhecimento e da sua determinação pela comunicação, porque a linguagem foi reduzida ao meio e ao comunicável, o silêncio e o acontecer da realidade não têm mais vez. E diante de catástrofes, sejam naturais, sejam sociais, sejam familiares, sejam pessoais, que não cabem nessa racionalidade da correlação sujeito/objeto, são debitadas na conta do acaso. Acaso é tudo que não é sistema nem previsível dentro de suas leis, isto é, tudo que não cabe na realidade determinada pela correlação sujeito/objeto, isto é, pela racionalidade.
As histórias das artes variam segundo a escolha das circunstâncias determinadas objetivamente e constituindo um sistema. Só não tem vez a obra de arte no que ela como obra opera. A obra nunca pode operar fora do sistema da correlação sujeito/objeto. Mas tais correlações variam de acordo com as circunstâncias escolhidas. Daí decorrem as diferentes posições críticas. Entende-se por posição crítica duas coisas. Por crítica entende-se o conhecimento realizado e fundamentado na posição crítica em que se fundamenta a correlação sujeito/objeto, isto é, essa correlação tem que ser racional e crítica ou crítico-racional. Já a posição diz respeito à circunstância escolhida para exercer a teoria crítica. Teoria diz respeito à posição que fundamenta o objeto do exercício crítico. Mas tanto a teoria como o objeto já são determinadas a priori pela correlação sujeito/objeto, na qual está contida e determinada toda a realidade nos mais diferentes modos de realização.
São essas reduções que geram hoje diferentes modalidades de violência. É uma violência essencial, que atinge o cerne do que cada um é em seu próprio e lhe tira a liberdade, não de exercer a sua vontade subjetiva, mas de poder ser as possibilidades de seu próprio. Próprio é o que os gregos denominam, apropriadamente, Moira, isto é, dentro do Genos, proveniência de tudo que é, a sorte, o dote que foi dado a cada um. Pela escuta da proveniência, temos de levar à consumação este dote. Isso é libertar-se para ser o que já se recebeu para ser. E somos essencialmente “familiares” na medida em que todos temos nossa genética (genos) em cadeia de referências, dentro de um sentido dado pelo vigora igualmente do logos, linguagem, proveniência de toda memória e sentido do ser. Linguagem não tem gênero, porque é o gênero vigorando, mas aí sem atributos. Silêncio não tem gênero, porque é o gênero vigorando enquanto sentido. Os atributos e suas classificações são a maior fonte de violência contra todos os gêneros e não só das mulheres nem das demais pessoas postas à margem pelos sistemas classificatórios segundo gêneros atributivos. Libertemos não apenas o “feminino”, libertemos todos dos atributos, para que todos cheguem a ser obra de arte. A história de cada próprio não é separada da história de todos que estão sendo enquanto tempo e então tempo será ser. E o tempo sendo será sempre enquanto acontecer a nossa época. Mas a nossa época não se separa nunca do passado, porque é a divisão atributiva do tempo em passado, presente e futuro, é uma falsa separação atributiva. Por isso, o que é o passado? Eis porque corpo não é organismo formal, porque não há corpo que não seja presença. E o presente é o vigorar do passado em suas possibilidades de futuro.

O passado

Entendemos por passado o que passou, o que deixou de ser e se desvaneceu no passageiro, na inconsistência do aparente. Para nós, em nosso viver superficial e circunstancial, o passado é o que se retirou e adentrou uma noite onde tudo deixa de ser. O passado é, enfim, uma grande noite, onde, parece, todos os gatos são pardos. A noite nos traz o silêncio absoluto e a ausência de vozes, cores, luzes, vida. É a morada dos mortos para a alma. É a grande noite eterna e enigmática, de onde não se volta e todos e tudo, as vivências e tudo que elas produzem e marcam nossa vida com todos as suas conseqüências e marcas circunstanciais, se reduzem a lembranças em processo contínuo de esquecimento.
O passado é o que passou e não volta mais. Vive tudo da e na saudade. A noite é o grande abismo da anulação das diferenças.
Tudo isto é muito repetido e proclamado. E o que damos e acreditamos como verdadeiro é uma grande falsidade. Basta dizer que por detrás de tudo há sempre um destino, tendo como fonte inesgotável um genos. A lei do genos é terrível e implacável. Nela nada é esquecido ou omitido. Vigora. Às certezas inconsistentes da consciência desmascara o inconsciente. Ao esquecimento da lei da morte corresponde a lei da memória e da realidade.
Só aparentemente a noite é o reino da morte e do passado, aquilo que não volta nunca mais. Se não volta e por isso se tornou passado nem por isso quer dizer que o passado é o que passou e deixou de ser. Nada deixa de ser. Sempre é por ter sido. Só sendo porque está sendo deixa de estar para passar a ser. O passado é o estar que se tornou ser, é o estar que ficou sendo, sendo o que ficou. Por isso mesmo o passado não passou, tanto não passou que ele e só ele é a luz do futuro. Todo futuro vive do passado, do qual é o que no passado está velado e possibilita todo vir a ser futuro.
O passado não é o silêncio sepulcral que se julga ser. O passado só é silêncio sem voz para os que só escutam os falatórios das circunstâncias e do que não passa de brilhos aparentes. O passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa, pois é o permanecer de tudo que muda. Em nossa vida nunca nos guiamos pelo futuro que não conhecemos nem é. Em nosso presente se fazem presentes e nos guiam as vozes que se tornaram passado e vigoram como voz ativa em nossa vida presente. Essa é a memória vigorante de tudo que é humano em todas as culturas, em todos os lugares. O presente é a escuta do passado nas sonoridades e realizações do presente, de um agora que não cessa de permanecer mudando. Todo agora é o instante já, vigente do que no passado se velou. Isso é acontecer. Isso é época. Um agora que não muda nem permanece não é agora nem presente, muito menos futuro. Este é o presente como passado, pois o futuro é o velado vigorando no passado. Só aparentemente comparamos o presente com o futuro, só podemos comparara o presente com o passado, que é o que vigora e nos orienta e se faz presente em todo presente como possibilidade de futuro.
A noite não é o silêncio mortal e insonoro. É o passado sonoro como possibilidade de escuta do presente, porque sempre escutamos o presente como as possibilidades realizadas e não realizadas do passado. A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim que tal voz não cessa de se tornar passado.
A noite não é o silêncio apático. Nela a vida latente tem todas as vozes da realidade se realizando em silêncio. A noite é o silêncio em sua concentração máxima de fala. É tanta fala que não temos ouvidos para a ouvir. Só a loucura abre nossos ouvidos para a musicalidade da noite. A musicalidade da noite é o passado vigorando e se presenteando em futuro no presente.
Quando faremos do passado a noite de todos os dias? Quem sucede ao dia? Quem sucede à noite? Como haver sucessão se não houver a noite no dia e o dia na noite? Por que então opomos um à outra e a outra ao um? Dia e noite é uma questão de posição, ou seja, presente e passado é uma questão de posição. Toda posição é o ser estando. Sem ser não há estar, porque o estar é o ser sendo. Todo sendo é o ser se dando em posições. Nisso e só nisso consiste o estar. Todos almejamos ficar sendo. Por quê? Se estamos na noite almejamos o dia, mas se estamos no dia almejamos a noite. O ser não é dia nem noite. Não é. Vigora. O ser vigorando é o dia e a noite em seu estar se diferenciando. O permanecer da noite é a possibilidade do mudar do dia. O mudar do dia é a possibilidade do permanecer da noite, porque esta não pode permanecer sem o dia ser mudança. A mudança do dia é a permanência da noite. A permanência da noite é a mudança do dia. Não podemos nunca apreender e aprender a permanência como o que se tornou estático. A permanência não é estática nem dinâmica, porque não é. Vigora. Acontece. O acontecer é o vigorar que se presenteou em sentido. O vigorar jamais se pode tornar, ser devir. Ser devir é estar sendo. O ser nunca está sendo, só o sendo pode e deve estar sendo. O sendo é o estar que vigora no permanecer e mudar. Só o sendo permanece e muda, se torna, é devir, aparecer e desaparecer. O silêncio da noite vigora em toda fala, assim como se torna o devir e parecer de todo sendo aparecendo. O mudar é o vigorar do estar sendo. O permanecer é o vigorar do ter sido. O parecer é o aparecer do que se vela em tudo que está sendo.
A noite é o passado do que se dando se retraiu. O presente é o desvelamento do que se velou. O passado é o desvelado do que se velou. Por isso o futuro é sempre o desvelamento do que no passado se velou e torna possível o presente, sem o qual não pode haver futuro.