15 agosto 2006

Sinais da pós-modernidade

CURSO: PÓS-MODERNIDADE E REPRESENTAÇÃO

Prof. Manuel Antônio de Castro – 1º. Semestre de 2003, 13-05

Anotações.

SINAIS DA PÓS-MODERNIDADE

É importante estar atento à radicalização que a Modernidade significa: o MITO DO HOMEM como fundamento e centro de toda a realidade, expresso na correlação SUJEITO/OBJETO, onde não há lugar para a diferença e o não-saber, e é simbolizado pelo lema do ILUMINISMO: SAPERE AUDE (ousa saber). É o saber/ciência. É a razão crítica, tão crítica que anula a desrazão. Nisso consiste a essência da subjetividade, fazendo da filosofia a ciência/técnica que domina toda a Modernidade e se estende pela Pós-modernidade. Nessa percepção moderna e pós-moderna toda a realidade aparece como um sistema fundado na correlação sujeito/objeto: é a eclosão plena do MITO DO HOMEM, onde se dá o homem como MEDIDA de controle, a IDENTIDADE como monocentrismo (onde o real não aparece como dobra, como ambigüidade), a REPRESENTAÇÃO como projeção do real enquanto conceito/conhecimento objetivo/subjetivo, e a verdade enquanto adequação do que se projeta racionalmente e do que se representa efetivamente. A physis perde a dimensão do mítico, do poético, do sagrado, do mistério, porque estas dimensões implicam sempre uma ambigüidade complementar e de diferença. O MITO DO HOMEM exclui a physis enquanto diferença como diferença, o abismo sem fundamento em que Édipo, protótipo poético da TRAVESSIA do homem, se achou ao se perder.

O MITO DO HOMEM gera finalmente uma percepção da realidade, de toda a realidade, que se baseia na lógica, no conceito científico, na universalidade abstrata que gera o SISTEMA DE CONTROLE, em que aparentemente exercemos as nossas diferenças. Somos diferentes só para realizar as possibilidades do SISTEMA e reafirmar o SISTEMA. Nessa lógica vivemos a realidade em três verdades, aparentemente diferentes, mas essencialmente monotonamente única:

1ª. A verdade do CRER do Cristianismo.

2ª. A verdade do SABER da Ciência.

3ª. A verdade do FAZER da Técnica.

Em tais verdades, baseadas na correlação sujeito/objeto, tornadas sistema, sistema de realidade, controle de realidade, o que está excluída é a DIFERENÇA em tensão ontológica com a IDENTIDADE.

A crise da Modernidade gerou a Pós-modernidade: ela surgiu de muitos fatores:

- a certeza cartesiana nas idéias claras e distintas deu lugar à incerteza. A ciência tem na física quântica um novo modelo matemático onde a realidade se mostra como sistema de probabilidade e complementaridade.

- a consciência sofre o assédio do inconsciente e a dialética como expressão máxima da consciência, de afirmativa se torna negativa, porque sempre no processo dialético se excluíam as diferenças. Isso ficou bem patente no modelo único do HUMANISMO logocêntrico, que embalado pelo PROGRESSO linear e causal destruiu as demais culturas, criou o modelo de colonizadores e colonizados, a nova forma de escravidão como substituto da anterior.

- o modelo de valores morais como sistema permanente, válido universalmente, perde a sua validade porque à MORTE DE DEUS anunciada por Nietzsche no final do século XIX se segue a anunciada MORTE DO HOMEM na década de sessenta pelo estruturalismo epistemológico. O homem não descobre o homem, mas o sistema em que o homem se transformou.

- os países colonizados denunciam as metrópolis como paradigma de sistema de valores culturais a partir do qual eles e suas produções culturais são classificadas e depreciadas. Aí incluídas as obras de arte. A arte perde o seu vigor de gerar diferenças e passa a ser visto como veículo de valores ideológicos. Não notam que uma coisa é a obra de arte e outra bem outra é a TEORIA em que elas são lidas, analisadas e interpretadas. Não notam que a arte como toda diferença é vítima do monocentrismo idealista, paradigmático e representacional da METAFÍSICA.

- a desrepressão faz emergir as minorias excluídas: étnico-culturais, sexuais, morais, relacionais. Dá-se a afirmação dessas diferenças, mas na mesma lógica da afirmação das maiorias e do sistema metafísico. Não percebem que as diferenças não podem se afirmar se excluem do jogo da realidade a identidade, ou seja, que não há afirmação da diferença se não há afirmação da identidade, que esta tensão essencial e ambígua não pode ser meramente econômico-cultural, ideológica, que a ideologia gera ideologia, que é necessário radicalizar as diferenças no ontológico, que é necessário ultrapassar o MITO DO HOMEM, ou seja, o HUMANISMO metafísico e do ILUMINISTA.

- a substituição do sistema moral gera uma instabilidade que submete os seres humanos à moral do sistema, onde o homem se torna uma presa fácil do jogo econômico, da funcionalidade, do consumo, do instável e passageiro, da novidade, das modas, do desejo do outro, das necessidades artificiais, de uma liberdade aparente, porque baseada na escolha, sempre impulsionada pela propaganda a serviço da indústria cultural e de lazer. Nessa lógica ser é parecer e aparecer. O tempo como quantificação de experiências gera a angústia da morte, o vazio sempre adiado pelas promessas de uma plenitude que nunca chega. O apelo ao consumo promovido pela domesticação dos sentidos e do desejo por uma propaganda que persuade prometendo a felicidade e plenificação da vida gera uma busca sem finalidade que não a satisfação dos desejos e necessidades geradas pela própria propaganda e pelo sistema de controle.

- os excluídos são incorporados pelo sistema de consumo enquanto apelo para participarem do sistema, mas sem lhe dar acesso aos meios de aquisição. Gera-se uma pressão social de inclusão pelo exterior, pelo sistema de controle. Disso tudo resulta uma violência generalizada, opondo-se os incluídos e excluídos. Não há normas ou valores que medeiem essa tensão. Não há como conhecer o seu lugar. A crise moral aponta para o fracasso do MITO DO HOMEM. Sem o ontológico não há como apontar o horizonte ético como dinâmica de todo agir e empenho pelo penhor de toda ação. Para tal é necessário desconstruir o humanismo montado no percurso da cultura ocidental a partir do MITO DO HOMEM.

- no vazio moral proliferam os fundamentalismos nas mais diversas expressões, religioso, cultural, étnico, sexual. Não se percebe aí que é substituir simplesmente um sistema por outro, onde o outro é excluído e amaldiçoado e, se possível, eliminado. O religioso expulsou o sagrado e o científico expulsou o mítico. A arte é tolerada, mas como atividade marginal e domesticada pelas interpretações de origem metafísica: o ideologismo político, filosófico e científico. A arte passa então a ser incorporada como estética e divertimento, compensação da repressão do sistema de controle. A verdade do vigor poético de toda poiesis não tem lugar nem vez a não ser como possível produto de consumo e reafirmação interpretativa do sistema de controle, assumida como novidade e não como o novo no horizonte da realidade em processo.

A PÓS-MODERNIDADE só aparentemente desmonta o SISTEMA DE CONTROLE METAFÍSICO em que se constitui o percurso da cultura ocidental. Os sistemas se sucedem ao longo da História, em que o modelo permanece sempre o mesmo: a interpretação metafísica do real:

1º. O sistema cultural grego. Implantado por Alexandre, o grande, rei da Macedônia, educado na metafísica da cultura filosófica grega, se constitui no modelo protótipo e domina todas as terras do médio-oriente onde chegou a sua conquista. É a famosa PAIDÉIA GREGA, a primeira expressão do MITO DO HOMEM, o ideal de educação e formação do homem, fundamentado no homem ideal. Sua expressão está na humanização dos deuses entre os gregos, o que significa a submissão do sagrado à dimensão do homem, do humano, da medida humana. A expressão e modelização deste homem se concretiza no HOMEM PLATÔNICO, configurado e expresso no MITO DA CAVERNA. A physis se torna fundamento único, monocêntrico enquanto SER, onde se exclui o não-ser. Édipo com sua cegueira é excluído e passa a fazer parte da hamartia, da culpa, do erro, frente à verdade da luz filosófica, da conversão do homem à luz do ser, supremo BELO E BEM. O ser é incorporado ao MITO DO HOMEM.

2º. O sistema romano. A cultura romana é conquistada pelo sistema metafísico grego e este é reafirmado no médio-oriente e em todo o ocidente, até onde chegaram as conquistas romanas. É o famoso HUMANISMO romano, expressão e continuação da Paidéia grega.

3º. O sistema medieval-cristão. O anúncio de Cristo se transforma em sistema ao se apropriar do Humanismo greco-romano, dando-lhe uma feição teológica, onde o monocentrismo corresponde à lógica logocêntrica. O ser é identificado com Deus, interpretação monocêntrica da realidade, e Deus é projetado e visto a partir da Logos do HOMEM. A transcendência é incorporada ao MITO DO HOMEM.

4º. O sistema moderno. A ciência dita a nova percepção do real com a secularização do sagrado, a independência do poder político frente ao poder do religioso, a realidade reduzida à correlação sujeito/objeto, onde não há lugar para a diferença e o não-saber. O MITO DO HOMEM chega à sua plenitude pela incorporação da natureza a serviço do sistema de controle funcional de tudo. A imanência, a natureza, é incorporada ao MITO DO HOMEM. A Terra, o Cosmos perde a sua dimensão sagrada e passam a ser conhecidas cientificamente, tornando-se meros meios instrumentais e de reserva de recursos para o progresso sem fim da aventura do MITO DO HOMEM. Tudo está em função do homem funcional, ou seja, do HOMEM visto como fundamento do saber enquanto expressão da correlação sujeito/objeto. O sistema metafísico, dual e excludente, chega ao seu paroxismo. O sistema moderno se baseia na exclusão de tudo que não passe pelo lema do Iluminismo: sapere aude. Tudo que não couber no SABER, criticamente exercido pelo HOMEM, deve ser sistematicamente excluído, porque não será objetivo nem científico, não será funcional nem claro.

A Pós-modernidade é a crise deste sistema: fechado, excludente, monolítico, crítico, racional, imperial, humanista, violento, fascista, secular, ateu, repressor, prosaico, burguês, ideológico, niilista, moralista, dispersivo, indigente, perdulário, aparente e vazio. Não devemos ter a ilusão de que a Pós-modernidade será a superação desse sistema inerente à interpretação metafísica do real que se traveste em diferentes modalidades de afirmação do mito do homem. Pelo contrário, esse modelo de sistema já assume hoje uma face globalizada. É constitutivo do homem viver e se organizar em sistemas, desde o casal, à tribo, à nação, ao império, ao globalizado. Ou como bem diz uma propaganda: Só se conhece uma raça: a humana. Então o que vai caracterizar a Pós-modernidade? Creio que fundamentalmente a substituição de um sistema fechado e excludente por um sistema aberto e includente. Os sinais são muitos, mas ainda numa ótica funcional e de correlação sujeito/objeto. Mas reinstala-se a dúvida e a pro-cura.

Eis os sinais desta abertura e inclusão.

- a crise da metafísica, onde o dualismo dá lugar ao dual. Não mais isto ou aquilo, mas isto e aquilo, as identidades e as diferenças, o masculino e o feminino, os homo e os hetero, o céu e a terra, a luz e as trevas, a matéria e o espírito, a onda e a partícula, o eu e o outro, o ocidente e o oriente, o real e o virtual, o racional e o imaginário, a forma e a não-forma, o orgânico e o aórgico, a verdade e a não-verdade, o mítico e o científico, o limite e o ilimitado, o visível e o invisível, a fala e o silêncio, a língua e a linguagem, o humano e o divino, o mortal e o imortal, enfim, o homem como travessia e escuta ética e poética. O ético diz da excelência, do que é digno de ser pensado e realizado, e não de um valor a partir de um sistema ou paradigma previamente dado e ideal. O ético diz do valioso, e que há de mais valioso do que afirmarmos a nossa identidade, do que nos realizarmos, do que viver sendo, do que sermos? O ético é valioso porque nos abre para a possibilidade de nos plenificarmos, de sermos. Em sendo, temos valor, e não temos valores a partir dos quais seremos. O ético é a liberdade de ser. O ético liberta para o ser enquanto verdade e sentido.

- a afirmação da compreensão ao lado do conceito. O conceito como expressão universal abstrata da correlação sujeito/objeto abre espaço e lugar para a compreensão enquanto expressão do universal concreto do diálogo eu/tu, onde toda identidade é a afirmação da diferença e das intersubjetividades. É no diálogo eu/tu que a realidade – physis/logos - mostra a sua mais radical ambigüidade, porque cada um é ao mesmo tempo que não é. Cada um se percebe sempre sendo ambíguo, mas esta ambigüidade é nossa maior riqueza: a possibilidade de estar sempre sendo.

- afirmação da hermenêutica diante tanto da dedução como da indução como métodos de afirmação da verdade do real. A verdade hermenêutica leva em conta a questão não só do significado como também do sentido, onde a diferença como não-sentido é a possibilidade de toda identidade. O significado é produto do conceito. O sentido é abertura de compreensão. A hermenêutica enquanto questão do saber e do conhecer se desdobra na hermenêutica enquanto modo de ser o que se conhece. Hermeneuticamente não basta ter conhecimentos, é preciso ser o que se conhece. Hermes, o mensageiro, é a palavra manifestadora do real, a palavra do sagrado e da poiesis. A mensagem é a palavra libertadora enquanto fala das Musas, filhas de Mnemósine, a memória que manifesta o que se oculta no esquecimento.

- reafirmação da arte, de toda arte enquanto manifestação ambígua do real. As poéticas normativas e filosóficas, cientificamente definidas cedem às poéticas da poiesis, onde a realidade aparece e se manifesta em toda sua ambigüidade e são inerentes a todas as grandes obras. A arte, num sistema aberto, deixa de ser funcional e utilitária ou instrumental para lutar pelo seu lugar dentro do complexo jogo da realidade. O mítico, o sagrado, o poético foram desreprimidos frente ao sistema crítico monolítico e têm livre curso. Sofrem o assédio da cultura de massa e dos produtos de consumo, mas deixaram de ser considerados produtos marginais e simplesmente tolerados, embora a arte tenda a ser encapsulada nos museus e tenda a perder o seu poder mundificante. Num mundo funcional e secularizado quem tem ouvidos para o sagrado? Há uma reverência e uma proteção da produção artística e da memória cultural, mas que tende, por outro lado, a afastar as pessoas do vigor da arte. Há o perigo de a arte ser vista como parte do sistema. A educação para a arte tende a reforçar o sistema e não há, propriamente, uma educação pela arte. Há amplas possibilidades de educação para as diferenças e para a ambigüidade, diante da intransitividade vazia do sistema monolítico do consumo. Nenhuma época anterior apresentou tantas possibilidades de realização do ser humano. O grande sucesso dos livros de auto-ajuda, de diferentes experiências do sagrado, da abordagem de temas até então proibidos pelo sistema moral são o SINAL DE POSSIBILIDADES de eclosão das diferenças, de abertura para a ESCUTA DO SILÊNCIO. A arte brotada dos estreitos conceitos críticos do sapere aude do Iluminismo precisa se abrir para toda expressão artística múltipla, sem formas e gêneros definidos, eclodindo em atos, atitudes, falas, encontros, desencontros, experiências culturais no presente e de tantos povos já desaparecidos, e apenas indiciam a riqueza do real. A possibilidade na ação ainda não é obra. As experiências artísticas transformadas em obras abrem a possibilidade de experiências do real como acontecer do tempo e da memória.

- afirmação da Linguagem como centro de reflexão em torno da experiência do real. Ultrapassado o seu conceito lingüístico, a Linguagem se apresenta como o mistério no qual o real nos advém, e, dentro desta epifania, o homem na paisagem do real. Isto permite começar a desconstruir a lógica e a repensar o Mito do Homem na totalidade do real como Linguagem. O homem aparece não como alguém dotado de linguagem, mas como uma doação da Linguagem. E a expressão maior desta doação é a arte, a poiesis, a música, pois toda Linguagem é essencialmente musical. A questão da Linguagem retoma a questão da Compreensão e da Hermenêutica. Homem, Linguagem, Compreensão e Hermenêutica são faces do Real se manifestando.

- afirmação da ecologia como reinterpretação do lugar do Mito do Homem diante da mãe Terra e do Céu, diante dos mortais frente aos imortais. A physis retoma o seu lugar de questão do real, não mais interpretada como fundamento último, mas como lugar fundamental e essencial da ambigüidade, onde o aparecer é a contraface do ocultar-se, o desvelar, a tensão do velar, o atrair o mesmo do retrair-se. O homem se vê como uma parte integrante da grande aventura da vida e não mais como o senhor da vida e da morte, a tudo dominando e destruindo. Com a ecologia, o mítico pode retomar o seu vigor de manifestação do extraordinário que subjaz ao mistério da vida.

- predominância do estudo das obras de Nietzsche e de Heidegger. Nelas se faz a crítica da metafísica e a ultrapassagem do monocentrismo idealista e resgate da dualidade apolínea e dionisíaca da realidade, o resgate do sentido e verdade do Ser enquanto diferença da diferença, a apreensão do Ser como Nada do ente.

- advento da física quântica como afirmação da physis enquanto probabilidade e complementaridade. A verdade monolítica e universal da ciência se esvai diante do mesmo fenômeno visto de modo radicalmente diferente pela física newtoniana e pela física quântica. O como deixa de se opor ao ser e o real se dá enquanto se retrai, seja na arte, seja na ciência. Está em jogo o sentido e verdade do real, abrindo-se a possibilidade de se ultrapassar a correlação sujeito/objeto pelo resgate do que o homem e o real ésão para além de mera funcionalidade. O ético e o poético deixam de sofrer o assédio lógico e paradigmático.

- reavaliação dos diversos saberes e disciplinas pelo busca de uma universalidade concreta. A obra de Heidegger vem tendo a mais ampla influência nos mais diferentes saberes, que aparentemente nada teriam a ver com a sua reflexão filosófica.

1- no direito

2- na poética

3- na teologia – teologia negativa

4- na filosofia – resgate do pensamento

5- na hermenêutica – resgate do ontológico frente ao epistemológico

6- na ética – ética como abertura de lugar do ser, em substituição à moral como sistema fechado de valores

Influência do pensamento heideggeriano em diversos conhecimentos ditos científicos:

- sistema de dados

- assistência social

- enfermagem

- psicoterapia

- psiquiatria

- psicologia

- educação

- revalorização do mítico e do sagrado. É importante ressaltar que tanto o mítico como o sagrado e o poético não são propriedade de nem advêm como sistema, mas podem eclodir como modo de atuar dentro do sistema abrindo-o, questionando-o. A Pós-modernidade ao se tornar um sistema includente abre horizontes para a eclosão do mítico, do sagrado e do poético. A desconstrução metafísica opera a descontrução sistêmica e abre sempre um lugar para a afirmação do não-sistêmico e das diferenças. Preservam-se culturas e línguas, incentiva-se a identidade como identidade da diferença, ou seja, diante do vendaval da globalização, dos meios de comunicação que chegam instantaneamente a todo lugar, há o cuidado pela preservação da diversidade e respeito pelas expressões e valores culturais diferentes. Tudo isto são possibilidades poéticas e nesse sentido vivemos um tempo privilegiado.

- a vez e voz do silêncio. Emmanuel Carneiro Leão num pequeno ensaio intitulado “O pensamento a serviço do silêncio” diz: “... o pensamento se desenvolveu, inicialmente, a serviço do ser. A partir da Antigüidade, ele se vai transformando e se pondo a serviço do crer. Com o final da Idade Média e o novo Renascimento, ele se coloca a serviço do conhecer. Talvez agora, na passagem do segundo para o terceiro milênio, o pensamento tenha de se colocar a serviço do silêncio, do calar-se”, p. 241. Ensaios de filosofia. Vozes, 1999. Falar de silêncio numa sociedade que investe maciçamente nos meios de comunicação parece paradoxo. Mas quem sabe se a saturação da fala, das canções não seja o breve caminho para a saudade do silêncio, não seja a descoberta de que a proximidade se conquista não pela abolição física das distâncias, o que toda técnica já está conseguindo, mas pela acolhida do silêncio enquanto escuta do que no espelho da representação colhemos e recolhemos enquanto atravessamos a alteridade na acolhida do que somos e não-somos em tudo que fazemos? Quem sabe se em meio a todo esse sistema de possibilidades das diferenças não temos um encontro marcado com a voz do silêncio? E talvez na travessia, que é nossa vida, não nos deparamos no indeferenciado e ordinário do cotidiano com o extraordinário de todo inesperado?

A Modernidade cunhou o lema: Sapere aude (Ousa saber). Dentro de uma razão crítica e excludente fechou os ouvidos para toda diferença. A crise do sistema abre amplas possibilidades e talvez se coloque como a mais radical a mudança desse lema num novo, não excludente, mas includente pela ESCUTA:

Ousa saber o não-saber

Ousa ver o não-ver

Ousa sentir o não-sentir

Ousa fazer o não-fazer

Ousa crer o não-crer

Ousa querer o não-querer

Ousa pensar o não-pensar

Ousa conhecer o não-conhecer

Ousa amar o não-amar

Ousa ser o não-ser.

Ousa fazer da vida a travessia da fala à voz do silêncio

pela escuta do que somos e não-somos.

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