27 setembro 2009

Espelho: o perigoso caminho do auto-diálogo


O caminho do auto-diálogo é perigoso porque nos lança nos limites do agir causal e no não-limite do agir não-causal, da necessidade de ser o que se tem para ter o que se é. O homem, ser da liminaridade, isto é, do ser entre o limite e o não-limite, faz do perigo e do seu agir perigoso um mover-se no frágil véu do abismo do Nada. É no poder renunciar que se deixa tomar pelo poder de ser. Poder não é o poder de realizar possibilidades dentro do agir causal. Poder é deixar-se tomar pelo poder de ser, para realizar o que já se é. E então o caminho é o caminho da renúncia. Renúncia não é penúria. É não ter bens para ter o bem. É fazer da liberdade a necessidade de ser. É renunciar às procuras para fazer da cura a única procura. Cuidar de ser eis a liberdade como necessidade.
Podemos compreender que na liminaridade nos movemos entre dois poderes: o dos conceitos, que sempre tentam trazer para o saber o não-saber, fazendo do saber um poder agir causal, decisivo, conceitual, pelo qual, construindo a ciência e a técnica constrói o real. E há o poder do questionar pelo qual pensando o homem já age, sem conceitos, sem causas, sem efeitos e deixando a realidade e suas coisas advirem ao que elas são, o que significa deixá-las vigorar enquanto questão. No agir do pensar a questão, esta age e pode agir pelo próprio agir do que na questão se dá a pensar. Acolher essa doação é a tarefa do pensamento e da poiesis. Mas isso se faz num diálogo. Dialogar é experienciar o perigo da liminaridade, caminhar sempre no limite do não-limite, no ordinário do extra-ordinário, na essência do homem em sua referencia ao Ser. O caminho do questionar deixando as questões serem questões é o pôr-se a caminho da linguagem, do pensamento essencial, do pensamento poético. É que viver da e na liminaridade se tornou não simplesmente viver, mas uma tarefa poética. Porém, isso não se faz sem o perigo do auto-diálogo. O perigo do auto-diálogo está não em fazer do espelho um especular do agir causal, transformador e de efeitos, de procura incessante de bens. O perigo do auto-diálogo está em fazer do espelho um especular que abra a ação do ser-humano a partir de sua essência como o necessário e não como o preciso. Não se trata de precisar algo, a realidade, a liminaridade, mas de precisar do auto-diálogo enquanto uma tarefa perigosa de se jogar no abismo, onde ser e necessidade são um e o mesmo. O perigo do caminho do auto-diálogo é o caminho de se estar sempre a caminho da linguagem, como o único essencial e necessário. É trazer para o perigo do auto-diálogo do espelho o lema dos Argonautas: Navegar é necessário, viver não é preciso. Habitantes da nau da linguagem, só nos resta uma coisa única e necessária: navegar, fazendo do caminho da viagem o caminho do auto-diálogo, onde todo caminhar já nos envia para o envio do espelho, onde o que se vê e acolhe e sabe e pensa é o próprio, o mesmo. Navegar é o singrar na Nau da linguagem rumo ao originário, o Ser enquanto princípio, para que a viagem se torne um caminho em direção ao fim, enquanto realização e plenitude da origem, o próprio enquanto o mesmo. Auto-dialogar é necessário, viver é sem precisão.
Quando dialogamos, nota-se que nosso conversa se encaminha facilmente para as lembranças, ou seja, aquilo que somos a partir do que nos ficou na consciência. Assim nossa vida se passa entre aquilo que ficou das muitas vivências guardado na memória e se lembra enquanto con-sciência. E assim nossa vida se move nesses conteúdos da consciência e é com eles que construímos nosso eu, aquilo que conhecemos e lembramos do que fomos sendo. Mas nosso eu não se constitui unicamente do que nos lembramos. Também ele se constitui do que vivemos e não lembramos mais. É o que Freud vai chamar das camadas do subconsciente e do atuar do inconsciente. Então o que somos é visto dentro dessa dinâmica da consciência e inconsciente. Porém, aí se coloca a questão: nosso eu, aquilo que somos, se resume aos conteúdos do consciente, do subconsciente e do inconsciente? Já notamos aí que essa pergunta pergunta e coloca em questão o que somos, determinado pelo saber da consciência. Até onde o ser que somos é mais do que simplesmente os conteúdos da consciência? E como adentrar essa questão?
Evidentemente fazendo da questão o penoso caminho de penetrar nos interstícios da consciência, no sentido geral de conhecer e saber. É que o conhecer vai remeter para a palavra grega tekhné em seu duplo sentido de conhecimento e de conhecer instrumental. E até onde o ser que somos, nosso sendo, se resume também ao saber? Saber é aquilo que somos para além do simples conhecer, ou seja, nosso ser sendo para além da medida da razão, medida de todo conhecer inerente à consciência. Mas já estamos entrando por caminhos que são veredas da questão, enquanto esta é o caminho da dobra de ser e pensar, no dizer de Parmênides, na sentença III: “... to gar auto noein estín te kai einai”, “...pois o mesmo é pensar e ser”. Em grego vamos ter noein. Como traduzi-lo para o pensar de nossa língua? Até onde ele diz em grego o que na posteridade ficou reduzido à medida da consciência, ou seja, a razão? E por que a razão se tornou a causa eficiente de todo sendo, de todo ente?
Os caminhos do Ocidente são complexos e é necessário ir adentrando os seus desvios e atalhos. Um dos atalhos que o Ocidente realizou e se perde nas brumas do agir causal é o atalho que privilegiou a tradução da palavra grega lógos por razão. Que apelo comum havia tanto em lógos quanto em ratio? E será que se atentou também para o que as diferenciava? É aí que a questão se faz questão e não meramente um interstício oculto dos conceitos e dos conhecimentos. Aí a questão se torna aquilo que, enquanto o mesmo, nos convoca e provoca ao pensar, ou seja, ao questionar. E por que, posteriormente, se identificou o conhecer com a razão? Porque em grego há uma proximidade entre: nous, lógos, tekhné, episteme? No entanto, sabemos que um dos sentidos mais fortes de lógos sempre foi e será linguagem. Então se coloca a questão, mais do que uma simples pergunta: O que há de comum entre razão, ou conhecimento, e razão, ou linguagem? Será que é a mesma coisa? Ou serão dimensões do mesmo, de que nos fala Parmênides? E então dentro do vigorar da questão ainda se coloca a pergunta mais decisiva: O que há de comum entre ser, conhecer ou pensar e linguagem, ou seja, qual a referencia entre on, nous, lógos, ratio e linguagem? São estes os fios em que se entre-tece a questão do eu e de sua identidade. Para que a identidade não se torne um simples conceito geral e de generalidades, mesmo quando quer afirmar as diferenças, pois é impossível falar de diferenças sem ter uma unidade, uma medida, e sem ter uma diferença que seja a identidade de todas as diferenças, porque então será a identidade das identidades, é necessário haver uma unidade. Essa é a grande procura dos pensadores gregos. E Parmênides já o diz na sua sentença III: “... pois o mesmo é ser e pensar”. Podemos desdobrar: O mesmo é ser. O mesmo é pensar. Se agora pensamos que o mesmo se torna o sujeito das pro-posições, mas que esse mesmo, como sujeito, se funda no é, compreenderemos, porque se o mesmo é o sujeito das duas proposições, também o é comparece como núcleo verbal das duas orações, que nos movemos numa dobra: de ser e mesmo. Trata-se agora de pensar como se dá a referencia entre o sujeito da pro-posição e o seu núcleo verbal: o é.
Sem dúvida nenhuma, como afirma a gramática, fundada na pro-posição e tentando fazer desta o juízo da realidade, o ser não é um verbo fraco. Fraca é a gramática que se fundamenta na proposição enquanto representação, sem pensar o que na proposição já de antemão se dá: o sendo do ser, onde o ser é verbo porque é ação. Trata-se de saber até onde há uma correspondência entre a estrutura do sendo, em grego on, e a estrutura da proposição, composta de dois termos essenciais: sujeito e predicado. O que a gramática sabe do que é essencial? De onde ela retira essa idéia de essência? Da pressuposição de que o on se com-põe de uma essência e de uma aparência, de um sujeito e de um predicado. Mas esta já é a visão do on/sendo a partir da pro-posição, não do vigorar concreto do sendo. Será que o on/sendo é constituído por essa estrutura? Isso é uma su-posição. Ora, a pro-posição, enquanto enunciação do sendo/on, se fundamenta no lógos. Se isolamos o lógos e o pro-pomos como fundamento, então o ser, ou como hoje em geral se fala, a realidade, ou ainda em outra afirmação: a totalidade dos entes, vai ficar dependente e determinada pelo lógos, mas aí compreendido como a representação do sendo/on. E toda representação é representação da essência do sendo/on, na medida em que a essência da representação é a proposição. Se bem observarmos, giramos aí num círculo vicioso, onde a realidade só nos chega como representação e esta como o império da proposição. E esta como o fundamento, do qual o mesmo é o sujeito. Mas se a essência não se fundar no sujeito e, sim, como é evidente, no ser? Como pode haver essência a não ser a partir da vigência do ser? É que a proposição deslocando o fundamento do ser para o sujeito, este se autonomiza de tal maneira que esquece o que o funda: o ser. Pois sem ser não há sujeito, ou seja, nenhuma essência. Ora se não há sujeito ou essência sem o ser, isto diz e proclama e evidencia que o ser não é um verbo fraco. Muito pelo contrário: o Ser é o verbo de todos os verbos. Sem ser não há realidade.
Dada a posição moderna, que estabelece como fundamento a razão crítica, mas só pensa o fundamento e não o fundar, isto tem de ficar bem claro: Quando se emite, enuncia, um juízo crítico como pro-posição, a posição da proposição enquanto juízo, afirmação e determinação de sentido, sem o qual não é possível falar de diferenças e conhecimento, só é possível porque já o on/sendo se deu a ver no e como fenômeno e sentido. Sem o mostrar-se e aparecer não há a menor possibilidade de se tomar posição, seja ela qual for. Se bem notarmos, surge então a questão de que não há só um on/sendo, há uma infinidade, há uma multiplicidade. O ver não só vê a multiplicidade (vigência das diferenças), caso contrário não haveria ver, haveria uma sucessão de sensações sem sentido, vê já dentro de uma unidade. Se não houvesse unidade, como poderia ver diversidades e diferenças se quem vê não se vê? Esta unidade não pode ser dada pelo sujeito, mas só pode advir do próprio ser, vigorando no mostrar-se e retrair-se. É aqui que temos que voltar à sentença de Parmênides e não à posição moderna da razão crítica, pois aqui se faz necessário uma crítica da razão, mas sem também fundar a consciência critica na crítica da consciência, pois caso contrário, apenas haverá uma inversão. Se retomamos a sentença de Parmênides e onde nela ficamos, compreenderemos que não só o ser se dá enquanto on/sendo, mas ao mesmo tempo, ou seja, dentro do vigorar do mesmo, já se dá também o noein. Porém, temos que pensar não só o ser a partir do noein, e o mesmo enquanto o mesmo de ser e de noein, mas que esse mesmo só vigora no e enquanto é. “Enquanto” diz aí a referencia de ser e noein ao tempo. O mesmo é, enquanto é. O é, enquanto tempo, é o mesmo. É o tempo que possibilita, enquanto vigorar do ser, o mesmo ser o mesmo.
Se agora voltamos ao desdobramento da sentença de Parmênides que fica: O mesmo é ser. O mesmo é pensar, notaremos que pensar e ser, dentro da estrutura da pro-posição, parece que tanto ser quanto pensar são predicativos do mesmo. Estes predicativos são modos de o mesmo se dar. Pensar e ser fundamentam-se no mesmo, segundo a pro-posição. Porém, esta é enunciado do on/sendo. Então ser e pensar são o mesmo dentro do âmbito da proposição. O mesmo, enquanto sujeito, fundamenta tanto o ser quanto o pensar. No entanto, o sujeito, como sujeito, é a essência do ser enquanto ele na pro-posição nos advém no é. Portanto, o é da proposição diz, enuncia o mesmo enquanto a vigência do é, isto é, do ser, pois não há vigência possível de qualquer essência a não ser a partir do ser. O que está agora em questão são duas coisas: de onde nos advém a unidade de mesmo e ser, e de ser e pensar? Também podemos dizer: De onde nos vem a unidade de proposição e on/sendo? Certamente não é da proposição, pois esta já é a posição que advém para a frente da vigência histórica, na medida em que ela é proposição e não simplesmente o on/sendo, pois eles se diferenciam. De cada on/sendo podemos notar concretamente sua densidade, suas cores, seu peso, seu valor em meio às relações reais do mundo das coisas e dos homens. Um on/sendo pode cheirar e ter sabor. Isso nenhuma proposição enquanto representação tem. Cada proposição ainda não passa de uma representação que recebe sua validade do on/sendo, pois uma sentença, uma proposição, por ser representação, por ser um produto da consciência, é desprovida dessa concreticidade. Basta dizer, para exemplificar, que com a sentença: Esta peça de ouro de cem gramas é verdadeira, ainda que afirme uma representação verdadeira, com ela não posso comprar nada. Só a peça real, concreta, pode ter um valor de compra. Ou outro exemplo: Com a proposição: Esta casa é espaçosa e bonita, porque não passa de uma representação, ainda não posso morar nela. Só posso morar na casa concreta, que aliás, outra pessoa pode achar grande demais, custosa de manter e até feia. Os juízos sobre a realidade concreta podem variar. Em si e em repouso, a coisa, cada on/sendo, se retrai e se nos torna inacessível em seu repousar em si. Nosso acesso a elas são as representações, mas concretamente não se pode viver de representações. Isso apenas quer dizer que a proposição precisa do on/sendo e que este jamais pode ser reduzido à proposição, enquanto esta ficar apenas no estatuto da representação. Pode o lógos, a linguagem ser mais do que um meio e instrumento de representação? Eis aí a questão da Poética enquanto questão da linguagem.
Isso diz que temos que remeter o ser e o pensar dos predicativos das proposições: O mesmo é pensar e O mesmo é ser, para o sujeito O mesmo, mas este não pode vigorar sem o ser sendo, enquanto vigorar do ser em cada e em todo é. Mas para ser tal vigorar, o é de cada proposição não pode se tornar um verbo fraco em virtude do poder do sujeito, aqui neste caso, do mesmo. Pelo contrário, é impossível o mesmo vigorar na proposição como sujeito sem o vigorar do é, isto é, do ser. É nesse sentido que o ser enquanto é é o ser de todos os verbos e é o fundar do sujeito no que este se enuncia enquanto fundamento. Como se dá então a dobra de sujeito – o mesmo – e é, o fundar de todo sujeito? Vejamos: o mesmo enquanto sujeito só pode vigorar enquanto sujeito, isto é, ser o sujeito da proposição, da enunciação, enquanto recebe seu vigorar do é, enquanto este é o fundar do fundamento que é o sujeito. Já notamos perfeitamente que se o sujeito fundamenta, enquanto essência, só é essência enquanto essência do ser, pois é este e só este que funda o fundamento do sujeito e, portanto, da proposição enquanto enunciado e enunciação. Como questão a Poética se move no fundar. Portanto, temos de pensar tanto a essência da ação quanto a da linguagem no vigorar do fundar.
Em nossa vida cotidiana vivemos das proposições e nos posicionamos e temos pontos de vista ou perspectivas e as enunciamos nas mais diversas situações, ou seja, espaços e tempos. Sabemos que o espaço, onde já desde que nascemos estamos jogados e nos movemos, é constituído de três dimensões: altura, profundidade e largura. Porém, o saber da ciência constatou que há uma quarta dimensão do espaço: o tempo. Sem este não é possível se mover no espaço e suas três dimensões. A proposição espacial se nos dá porque o tempo já reúne as suas três dimensões, caso contrário, viveríamos num espaço que não se constituiria num mundo de coisas e pessoas múltiplas e diversas, de possíveis relações e até de mudanças. O espaço sendo espaço é o tempo acontecendo. Daí o tempo ser a quarta dimensão do espaço. Toda proposição é ao mesmo tempo uma pro-posição espacial – posição – e uma pro-posição temporal – pro, que diz o vir à frente, o acontecer do tempo. Então trata-se de agora pensarmos o tempo. Ou seja, aquele enquanto do sujeito, do mesmo, enquanto é. Esse enquanto é é a referencia de tempo e ser. Que referencia é essa? Sabe-se de há muito que o tempo também tem três dimensões: passado, presente e futuro. Será que o tempo também tem uma quarta dimensão? Ou as três não têm entre si unidade, são uma sucessão de multiplicidade e diversidade sem possível unidade? Isso é impossível, pois se “isso” acontecesse não poderia nem aqui e agora estar perguntando. Se pergunto e pergunto isso, quer dizer que há um sentido que a tudo dá unidade, que há constitutivamente uma unidade. Essa unidade se dá numa evidencia simples, aquilo que ainda é enquanto o vigorar da dobra de ser e pensar: a questão. Toda questão é e não é, sabe e não sabe. Acontece que a questão não é algo que a consciência põe. Pelo contrário, nós somos postos na e pela questão, pois já vivemos e nascemos, amamos e morremos, e nos movemos na questão como unidade e vigorar de tudo que é e se sabe, se dá e se retrai. A questão não é posta pela pergunta do eu, do sujeito. O eu é que é posto pela questão. Por exemplo, para perguntar, já tenho que estar vivendo, me experienciando no vigorar do tempo.
Enquanto questão, o eu, em sentido fundamental, é constituído não pela consciência, mas pelo saber do tempo. Só por o tempo já estar vigorando antes da consciência é que o eu pode ser constituído pela consciência. Sabemos que o tempo se dá em três dimensões: o passado, fonte das lembranças e configurador do eu, enquanto aquele que sabe o que foi; o futuro, o que ainda não se é e não se sabe nem se pode saber, porque o que não é também não pode ser sabido, e pelo presente. Este é a vigência do passado naquilo que ainda não passou, mas se faz presente como ausência do que ainda será. Todo presente é, ao mesmo tempo, uma ausência presente e um presente ausente, de tal modo que o passado não é só o que se faz presente na consciência, mas o que também, tendo passado, se esquece. Se não houvesse esquecimento nosso eu transbordaria de lembranças e não poderia em princípio viver no repouso do que já fomos e do que ainda seremos. Por isso, o presente é o que não cessa de acontecer. É este acontecer que foge à consciência enquanto consciência, pois o acontecer não é fundado pela razão crítica, sujeito transcendental. O presente é a unidade de passado que passou e não passou e do futuro que é o futuro do passado, o que ainda está para ser. Que unidade é essa? Ela não se constitui pelas possibilidades do futuro, ela já contém em si o que vigorando sempre enquanto presente é ao mesmo tempo futuro e passado. O presente vigorando entre passado e futuro é a memória. Enquanto memória ela é o que foi, o que é, o que será. A memória é o ser vigorando. E como se constitui em unidade a memória ou o ser vigorando? Quando assim perguntamos só podemos perguntar porque a memória do ser já se nos ofereceu como pergunta. Só podemos perguntar porque já vigoramos no ser, na memória do ser. É que o ser, a memória, é questão. É que a questão não é apenas saber e não-saber, ser e não-ser, ela é também a unidade de saber e ser, de não-saber e não-ser. E só por ser unidade é que a questão pode advir à pergunta. Advir à pergunta é advir à linguagem, a partir da memória. Memória é unidade e sendo unidade é linguagem. Linguagem, enquanto unidade, não é, em primeira instância, fala ou elocução. Só se fala na e a partir da linguagem. Então podemos dizer que a quarta dimensão do tempo é a memória, e esta é a unidade do tempo enquanto o tempo se faz linguagem. É. O tempo é já diz, originariamente, linguagem, unidade.
As representações das proposições são falas possíveis da linguagem. Linguagem é lógos. Lógos é mundo. Quando a sentença órfica diz que o homem é o “dzoion logon ekhon”, já diz que o homem se constitui enquanto homem, porque já está lançado na linguagem, na abertura, no mundo, ou seja, a transcendência que faz o homem homem, isto é, “dzoion logon ekhon”, mundo. Esse é o lugar da essência do homem na sua referencia ao Ser. Lugar diz aí mundo, enquanto a referencia da Essência do homem ao Ser. Lugar, mundo, linguagem, jamais disse, diz ou dirá uma faculdade do homem. Assim como o homem é constituído pela questão, o que é, assim também o perguntar é constituído pel questionar. Por isso, de tudo que é e está sendo, só o homem pergunta, porque já está vigorando no questionar, no ser. Questionar é ser tomado e já se mover nas questões. Questionar é o difícil e perigoso caminho do homem para o saber e não-saber, para o ser e o não-ser. É que nesse caminhar acontece a referencia da essência do homem ao ser, isto é, a linguagem. Por isso a essência do homem é estar sempre a caminho da linguagem. É que a linguagem fala, não o homem, o homem só fala quando responde e corresponde ao chamado e apelo da linguagem. O que aí diz responder e corresponder? Como pode haver resposta se já de antemão o homem em sua essência não estiver aberto para a fala da questão, do lógos, da linguagem da memória, da memória do ser? Não é disso que nos fala o pensador Heráclito quando na sentença 50 traz essa questão para o pensamento da escuta? “Auscultando não a mim, mas ao Lógos, é sábio reunir no dizer do mesmo: tudo um”. Na ausculta do lógos acontece a unidade das diferenças. Por que o lógos, enquanto vigorar do silencio, na fala unificante e mundificante da linguagem, é a unidade das diferenças, o tudo um? O verbo légein – de onde se forma lógos -, em sua proveniência originário, no indo-europeu articula quatro sentidos: pôr e depor, depositar, expor e propor; reunir, dando sentido ou unidade às diferenças postas e expostas.
Como falar de diferenças se elas já não se movessem no sentido da unidade? Ter unidade é mover-se no sentido. Uma justaposição de tijolos ainda não é uma casa. Eles se tornam casa quando se reúnem numa unidade: a casa. Esta como unidade é prévia aos tijolos. Prévia diz aí a abertura do homem para o sentido da unidade, do lógos. A unidade acontecendo é o sentido. O sentido acontecendo é a linguagem. Légein tem o sentido de dizer. Todo dizer diz a partir e na vigência da linguagem, da unidade, do sentido, da reunião de tudo que é posto. Linguagem só tem algo a ver com língua porque o dizer, o pronunciar uma sentença, o enunciar a palavra, o verbo, usa a articulação do órgão bucal para produzir sonoridades, a língua. Mas alguém que não fala, que é mudo, pode se mover no sentido da linguagem, no sentido da sonoridade da musica, na linguagem dos gestos na dança, na unidade de sentido do mundo das cores. Légein, enquanto pôr, reunir, dizer, mundifica. Légein é mundificar. Mundificar é pôr, reunir, dizer.
E o que o espelho tem a ver com o eu, com o auto-diálogo, com o perigoso caminho do auto-diálogo? Essas são as questões que nos colocam dois contos famosos de dois autores geniais, intitulados em ambos: “O espelho”, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Neles o eu, para além da consciência, se põe a caminho da questão. O eu existe? Se existe, o que é o eu? Não haverá o perigo de nos pormos a caminho do eu como o não-eu, como o eu que é e que só é no abismo do não-ser? E que é o eu enquanto consciência diante do abismo do Nada? O eu não passa de um acontecer do Nada? Não nos adverte Rosa logo no início de seu conto: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” ? (Rosa: ). E se o abismo for a terceira margem, a outra margem do eu? Então o eu encontra o seu elemento: o sou do Ser? Como afirmar o eu sem o sou? Então o eu não nos advém na consciência. Onde ele nos advém? Será no auto-diálogo? O que é o auto-diálogo?
O on/sendo antes (tempo) de ser objeto da pro-posição já vigora no tempo enquanto questão. Isto diz: o on/sendo é antes de ser proposição um entre on/sendo e me-on/ não-sendo. Que entre é esse? Ele é o mesmo de einai e noein, na medida em que ele é o Nous, o vigorar do ser no noein. Como entre temporal o lógos é a quarta dimensão do tempo. O Nous, enquanto entre, é o espírito e o lógos, é o intus-legere, o entre-lógos, o diá-logo..
Se o Nous é o pensamento, o Lógos é a linguagem. Então do ponto de vista da quarta dimensão do tempo, este enquanto ser, temos que ver como se dá a referencia de pensar e linguagem. Mas não podemos ver sem tornar presente a referencia, se antes não saímos da determinação do eu enquanto agir do sujeito, entendendo aí como sujeito a razão enquanto consciência, subconsciência e inconsciente, pois aqui ainda se trata de determinar o consciente a partir da consciência como a sua negação – in-consciente -, como uma outra face da consciência, vista pelo lado da negação. Aí negar é um outro modo de afirmar, como num movimento dialético, necessária a negação como passo decisivo para a constituição do espírito. O espírito é a consciência da realidade mediada e superada pela negação e afirmação da negação na síntese. A negação é a mediação necessária da antítese para surgimento e afirmação final da síntese. A especulação atingiu aí o seu saber absoluto. De especular se forma a palavra espelho. O eu que sabe e sabe que não sabe, e que sabe que sabe e que não sabe. É nesse “e” que une, que conjunta, que vigora o especular, o espelho. O eu absoluto se torna o ser que sabe e o saber que é: o que é racional é real e o que é real é racional. Como sair deste círculo férreo da dialética do espírito, da especulação, do espelho? Não saindo, mas adentrando cada vez mais, para além e aquém da especulação, do espelho. Trata-se de pôr em questão o especular, a mediação.
Mediação é sempre o caminho entre a saída e a chegada. E se a chegada já for desde sempre a saída, se o télos já desde sempre for a arkhé em sua plenitude de realização? Então não haverá nem negação nem síntese, mas tão-somente o caminho como um pôr-se a caminho do próprio, como o caminho do lógos, como o perigoso caminho do auto, o próprio, e do lógos, como o fundar, reunir, dizer e mundificar de pensar e ser. Pôr-se a caminho é caminhar. Mas se o caminhar não for do sujeito, mas o próprio deixar acontecer do agir, do ser, do on/sendo no e a partir do ser? Caminhar é aqui agir, mas então de que agir se está falando se não for o agir do sujeito? E há um outro agir? Não é o sujeito que pratica sempre a ação? Quando assim perguntamos ainda não saímos da proposição e da gramática. Porém, a proposição é já proposição do on/sendo e do lógos. Como se dá a referencia de on/sendo e lógos? No e pelo agir. Mas então será o agir do on/sendo e não do sujeito da proposição, ou seja, daquele que fala e enuncia. Será a fala da linguagem do ser. Cabe ao sujeito para se tornar sujeito, eu, escutar a fala do sou. Escutar é deixar o vigor do silencio se tornar fala, ação. A fala enquanto ação é o télos de arkhé. Escutar é deixar o ser agir, tornando-se linguagem. Isto é pensar.
Quando não falamos sobre a consciência, mas agimos na e com a consciência, porque nem sempre tudo que fazemos, o fazemos a partir da consciência, se coloca como questão a essência do agir. Esta ultrapassa o agir da consciência, embora a maior parte de nossas ações se dêem dentro do campo da consciência, ou seja, do eu agindo no âmbito do conhecer. O eu agindo e produzindo efeitos é o que chamamos geralmente de causalidade. Mas há também um agir não causal. É o agir poético. Como este se coloca na sua referencia ao eu, compreendido enquanto consciência? O agir causal da consciência é o agir intencional, que, de alguma forma, define o agir autoral. O agir poético não é um agir da consciência nem um agir autoral, logo não é um agir intencional. Como assim?
Heidegger no início da Carta sobre o humanismo, e já vemos que vamos ter a questão do agir ligada à questão do humanismo e do humano, diz: “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão a Essência do agir” (Heidegger, 1967: 23). E distingue em seguida o agir causal do agir não causal. O que este é? “A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência” (Heidegger, 1967: 24). Este é o agir não causal, pois não está dependente de um efeito, de uma finalidade, de uma intenção da consciência nem muito menos restrito ao exercício ou prática de uma função dentro de um sistema, pois toda função efeito pressupõe um sistema onde tal aconteça. Trata-se no con-sumar de um agir poético. É que todo agir poético diz respeito sempre ao que é essencial. “Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser” (Heidegger, 1967: 24). O eu enquanto consciência se realiza enquanto um saber que sabe, ou seja, um cum-scire. E como o eu se realiza na sua referencia ao que é, ao sou do Ser, pois o que antes de tudo é é o Ser? O eu se realiza numa referencia, a re-ferencia da Essência do homem ao Ser. E em que consiste esse realizar? “O pensamento con-suma a referencia do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua”. Caso isso acontecesse seria um agir do sujeito produzindo um efeito, ou seja, um agir causal. “O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser” (Idem, p. 24). O que nos foi entregue pelo próprio Ser é o que nos é próprio, o que cada um é. De próprio se formou em português a palavra propriedade. Esta não diz bens, mas a essência do que é próprio. Próprio se diz em grego: to autós. Bens já é uma derivação das relações do ser humano com as coisas e com os outros humanos, num agir causal.
Mas há uma diferença radical aí entre propriedades como ter e o próprio enquanto ser. Podemos ter bens, mas não podemos ser os bens. Ser só se pode ser o próprio. A nossa propriedade nos advém desde que somos o que já desde sempre somos. Nesse sentido, o que nos é próprio, o que já desde sempre somos, é o que se chama, em grego, Moira, nosso próprio, nosso quinhão do ser. A tradução tradicional para o português é destino. Este, portanto, não depende de uma ação causal, não é o resultado do agir do saber das intenções da consciência. Não é um eu da consciência e o resultado de ações causais, por isso, o que cada um é, o seu próprio, independe do meio e das influencias de ordem social ou psíquica. Esse é o eu da consciência. O eu do próprio é muito mais, é não causal, é o que somos. Con-sumar o que somos é uma tarefa poética, isto é, não causal. A poiesis consiste propriamente em apropriar-se do que é próprio, do que cada um é. A poiesis é pensamento, pois no pensamento se con-suma a referencia da Essência do homem ao Ser. No e como pensamento se dá e se restitui a referencia do Ser à Essência do homem. E como acontece a restituição, que nunca é um efeito ou a realização de algo dentro de uma relação causal? A restituição acontece enquanto uma ação da poiesis, dentro de uma ação poética. “Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem” (Heidegger, 1967: 24).
Agora podemos retornar à sentença III de Parmênides: “ ... pois o mesmo é pensar e ser”. A referência aqui entre pensar e ser está no mesmo. Mas agora já podemos compreender e apreender o alcance desse mesmo. Este é o agir originário da poiesis, pelo qual o pensar se desdobra numa restituição em que o ser se torrna linguagem. O pensar é o pensar do ser na e enquanto linguagem. O pensar é o pensar do mesmo na e enquanto linguagem. O mesmo, em todo on/sendo, é o ser e o ser se pensa no mesmo enquanto linguagem. O mesmo não é a mesma coisa, assim como a linguagem não é a mesma fala, o mesmo discurso, a mesma palavra, a mesma obra, a mesma época, o mesmo destino. O mesmo é o acontecer poético inaugural, porque o mesmo é o acontecer do próprio enquanto linguagem.
Assim cada eu não se dimensiona pela consciência, mas radica sempre no próprio do ser enquanto linguagem. Ora, isso é o que nos diz o espelho, se por espelho compreendermos o lugar do especular, do pensar. Lugar aí é mundo, é linguagem, é unidade, é memória. Assim no especular do espelho temos um caminho a fazer, um perigoso caminho, o do auto-diálogo. Neste, temos o caminho do próprio enquanto pensar do ser que nos é próprio. Mas o pensar do próprio e não o raciocinar da consciência é a restituição do que recebemos para con-sumar, a referencia de nossa essência ao ser. E em que consiste esta tarefa poética? E por que ela é perigosa? Porque não é um agir que nós decidimos. É um agir que acontece enquanto restituição, oferenda do que somos ao originário de nossa proveniência: o ser. Nessa oferenda se con-suma nosso destino. E se con-suma porque essa oferenda, enquanto pensamento e enquanto poiesis, se torna linguagem do Ser. “A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem” (Heidegger, 1967: 24).
O ser humano se apropria do próprio no perigoso caminho do auto-diálogo. Se auto, diz o próprio, dia-logo diz o quê? Lógos é a linguagem e linguagem do Ser, do próprio. O auto-diálogo nos joga e solicita, enquanto escuta de ação poética, a entrega à linguagem do Ser. É na e enquanto linguagem que podemos nos apropriar do que nos é próprio. Porém, há o dia-. O que este diz na e a partir do pensamento da linguagem? Dia- diz dois, enquanto dobra: o sendo do ser e o ser e pensar. O pensamento não se torna consciência. No pensamento, o Ser se torna linguagem: lógos. Diá- diz ainda o entre, a dobra. O espelho é um caminho, o caminho da linguagem, mas pode-se tornar um descaminho, onde não aconteça o auto-diálogo, mas a aventura perigosa do desvio da consciência, do agir causal, da representação, da fuga do destino, onde o conhecer não realize o ser, mas se queira dar um ser pelo e no conhecer. Então o dia- pode-se tornar o espelho enquanto o através de, onde este se torne instrumento da consciência, da afirmação do conhecer e exercício da liberdade enquanto vontade especulativa, de afirmação do sujeito e construção da realidade, em que se escreve a história e esta se prescreve como a realidade futura, o eu da consciência histórica e social. A identidade do eu enquanto ação da consciência histórica. Perigo diz limite. Todo caminho caminha entre os limites e as formas. As formas da consciência podem tornar-se o perigo sempre perigoso da consciência do eu e do eu da consciência. Será então o eu da consciência enquanto representação histórica. Para evitar este perigo é que se coloca a questão do espelho enquanto caminho. Um caminho que pode ser da consciência ou um caminho da linguagem, o caminho do silencio da terceira margem.