13 agosto 2006

A ação e a caminhada de vida

A ação e a caminhada de vida.

25-04-06

Prof. Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

Método é uma palavra grega e diz concretamente toda caminhada que o ser-humano faz para atingir seus fins. Isso pressupõe o agir e seu sentido. O agir e seu sentido diz-se em grego póiesis, ou seja, ação com sentido tendo em vista a manifestação e construção de algo. Por isso todo nosso agir tem um fundo poético em sentido essencial. O sentido em sua etimologia significa caminho que dá unidade às sensações de todos os sentidos. A esta unidade ou sentido entendemos como tempo e póiesis, memória e linguagem.

Não podemos considerar o método apenas como um conjunto de procedimentos para delimitar um objeto, uma análise, um estudo, pois devemos distinguir a caminhada de vida e realização que todo ser-humano deve necessariamente empreender e a metodologia filosófica e científica como resultado de uma teoria. Tais procedimentos brotam naturalmente da posição epistemológica que parte da constatação de que todo conhecimento resulta de um “como se conhece” e que o conhecimento assim constituído se torna o resultado dos procedimentos científicos e sua aplicação correta e exata (metodologia). É a teoria do conhecimento ou espistemologia.

Essa regra epistemológica e científica se tornou padrão e até parece hoje impossível constituir qualquer conhecimento sem se fundar nessa relação. E isto vale tanto para as ciências físicas como para as ciências não-físicas, como, por exemplo, as ciências sociais e artísticas. Mas então os procedimentos têm um significado mais amplo. São atitudes, estratégias, paradas, observações, avanços, redirecionamentos, reflexões, práticas, tentativas, fracassos, acertos, incertezas, perplexidades, paradoxos. Essencialmente todo procedimento é a concreta proposição de uma disposição. Mas é esta que dimensiona aquela. Tudo isso essencialmente é a questão se manifestando em sua concreticidade.

A posição epistemológica está sofrendo um profundo questionamento como pressuposição para qualquer conhecimento, daí a questão do método se tornar sempre a questão inicial. E isto vale sobretudo para as “ciências” artísticas. E é sobre elas que se concentram as nossas reflexões. Mas para tanto é necessário um defrontar-se com a posição epistemológica pela qual o pensar racional precede o próprio ser, ou seja, “o como” é que determina “o que” cada conhecimento é.

Diz-se que a essência de “algo” é “o que” ele é e “o como” ele é. Nesta formulação “o que é” advém na prática só na medida em que “o como” manifesta “o que é algo”. Consideremos esse “como” como sendo o conjunto de procedimentos e de sua aplicação. Na realidade “o que é” advém como conhecimento (da essência, do que é) na medida e alcance dos resultados da aplicação desses procedimentos. Será de fato assim? Partamos de algo concreto que tem uma dupla face: uma leitura de uma obra de arte como sendo uma viagem, tratando-se de uma obra e não e jamais de um “objeto” passível de um desmonte analítico ou explicativo.

1º. Antes de surgirem os procedimentos e até a “idéia” da viagem já temos que ter a “própria obra”, ou seja, sempre que surgem procedimentos e viagens eles se fazem a partir de “algo” que já existe. Não são os procedimentos que a “criam”. Na realidade vai haver uma dialética “entre” a obra e a caminhada. A caminhada resultante da seleção e aplicação dos procedimentos proporcionará a cada leitor/caminhante uma compreensão. Um conhecimento “objetivo” do que a obra “opera” e “opera” a obra jamais ocorrerá.

2º. Porém, antes de resultar essa compreensão já devo partir necessariamente de uma pré-compreensão. Pelo simples fato de que se não houvesse esta nem poderia saber nem distinguir de que é que se trata, muito menos estabelecer os procedimentos, pois estes mudam de acordo com aquela viagem que se vai empreender e da obra que se quer apreender. Toda leitura pressupõe já uma pré-compreensão que está muito além da simples consciência.

3º. Devemos, portanto, dizer e afirmar que a pré-compreensão já está dada de antemão. Isso quer apenas dizer que a compreensão se funda num agir que se exerce numa abertura de pré-compreensão, onde o próprio agir funda a pré-compreensão e a compreensão, na medida em que uma e outra são o próprio agir agindo.

4º. Se o agir é sempre agindo temos que ter uma ação concreta onde tal se dê. E a ação concreta que nos ocupa é certamente o melhor exemplo. A leitura como caminhada de compreensão de uma obra. Se o agir funda essa ação concreta, o que funda o agir? Ao fazermos essa pergunta já estamos agindo e queremos com ela conhecer o que é o agir. Mas só podemos perguntar pela essência do agir agindo, isto é, perguntando. Por isso na pergunta já está originariamente colocado o fundamento do agir, por dois motivos muito simples. De um lado, se eu quiser perguntar pelo fundamento do perguntar só o posso fazer perguntando. De outro, ao perguntar, se eu não soubesse de algum modo o que é o agir nem poderia perguntar. De fato, eu só posso perguntar porque de alguma maneira já sei e não-sei senão também não precisaria perguntar. O agir funda o saber e o não-saber no sentido de que ele já nos advém no simples perguntar pela essência do agir. Não é minha pergunta pela essência do agir que funda o agir, assim como não é meu pro-pósito de fazer uma leitura-caminhada que funda a obra e até a compreensão que possa vir a ter dela. Porque o agir já precede toda ação concreta significa isso que no simples ato de perguntar já me advém o sentido do próprio perguntar, ou seja, o agir não só funda todo saber que se sabe mas também de algum modo todo saber que não se sabe. É o que se está querendo dizer ao nomear isso como a compreensão e a pré-compreensão. Isso se chama o círculo poético-hermenêutico. Por isso enquanto necessário perguntar já somos de antemão fundados e constituídos pelo questionar, ou seja, pelas questões.

5º. O agir e sua essência necessariamente circular não é um agir no sem sentido, ou como se diz no linguajar cotidiano, um agir no vazio. Isto quer dizer duas coisas. Que o agir busca sempre uma compreensão e que essa compreensão não é algo aleatório, mas pressupõe sempre um penhor (fim) no empenho (ação) da compreensão. Isto em relação às leituras/viagens tem uma importância fundamental, pois não só determina os procedimentos mas também pro-voca a diferença das múltiplas leituras e viagens. Ou seja, toda viagem é empreendida dentro de uma pro-cura (o empenho pelo penhor). A identidade das diferentes leituras é a pré-compreensão assim como a identidade das diferentes pro-curas é a Cura. Porém, a ação de procurar e seus procedimentos tem uma dupla finalidade, que vai fundamentar toda nossa relação com a obra de arte ou qualquer outra relação, inclusive a relação com o outro. De um lado temos as ações que pro-curam a compreensão de “algo”. Elas fundamentam todo o aprendizado, que é sempre conceitual, toda a elaboração de conhecimentos tendo em vista os diferentes “objetos” de conhecimento. Estes são múltiplos em sua variedade e complexidade e são ampliados por diferentes teorias e procedimentos através de novas e contínuas pesquisas e estudos no percurso histórico. Nestes estudos tende a haver uma dispersão de conhecimentos perdendo-se a unidade de onde provêm, além de perderem de vista a outra finalidade. Ou seja, os empenhos são tantos no afã metodológico de estabelecimento dos conhecimentos que se perde de vista o penhor que move todas as nossas pro-curas. Perde-se no fundo o sentido do próprio agir. E que sentido é este? Ele é muito simples: A pro-cura do que nos é próprio. E o que nos é próprio? O que nos move em todas as pro-curas: a Cura, ou seja, o Penhor dos penhores de nossos empenhos. Noutras palavras: toda compreensão busca no fundo a pré-compreensão, essa abertura do que já desde sempre somos. Todo agir da pro-cura como também todo o agir inerente à Cura já são essencialmente póiesis. E como agir da póiesis pro-curamos mais do que o aprendizado, pois está em jogo o que somos, o que cada um é, a identidade poética de cada um, pois não temos uma “essência” prévia já dada e realizada. Nossa essêncica nos advém da póiesis de todo agir. Então a essência é o apropriar-se do que nos é próprio enquanto acontecer. Só agindo no horizonte da póiesis é que chegamos a ser o que somos. Só somos acontecendo. acontecendo como apropriação realizamos nossa identidade e diferença.

À pro-cura da Cura, do penhor podemos denominar aprendizagem. Mas para esta não pode haver procedimentos que nos tracem a caminhada. É a própria caminhada-leitura como apropriação do que nos é próprio. É a eclosão do que somos como, na e pela póiesis. Ao exercício concreto desta póiesis se chama artes. Cada obra de arte é alimento e energia que, ou seja, póiesis que opera a realização da essência de cada um, de um grupo sócio-histórico e até da Terra e a aventura humana.

É necessário compreender que não pode haver dicotomia entre aprendizado e aprendizagem. Ambos são facetas e margens da caminhada. Elas se realimentam continuamente. Mas ocorre algo muito simples. O aprendizado não pode se constituir em algo em si. Ele deve funcionar como os degraus da escada: possibilitar ascender e ampliar e aprofundar o horizonte da aprendizagem. Mas isto só ocorre se os conceitos em que se estrutura o aprendizado forem como os degraus de uma escada que fazem descortinar as questões. Nelas e por elas a aprendizagem se torna o horizonte que descortina a amplitude e densidade do que cada um é, e doa, ao mesmo tempo, o próprio aprendizado. Pois o que cada um é nos vem do horizonte onde já desde sempre estamos mergulhados e nos movemos pro-curando o sentido do que somos pelo agir em seu sentido. Mas aqui não há mais necessidade de procedimentos porque eles são fundados pela Cura de toda procura e pela pré-compreensão de toda compreensão. Na nossa condição de seres-do-entre, ou seja, porque nos experienciamos como liminaridade, no horizonte sempre partimos da Cura, da pré-compreensão como ato concreto de compreensão e pro-cura. É o ato concreto da pergunta, da questão. Quando nos abrimos para a pré-compreensão e para a Cura, então os degraus são desnecessários e até podem atrapalhar se insistirmos em ficarmos presos a eles, pois não deixarão adentrar o único penhor de todos os nossos empenhos: sermos o que somos, isto é, nos apropriarmos do que nos é próprio, nossa finalidade maior, o penhor de todos os penhores.

Ao aperfeiçoamento do aprendizado corresponde ou pode ou deve corresponder um se abrir para o sentido do agir, para a póiesis. Não que esta dependa dele. Pelo contrário só pode haver aprendizado porque já somos agidos pela póiesis em seu sentido, senão nenhum aprendizado seria possível, porque seria sem sentido. Mas nem sempre ocorre a acolhida da aprendizagem porque na caminhada podemos ficar presos demais aos procedimentos e seus frutos, os conhecimentos funcionais e utilitários e formais. Podemos nos perder e enredar no enleamento dos múltiplos conhecimentos classificatórios, formais, historiográficos, circunstanciais e perder a linha do horizonte sempre dinâmica e instável, pois pro-curamos sempre um lugar seguro que nos dê a tranqüilidade diante do fugidio e do instável. Pro-curamos a certeza e segurança dos conceitos. Porém, a nossa pro-cura mais profunda é sempre a da Cura. O aprendizado que se guia pela Cura tem sempre em vista uma aprendizagem que nos doe justamente a Cura. Pois de onde partimos é aonde queremos já desde a partida chegar: em toda compreensão buscamos a pré-compreensão, em toda pergunta o não-saber, em toda pro-cura pro-curamos a Cura: o sentido do que somos, da nossa existência.

Nossa existência se desenha literalmente num mundo, pois somos como ser-humanos algo que desde sempre já age no mundo. É a liminaridade, o entre. Mas o que é o mundo? Há dois mundos. 1º O que nos convém no aprendizado, já estabelecido e conhecido e que os procedimentos tentam facilitar para ser apropriado como acúmulo funcional e até técnico. É o mundo dos conceitos, dos saberes sabidos, da comunicação, das doutrinas, das ideologias, dos valores estabelecidos e dominantes; 2º. O que nos advém na aprendizagem, o não-delimitado e desconhecido que deve ser configurado pela procura do sentido de nossas ações e escolhas, absolutamente singular e irrepetível, tendo, portanto, a ultrapassagem dos procedimentos como exercício e experiência contínuos, uma vez que tem em vista uma manifestação do que ainda não-somos, mas tendemos sempre a ser. É o mundo aberto pela arte, pelo estranho e pelo extra-ordinário. É o mundo sempre em tensão de disputa com a terra-mãe-vida. Toda aprendizagem é aprendizagem de mundo: sempre inaugural e originário. Mundo diz aí, portanto, o âmbito de realização e acontecer de nossa essência identitária. Todas as obras de arte inauguram mundo. Nisso consiste o seu operar, porque é o operar da verdade. E a verdade é sempre verdade do real.

Nossa viagem-leitura diante a obra de arte se dá na articulação deste duplo mundo. Os procedimentos de aprendizado têm sempre em vista este duplo mundo. É que a obra de arte opera este duplo mundo, porquanto nela a verdade opera o real. Real passa então a ser este duplo mundo. Nele o real como verdade nos advém como póiesis e linguagem. Esse duplo mundo se constitui como memória da linguagem e como póiesis do tempo. Ligando-os a ambígua consciência, o véu diáfono e especular da memória e do tempo, da linguagem e da póiesis.

Este véu não é tão difícil de compreender. Sirvo-me das imagens-questões de Clarice Lispector, que sabe o sabor poético das coisas. “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entre-linha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorpora-a. O que salva então é escrever distraidamente”. (In: Água viva. Rio, Artenova, 1973, p. 25). O poder criativo da poetisa, ao deixar a póiesis e a linguagem agir e falar, jogando-se no entre da distração, nos sintetiza o que até agora quisemos dizer. E o diz com uma palavra inaugural: incorporar.

De um lado a incorporação diz a não dicotomia entre aprendizado e aprendizagem. De outro nos lança em algo que a compreensão e pré-compreensão, a pro-cura e a Cura, o aprendizado e a aprendizagem, a póiesis e a linguagem, o duplo mundo, tomadas todas estas palavras separadamente ainda não dizem. Tudo se torna con-creto na imagem-questão do corpo, do incorporar. Toda viagem/leitura é uma caminhada do corpo, com o corpo e para o corpo. Nele, tudo isso que constitui o ser-humano se incorpora. O corpo não é uma extensão, é o con-crescer poético do que é o ser-humano. Os limites do corpo são o duplo mundo. Toda viagem/leitura precisa ser, portanto, uma caminhada de incorporação. À incorporação preside como pré-compreensão e Cura, memória e tempo, póiesis e linguagem. O ser-humano se constitui na caminhada da incorporação, porque nós não sabemos ainda o que é corpo, porque não sabemos ainda o que é o ser-humano.

Ele nos advém em sua manifestação na medida em que esta é um acontecer poético, onde todas as artes são a melodia e harmonia enquanto dança do corpo, a “ciranda” que é o acontecer da coisa-mundo-corpo.

Esse acontecer da coisa-mundo-corpo está assinalado na reflexão da poetisa no agir misterioso da entrelinha. Esta é a não-palavra enquanto abertura constitutiva do ser-humano para a pré-compreensão, a Cura, o não-saber de toda a pergunta. É o não-saber de toda pergunta, como questão, que morde a palavra. Mas esta é a isca, como pergunta e busca de conceito, que quer iscar a não-palavra (o não-saber de toda pergunta, a questão). E é esta que vai iscar a palavra, ou seja, o agir é da não-palavra, ou seja, da póiesis e da linguagem. Mas não há aí uma dicotomia e, sim, uma entrelinha. Esta se manifesta no morder, no incorporar. Quando “isso” acontece então “alguma coisa se escreveu”. Não é o poeta que “escreve”, é sempre “alguma coisa”, isto é, a “coisa” se manifesta como póiesis-linguagem enquanto obra da verdade do real.

A leitura-viagem é sempre uma pescaria, onde as diferentes passagens e paragens não podem ser determinadas nem pelo aprendizado nem pela aprendizagem, pois o agir e seu sentido provêm da não-palavra. Na pescaria – a leitura-viagem - deve acontecer o que ela deve ser, uma salvação: “O que salva então é escrever distraidamente”. Todo escrever é um ler inaugural, ser-pescado pela não-palavra. E então o procedimento essencial soa estranho na palavra manifestativa da poetisa: a atitude fundamental é de dis-tração. Atenta à ação-verbal da palavra ela nos propõe o inaugural. O radical da palavra dis-tração provém do verbo latino trahere, que quer dizer: puxar, ser atraído, arrastado. Que atração vigora na distração é o que nos diz o seu prefixo latino “dis”: através de, entre. Nesse sentido, a distração não diz a desatenção, mas o se dispor para o advento da entre-linha, a não-palavra. É nesse e só nesse sentido que toda arte é distração e jamais um mero e descartável prazer estético. Ler é sempre uma caminhada-viagem de espera da não-palavra que nos advém de uma distração como uma “inocente” e salvadora pescaria.

Método e ação: passagens e paragens quer dizer aqui o processo poético-artístico de incorporação do que cada ser-humano já desde sempre é no que lhe é próprio, em sua identidade de diferenças. Por isso a incorporação pressupõe passagens e paragens. Estas indicam um movimento poético de ascensão e descensão que configuram o que somos. O que entendemos por ascensão e descensão indicamos numa imagem-questão: a árvore tanto mais ascende ao livre aberto do céu quanto mais desce com suas raízes às misteriosas entranhas da mãe-terra. Só assim ela cresce e chega a ser o que é, só assim ela se configura. Nosso corpo é feito de paragens (limites) e de passagens (não-limites). O corpo-acontecimento é o entre-ter de paragens e passagens.

É delas que tratamos a seguir. Todas elas devem se mover no duplo mundo do aprendizado e da aprendizagem. Cabe ao leitor ficar atento e aberto ao apelo de póiesis que as percorre. Mas é necessário ter a disposição da distração, da pescaria que salva na sempre perigosa leitura-caminhada. Feliz viagem.

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