10 agosto 2006

Corpo





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O corpo é um enigma. O Corpo é questão.
A matéria, a mente e o espírito são questões do corpo. Porém, o corpo não é a soma nem a justaposição dessas questões. O corpo não se confunde com a questão do sujeito, porque este é apenas uma dimensão do que o ser humano como corpo é. O corpo é. O ser humano como corpo se move já desde sempre no horizonte da Cura. O corpo é uma figuração da Cura. Nós não sabemos o que é a Cura, porque somos uma doação sua. A Cura é sempre Cura do que sentimos e não sentimos, do que sabemos e não sabemos, queremos e não queremos, somos e não somos.
A Cura é o enigma de todo corpo. O corpo só é corpo como questão da Cura. O ser humano é um fingir da Cura.
Cura é um mito, a imagem-questão do corpo que todo ser humano é.
O mito de Cura
Muitas vezes ficamos perplexos diante do que nos acontece na vida. Estamos sempre à pro-cura disto e daquilo e até, essencialmente, de nós mesmos. O que nos move na pro-cura é a Cura. Cura, do latim, assinala o Cuidado.
A Cura impulsiona todo nosso agir, que se diz em grego poiein, de onde nos vem poiesis, a essência do agir, a poesia. Esta só é linguagem quando se torna verbo-ação-poiesis. Toda poesia nos advém a partir de Cura. É essa a fala do mito “Cura”.
A fala do mito é a linguagem do sagrado, por isso nele agem e falam deuses: imagens-questões. O ser-humano (Entre-ser / Da-sein) é doação da Cura enquanto poesia e linguagem. É o que nos narra o mito Cura. Ele nos foi assinalado por Higino, escravo egípcio de César Augusto, que morreu no ano 10 da nossa era. Eis a sua saga:
Cura cum fluvium transiret, videt cretosum lutum sustulitque cogitabunda atque coepit fingere.
Dum deliberat quid iam fecessit, Jovis intervenit. Rogat eum Cura ut det illi spiritum, et facile impetrat.
Cui cum vellet Cura nomen ex sese ipsa imponere, Jovis prohibuit suumque nomen ei dandum esse dictitat.
Dum Cura et Jovis disceptant, Tellus surrexit simul suumque nomen esse volt cui corpus praebuerit suum.
Sumpserunt Saturnum iudicem, is sic aecus iudicat: ‘Tu Jovis quia spiritum dedisti, in morte spiritum, tuque Tellus, quia dedisti corpus, corpus recipito, Cura enim quia prima finxit, teneat quamdiu vixerit.
Sed quae nunc de nomine eius vobis controversia est, homo vocetur, quia videtur esse factus ex humo’.
C U R A
"Certa vez, atravessando um rio, Cuidado (Cura) viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a fingir/ficcionar (fingere).
Enquanto deliberava sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]. Cuidado (Cura) pediu que lhe desse espírito, o que ele fez de bom grado.
Quando, porém, Cuidado (Cura) quis dar-lhe nome a partir de si mesmo, Júpiter proibiu e dita que lhe deve ser dado o seu nome.
Enquanto Cuidado (Cura) e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus), querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo.
Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão aparentemente eqüitativa:
"Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi Cuidado (Cura) quem primeiro o fingiu/ficcionou (finxit), deverá pertencer-lhe enquanto ele viver.
Como, no entanto, sobre o nome há controvérsia, chame-se Homem, pois foi feito de "humus" (Terra)".
Pelo mito enquanto imagem-questão, fica bem patente que o ser humano é um fingir/ficcionar da Cura. Embora no mito pareça que há uma separação entre o corpo e o espírito, tal não acontece. Tal separação é algo posterior ao ser fingido pela Cura. É já o ser humano dimensionado pelo TEMPO/CRONOS e pela Morte. Estas advêm já no e pelo percurso do próprio ser humano como poiesis, no sentido de que há desejos, procuras. O sujeito não é a essência do ser humano, mas este precede aquele na medida em que ele já se move no horizonte das próprias possibilidades que lhe foram doadas por Cura ao fingi-lo.
Cura e fingir constituem o fundo em que se move o ser humano no realizar-se como sujeito, mas sempre na medida do que é como Cura e fingir. Porém, estas duas questões ainda não me dão toda medida do ser humano como corpo. Nele aparecem e comparecem também: Céu e Terra. Ou seja, nosso corpo é uma configuração de diferentes dimensões resultantes da sua figuração por Cura: criação, espírito, corpo, Céu, Terra, Tempo, Morte, Linguagem, Nome. Estas são as questões do ser humano como Entre-ser da Cura.
O CORPO VERBO E AS TRÊS LEITURAS
A dança, a música e o verbo manifestam nosso corpo que é um sendoser poético.
Somos sempre um sendoser ambíguo. Esta ambigüidade radical constitui nosso corpo. Este implica três dimensões:
1º. Sendoser físico-sensitivo; 2º. Sendoser-mental-cognitivo; 3º. Sendoser emotivo-erótico. Eles se implicam. A sua distinção é meramente processual, pois a sua reunião e distinção é permitida porque somos linguagem. Porém, o seu sentido e integridade nos é dado pela essência da ação, enquanto o corpo é o sentido do ser. O corpo-sentido do que é nos advém como poiesis/artes. Os múltiplos sentidos do sendoser são os múltiplos sentidos do corpo/sendoser: homem como obra de arte.
Além disso, nosso corpo em seu gestual de vida é o tempo se manifestando como linguagem. O corpo-tempo-linguagem vigora nas três dimensões do tempo: o tempo presente é a própria ambigüidade de sentido dos gestos enquanto entre-ser, enquanto ser-do-entre. Se por um lado nosso corpo traz em si, em seu “genos” (de onde provém o código genético e o código lingüístico) todo o presentificado como memória, por outro lado, projeta-se, como expiração, num presentificável que, em si mesmo, já é memória como presentificado, porque o presente só é sendo e não sendo. Como em si, como sentido, é sempre sentido de ser. Daí vem a arte da dança: o gesto corporal que se faz sentido do ser enquanto arranca da memória do que já é o que será. Daí a aparente evanescêncica e movimento da arte da dança. Pelo contrário, ela é o modo mais concentrado de ser no sendo a presentificação do presentificável no presentificado. A dança não é qualquer movimento: é a ação poética grávida do sentido da vida. O seu ritmo e rito é a narração (epos) da alma (inspiração/expiração) como experienciação, aprendizagem e libertação para o que já desde sempre somos.
Verbo é ação. Dança é ação. Poesia (poiesis) é ação. A dança é uma leitura
poético-verbal que configura o nome do que somos.
Há uma tendência ocidental, por influência dos conceitos, em detrimento das questões, pela qual julgamos que ler é sempre um exercício racional. Mas não.
O sendoser-corpo se condensa em três energias: 1ª. física; 2ª. mental; 3ª. erótica, gerando uma tripla escuta e experienciação: 1ª. palavra lida em silêncio ou falada; 2ª. dança; 3ª. música. Nesse processo rico de leituras se dá e densifica o Logos grego, pois ele diz fundamentalmente reunir como linguagem. Esta parte do órgão fonador (língua) que denomina a reunião de sintaxe de sentido do ser como verbo, poiesis e nome só acentua o nosso lado corporal. Corpo aqui nada tem a ver com matéria ou carne. Corpo somos o que somos como realização do ser como poiesis, daí a sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura e das questões.
Descartes, que inaugura a Modernidade, separa o ser humano-corpo em duas realidades: 1ª. Res cogitans (coisa pensante, racional); 2ª. Res extensa (material, carnal). Esta divisão é a base da Modernidade, daí a dificuldade em conhecer o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo, o todo que cada um é. A argumentação da consciência determinando não só o ser, mas também o próprio real/corpo só seria aceitável se admitíssemos a dicotomia cartesiana. Mas pode-se ela sustentar? O que ficou esquecido? O corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente. Sem esta ação nada pode acontecer, nem mesmo a consciência. A dicotomia levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-introspectivo ou mesmo em voz alta (rara), mas da qual se afastou fundamentalmente o corpo. A tripla leitura de voz, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Porém, estas três leituras só são possíveis a partir das oito passagens pelas quais se manifesta o que cada um é. Neste ser nunca há dicotomias.
A compreensão do corpo como matéria ou carne é por demais enganadora e insuficiente. Até porque não sabemos o que é matéria o carne. Real não é o que se vê, mas o que age. Por isso o corpo é uma sintaxe poética. Nele e com ele atuam as três forças: 1ª. a física, cuja metáfora é o braço; 2ª. a mental e psíquica, desdobrada misteriosamente no pensamento; 3ª. a erótica, cuja metáfora é o coração e sua experienciação como amor. A essas três forças perpassa a compreensão, daí apreensão e aprendizagem. Quando isto ocorre se manifesta o espírito, um fogo secreto e misterioso que é o próprio vigor do corpo como corpo, como ser humano em sua energização plena. Essas três forças vivem de uma tensão permanente, que os gregos chamaram de polemós (luta, combate). Dele surge, como poiesis, a sintaxe e narrativa poética. Um corpo tem em si a narrativa primordial.
O ser que o corpo é abrange o uno (o nada excessivo) e a multiplicidade (a excessividade poética). O uno se dá como compreensão e linguagem. Por isso é necessário mergulhar no ENTRE , que o próprio polemós, em seu vigor máximo, realiza como repouso ou não-ação. O irromper em sentido (sentimentos) e caminho é Hermes se fazendo presente na tripla força, daí ser ele verbo. O máximo da sintaxe poética mergulha e se manifesta no ENTRE como repouso, ou seja, a sintaxe poética se dá na tensão e tende sempre à não-ação, como máximo de ação e silêncio. O corpo abrange as três forças e se torna o lugar/mundo como tal do nada excessivo enquanto excessividade poética.
As oito passagens são a eclosão do corpo no que cada um é, em sua inteireza, a partir de e no ENTRE.
Por isso, o poema de Fernando Pessoa nos convida:
Para ser grande
sê inteiro.
Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Nada teu exagera
ou exclui.
Assim em cada lago
A lua toda brilha
Porque alta vive.
Dança e movimento
Prof. Manuel Antônio de Castro
O movimento é a grande questão para os pensadores originários e filósofos gregos. A solução de Galileu para o movimento foi achada na redução do movimento à equação matemática. Matematizar o movimento é a solução moderna e científica. A metafísica já o fizera através da substituição da QUESTÃO pelo CONCEITO. Por isso há uma profunda simbiose entre técnica e matemática. Daí o movimento preciso (esta precisão é conceitual). Nessa precisão técnica muitas vezes se resolve e conceitua o GESTO e a DANÇA como GESTOS. Contudo, essencialmente o movimento só é dança quando ele se manifesta como o sentido do agir, da ação, como a essência do agir. O real é essencialmente AÇÃO (e não e jamais os fatos, não há fato sem ação. Se não pensamos o agir não pensamos o real). É que na e pela ação poética o ser humano chega a ser o que é. Em todos os seres o chegar a ser o que é procede de uma ação interna que entra em simbiose com o que “aparentemente” é externo. Não há esta divisão, só conceitual. Contudo, cada coisa, cada ente não tem uma substância em si, estática e já dada. Cada coisa é coisa na medida em que surge na confluência com as outras coisas numa grande teia da vida. Não é que a teia lhe dê o que é, mas manifesta o seu sentido. Nisto consiste a essência do agir. À essência do agir os gregos chamaram poiesis. Esta poiesis é sempre essencialmente um agir da physis. Physis é o que surgindo e se desvelando se vela. Esta ambigüidade constitutiva e essencial da Physis é que é propriamente o real (real vem da palavra latina res=coisa).
Por isso Heidegger diz a propósito da Physis como surgir: “Podemos ainda pensar o surgir como quando o ser humano, concentrando o olhar surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o homem e com ele se reúne a fim de que o próprio ser humano se revele, como o ÂNIMO se desdobra NOS GESTOS, como sua essência persegue o desvelamento num jogo, como sua essência se manifesta na simples existência”. Heidegger, 1998. Heráclito. Rio, Relume Dumará, p. 101.
O ÂNIMO se desdobrando nos gestos é a essência da DANÇA. Fique, porém, claro que a palavra ânimo de anima, alma, traduz o termo grego physché, que quer dizer o movimento vital de inspirar e expirar: o livre viver. Dança são os gestos do movimento que nos libertam para o livre viver pela manifestação do que essencialmente somos. O gesto da dança é a procura da densidade do sentido do agir em sua manifestação. Dança é a sintaxe da physis se manifestando no ser humano em seu sentido poético. O gesto, na figuração do movimento, é uma doação do vazio e do silêncio que colhe o seu sentido na busca da plenitude do agir: o repouso. O gesto é o sentido do corpo na tensão harmônica de limite e não limite, de atração para a Terra e experienciação da liberdade no aberto da vida. A dança não é o corpo em movimento. Pelo contrário, é o corpo eclodindo na densidade do que é enquanto busca de realização plena no não-movimento do repouso. Repouso diz aí sentido pleno e não falta de ação.
POEMAS SOBRE O CORPO
1
As contradições do corpo
Meu corpo não é meu corpo, Meu corpo ordena que eu saia
É ilusão de outro ser. Em busca do que não quero,
Sabe a arte de esconder-me e me nega, ao se afirmar
E é de tal modo sagaz como senhor do meu Eu
Que a mim de mim ele oculta. Convertido em cão servil.
Meu corpo, não meu agente, Meu prazer mais refinado,
Meu envelope selado, não sou eu quem vai senti-lo.
Meu revólver de assustar, É ele, por mim, rapace,
Tornou-se meu carcereiro, e dá mastigados restos
Me sabe mais que me sei. à minha fome absoluta.
Meu corpo apaga a lembrança Se tento dele afastar-me,
Que eu tinha da minha mente. por abstração ignorá-lo,
Inocula-me seu patos, volta a mim, com todo o peso
Me ataca, fere e condena de sua carne poluída,
Por crimes não cometidos. seu tédio, seu desconforto.
O seu ardil mais diabólico Quero romper com meu corpo,
Está em fazer-se doente. Quero enfrentá-lo, acusá-lo,
Joga-me o peso dos males por abolir minha essência,
Que ele tece a cada instante mas ele sequer me escuta
E me passa em revulsão. e vai pelo rumo oposto.
Meu corpo inventou a dor Já premido por seu pulso
A fim de torná-la interna, de inquebrantável rigor,
Integrante do meu Id, não sou mais quem antes era:
Ofuscadora da luz com volúpia dirigida,
Que aí tentava espalhar-se. saio a bailar com meu corpo.
Outra vez se diverte
Sem que eu saiba ou que deseje,
E nesse prazer maligno,
Que suas células impregna,
Do meu mutismo escarnece.
2
Amor corporal
Te amo, meu corpo,
Pela presença que me fazes,
Pelas alegrias e tristezas,
Pela ansiedade em que me
Mostras meu inacabado,
Pelos detalhes em que
Constróis o tecido e contorno
Do que sempre se ausenta.
Te amo, meu corpo,
Porque não és meu,
Figura projetada no
Espelho de meus atos.
Procuro-te e não te acho
Mas encontro o que me
Doas e isso é que amo,
Pensando ser eu, sendo tu,
Que me amas, posse tua:
Somos posse do que somos
Doação do que não somos:
Amor uno, doação corporal.
3
A metafísica do corpo
A metafísica do corpo se entremostra De êxtase e tremor banha-se a vista
nas imagens. A alma do corpo ante a luminosa nádega opalescente,
modula em cada fragmento sua música a coxa, o sacro ventre, prometido
de esferas e de essências ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo
além da simples carne e simples unhas. resume de outra vida, mais florente,
em que todos fomos terra, seiva e amor.
Em cada silêncio do corpo identifica-se
a linha do sentido universal Eis que se revela o ser, na transparência
que à forma breve e transitiva imprime do invólucro perfeito.
a solene marca dos deuses
e do sonho.
Entre folhas, surpreende-se
na última ninfa
o que na mulher ainda é ramo e orvalho
e, mais que natureza, pensamento
da unidade inicial do mundo:
mulher planta brisa mar,
o ser telúrico, espontâneo,
como se um galho fosse da infinita
árvore que condensa
o mel, o sol, o sal, o sopro acre da vida.
4
Ser corpo
Corpo, abismo e habitação do mistério
Caluniado, desprezado e silenciado
Renegado e aniquilado nos ideais fáceis
Das oposições excludentes de errantes mortais
Esquecidos de nossa origem – a Gaiavida,
Corpo-mãe-mulher, excessividade imortal.
Corpo, até quando serás a vítima ofertada
Pelos sem memória do sagrado?
Corpo, faz ressoar em mim a visão
E a manifestação da ausculta
Do mistério que sou na tua
Harmonia permanente, con-crescendo
Em mim dá-me sentido: linguagem,
Corpo-ser.
5
Pintor de mulher
Este pintor
Sabe o corpo feminino e seus possíveis
De linha e de volume reinventados.
Sabe a melodia do corpo em variações entrecruzadas.
Lê o código do corpo, de A ao infinito
Dos signos e das curvas que dão vontade de morrer
De santo orgasmo e de beleza.
6
Corpo mortal
Um corpo morto não-é
Falso ou verdadeiro
Feio ou formoso
Um corpo morto não-é
Um corpo morto retoma
O Corpo-Terra, mãe
Do meu corpo mortal,
E corpo-vivo imortal
Terra vida do meu corpo
Reencontro-te na morte
Porque corpo mortal
Do teu corpo Terra-vida
Corpo mortal: sou e não-sou
7
Ante um nu de Bianco
Quanto mais vejo o corpo, mais o sinto
Existente em si mesmo, proprietário
De um segredo, um sentido – labirinto
Particular, alheio ao ser precário.
Cada corpo é uma escrita diferente
E tão selada em seu contorno estrito
Que a devassá-la em vão se aflige a mente:
Não lhe penetra, na textura, o mito.
Trabalho eterno: a mão, o olhar absorto
No gesto fulvo e nu da moça andando
Como flor a mover-se fora do horto.
Só o pintor conhece como e quando
O corpo se demonstra na pureza
Que é negação de tempo e de tristeza.
8
Teu Corpo
Formosura rara
Aceno luminoso
Teu corpo.
Fala envolvente
Música fugidia
Teu corpo
Gestos contidos
Veludo amoroso
Teu corpo
Promessa de vias
Enigma de acessos
Teu corpo
Olhos nos olhos
Entre laço
Teu corpo
Rosa ofertada
Posse plena
Teu corpo
Gozoso silêncio
Noite de luz
Teu corpo
Meu corpo
dissolvido
Teu corpo
Proximidade,
Sou não sou
Teu corpo
Somos, amor,
Sendoser
Nosso corpo.
9
Velho estilo
Corpo mártir, conheço o teu mérito obscuro:
tu soubeste ficar imóvel como o firmamento,
para deixar passar as estrelas do espírito,
ardendo no seu fogo e voando no seu vento ...
Corpo mártir que és dor, que és transe, que és silêncio,
e onde, obediente, vai batendo o coração,
sei que foste esquecido e, quando um dia te acabares,
não é por ti que os olhos chorarão.
Ninguém viu que tu foste o solo e o oceano dócil
que sustentou jardins e embalou tanta viagem,
que distribuiu o amor, e mostrou a beleza,
dando e buscando sempre a sua própria imagem.
Um dia tu serás símbolo, idéia, sonho,
tudo o que agora apenas eu compreendo que és:
porque um dia virá que, nesta marcha do infinito,
alguém se lembrará que o mais alto dos cânticos
pousou, na terra, sobre uns pobres pés.
10
A curva do dedo
Complexa movimento azul
E
Triste
Tecendo gestos conta-luz
A dançarina
Transpassa tempo
Membrana d’água a
Contra gotas
Falar da dança é esquecê-la
[a dança não tem intermédios]
O corpo significa os deuses
E se perde no ritmo do indizível
CRÉDITOS
8 - CASTRO, Manuel Antônio de. www.travessiapoetica.com
7 – ANDRADE,, Carlos Drummond de. A paixão medida. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980, p.21
6 – CASTRO, Manuel Antônio de. www.travessiapoetica.com
5 – ANDRADE, Carlos Drummond, de. Corpo. 2.e. Rio de Janeiro, Record, 1984, p.19
4 – CASTRO, Manuel Antônio de. www.travessiapoetica.com
3 - ANDRADE, Carlos Drummond, de. Corpo. 2.e. Rio de Janeiro, Record, 1984, p.11
2 – CASTRO, Manuel Antônio de. www.travessiapoetica.com
1 - ANDRADE, Carlos Drummond, de. Corpo. 2.e. Rio de Janeiro, Record, 1984, p.7
9 – MEIRELES, Cecília. Obra completa. Rio, Aguilar, 1987, p. 161
10 – Márcio-André

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