10 agosto 2006

As questões e os conceitos

A questão e os conceitos – 16-12-05/20-12-05

Prof. Manuel Antônio de Castro

A resposta à pergunta é, como cada autêntica resposta, a saída derradeira do último passo de uma longa seqüência de passos questionantes. Cada resposta somente conserva sua força como resposta enquanto ela permanecer enraizada no questionar. Heidegger, in: O originário da obra de arte, § 158.

A questão

Na medida em que a arte é um enigma, ela se constitui fundamentalmente de questões e jamais pode ser abordada por meio de conceitos.

A emergência do homem e o âmbito de sua atuação e de seu lugar dentro do real – e o enigma do seu destino – são as questões que perpassam todas as culturas em todos os tempos e suas obras de arte. Note-se que a arte, na maioria das culturas, sempre esteve ligada ao sagrado e que seria, por isso mesmo, estranha aos respectivos contextos qualquer ligação com processos econômico-comerciais. E do enigma que é o sagrado lhe advêm todas as grandes questões.

Seja como mito, seja como pensamento, o ser humano sempre se questiona sobre tudo isso. Questão vem do verbo latino quaerere, através do particípio: quaestum. Significa fundamentalmente: procurar; desejar; indagar, pensar, examinar; perguntar. O verbo como tal traz em si o aspecto desiderativo, logo ligado ao cuidado, à “Cura”, como se faz presente no mito de Cura. E aqui já uma indicação fundamental. Esse mito é interpretado por Heidegger em Ser e tempo. E o incorpora numa interpretação inovadora à compreensão do Dasein/Entre-ser (Cf. Ser e tempo, v. I, Vozes, p. 263).

A questão como tal se desdobra em duas dimensões, tomando o ser humano como Da-sein , ou seja, Entre-ser, e este ligado ontopoeticamente ao mito de “Cura”:

1ª. A ação que se dá no Dasein pelo vigor da Cura, pois é ela que constitui o ser humano em sua essência.

2ª. A ação do Dasein em seu agir concreto, impulsionado pelas questões, para o seu desdobramento na vontade de querer saber e não saber. Isso se concretiza na pergunta.

As questões não dependem do pensador. Não é ele que tem ou não tem as questões. As questões é que nos têm. Nós, cada um de nós é uma doação das questões. Elas constituem o que nos é próprio, porém, para serem apropriadas exigem uma dura e assídua experienciação. A sua frequentação cotidiana se torna uma verdadeira ascese de renúncia, onde a renúncia não tira, dá. Dá o quê? O que nos é próprio, o que somos. A doação da renúncia surge como um anunciar novamente (re-núncia) de modo originário, ou seja, nos envia ao destino, ao que nos é próprio.

Que é isso o que somos? Aqui podemos nos mover numa dupla articulação. (1) No plano do ente: O que é? Pois tudo que é é ente. (2) Ou, o que é necessário, movermo-nos no plano do ser do ente. Neste caso, o alcance da resposta será medido não pelo ente, mas pelo ser do ente. Isso significa que a resposta não se dá nunca no âmbito do ser, mas apenas e tão-somente no plano do ente. Significa isto que a resposta só em parte é resposta, porque ela nunca se dá no plano do ser, mas somente no plano do ente enquanto ente do ser. Ou seja, a resposta vai sempre ser paradoxal, pois responde no plano do ente, embora se mova, e só pode se mover, no plano do ser. Porém, não está aqui sendo criada uma dicotomia entre ser e ente? Não. Estão sendo mostradas duas coisas: a) que por ser entitativa, a resposta ainda não alcança todo âmbito da questão; b) mas como o ente é ente e, portanto, só pode viger no âmbito do ser, o que nela se diz é altamente positivo, porque o ente só vige a partir do ser e essa é a dádiva de toda resposta que nos cabe e alcançamos. Contudo, isso de maneira alguma nos deve fazer esquecer que o ente não é o ser e que, portanto, a resposta não dá conta da questão, não dá conta do ser. Não há, pois, aí uma dicotomia, mas uma tensão dinâmica pela qual qualquer resposta já solicita e convoca e recoloca a questão.

Os conceitos

Os conceitos vão surgir quando a resposta se torna mais importante que a questão, na medida em que a resposta “acha” que dá conta da questão, pois estabelece um conhecimento definido, preciso e exato. Os conceitos tiveram um duplo encaminhamento. Primeiro, eles se tornaram a definição de verdades por oposição ao erro. O seu fundamento foi a verdade lógica. Nasce a filosofia em termos metodológicos de espécies e gêneros, definindo (conceituando) o ser e os entes, as verdades e os erros. E então os conceitos se tornaram a espinha dorsal dos sistemas filosóficos, na media em que estes se sobrepuseram ao próprio real como teorias e abortaram as questões. Com o surgimento da ciência, a partir dos conceitos filosóficos, estes sofrem uma transformação: além dos limites definidos, passa a ser exigidos deles exatidão. E então, além da lógica, introduz-se a linguagem matemática, a linguagem da exatidão e da precisão. A maioria dos conceitos com que se analisam as obras de arte surgiram a partir do paradigma científico. E acabaram por ocultar as questões em que sempre a arte se move. O conceito traz a idéia de objetividade. Esta, fundada na exatidão da matemática, traz a certeza. Porém, hoje, tudo isso está, de novo, em questão. E o físico Ilya Prigogine defende o fim da certeza (“O fim da certeza”, in: Representação e complexidade. Rio de Janeiro, Garamond, 2003, p. 49-67). No entanto, ele é paradoxal, pois o fim da certeza da ciência apenas se dá em virtude, não das questões, mas de uma nova matemática da complexidade, por isso afirma: “O que quero dizer é que a humanidade está em transição, não há dúvida, e também não há dúvida de que a ciência está em transição” p.49. Essa transição não significa o fim da certeza matemática, daí o paradoxo no título do seu ensaio.

É importante que fiquem claras e duas coisas: A arte vive das questões. A ciência vive dos conceitos (mesmo que incertos na sua certeza matemática). Tanto as questões como os conceitos são importantes para o ser humano, como são importantes o cientista e o poeta. O indesejável é a tentativa insistente em querer reduzir as questões da arte a conceitos (mesmo que incertos, porém matematicamente precisos). Mais indesejável ainda é que alguns críticos queiram reduzir a arte a conceitos, fazendo o papel de falsos cientistas. Pois nada produzem de científico e reduzem a arte a conceitos abstratos inúteis, que a silenciam.

Os conceitos são determinados pela verdade lógica e matemática. Eles se servem de uma metodologia presa a teorias, determinadas pelas metodologias em que predominam a indução, a dedução e o experimental. São objetivos na medida em que adequam o real às teorias e suas metodologias. Elas originam as análises descritivas e explicativas.

Os conceitos geram um conhecer passível de aprendizado. As questões, quando experienciadas por cada um, produzem um saber como aprendizagem (o que não pode ser ensinado)

A arte

A arte é um mistério e muitos são os caminhos e as experienciações que conduzem até ela, embora ela mesma se retraia sempre. Ela, como mistério, se inscreve no próprio fundamento de todo ser humano. A arte não é algo que possa acontecer ou não ao ser humano. Este só é ser humano quando se dimensionar pelo fundamento da arte. O que se interpõe a este horizonte de realização arte/ser humano são os múltiplos conceitos que foram sendo elaborados na tentativa de definir o que é a arte. Inutilmente.

Quando se trata de pensar a arte é que a tensão entre questão e conceito pode-se tornar rica de perspectivas. A poética filosófica e metafísica sempre tratou da arte através dos conceitos. Podemos tratar da arte com conceitos? É muito difícil. Qualquer conceito de arte só diz o que o conceito como conceito alcança e delimita, não o que a arte é. Quando perguntaram a santo Agostinho o que era o tempo, respondeu: Se não me perguntarem sei, mas se quiser conceituá-lo, não sei.

O tempo é uma questão.

Se não me perguntarem o que é a arte, eu sei. Se quiser conceituá-la, não sei.

A arte é uma questão.

Questão e arte

Ao pensar as questões da arte, temos, antes de tentar qualquer encaminhamento (e nisso já está uma das questões fundamentais, o en-caminhamento), de pensar a própria arte como questão, e com isto, ainda mais anteriormente, pensar a questão como questão.

Quando pensamos a questão como questão, já estamos nos abrindo onto-poeticamente para a referência pensar/questionar. Como se vê, a primeira de todas as questões é o próprio questionar enquanto dado no pensar e no próprio questionar. E aí não podemos ir mais longe, isto é, a pergunta que pergunta pelo questionar não pode fundar o questionar, mas este enquanto ato que se dá ao e no ser humano dá-se primordial e originariamente como agir do questionar. E estes é que, ao se darem naquele que pergunta e questiona, já fundam o agir e o pensar de quem questiona no perguntar. Ou seja, simplesmente o agir e questionar precedem e fundam o próprio ente que age e questiona.

Quando pensamos o questionar, o agir e o nomear, nos aparece o ente-do-ser-homem que não apenas age, questiona e nomeia, mas que também pensa. Ao pensar, os gregos deram o nome: noein (pensar/perceber). Mas, de novo, não é o noein que possibilita e funda o agir, questionar e nomear. Estes se dão como noein no Da-sein. Na pergunta concreta de cada questão do questionar já se fazem co-presentes o agir e o nomear. O agir e o nomear, como possibilidade e exercício con-creto de cada pergunta, implica que eles, na sucessão de perguntas e respostas, se constituem como caminho, como per-curso e sentido do agir e nomear, no questionar. Por outro lado, o sentido do questionar, como exercício concreto do perguntar nas dimensões de agir e nomear, funda o caminho (sentido) enquanto noein. Então este não é nem pode ser algo que é acrescentado, agregado como suplementação ou de qualquer outro modo ao questionar, enquanto agir e nomear. O questionar no exercício concreto da pergunta enquanto agir, nomear e noein já pressupõe o caminho (sentido) enquanto noein. Porém, assim como o caminho só se dá no entre-caminhar ambíguo (metá-hodos), o próprio noein só se dá como diá-noia (a ambígua entre-percepção).

O caminho/sentido se constitui, portanto, já originariamente e desde sempre como: palavra, ação, percepção/pensamento e questão. É o que já nos assinala a palavra questão (querer/vontade/sujeito como exercício do verbo/ação da physis/ser enquanto sentido/percepção). Mas na medida em que o questionar implica isso tudo, ou seja: ente/real, caminho (hodós), a manifestação do ser-do-ente, há aí uma aletheia, ou desvelamento, isto é, verdade. Disto resulta visualmente uma figura com as dimenões fundamentais da questão:

Real/ser

!

Método ------------------- Verdade

(metá-hodos) ! (aletheia)

Poiesis

(ação)

O que reúne estas quatro dimensões é a linguagem (logos), constituindo assim uma sintaxe poética. São estas as cinco dimensões que constituem a questão como tal.

Numa primeira visão, constatamos que, ao pensar as questões da arte como o que a questão como questão implica, o horizonte em que a arte se move é o da própria questão. Disso resulta que não é a arte que circunscreve as questões. Nelas e por elas a arte se constitui como arte. Ou seja, as questões da arte, numa primeira instância, são as questões do questionar. E então já podemos assinalar que a arte, para ser arte, deve necessariamente se mover no horizonte das questões do questionar, ou seja: o real, o método, a verdade, a ação, a linguagem. Isso numa primeira instância.

A arte e a imagem-questão

Os grandes poetas só trabalham com questões, com as grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis. Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a Palavra, como Imagem poética. Cada Palavra-imagem traz em si o sentido e a verdade manifestativa. Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, por ser poética, é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das imagens-poéticas. Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. É a imagem-poética.

Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão, como a linguagem, não é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem, não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poetando, e isso é o ser se doando como desvelamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou aquele ente. Capitu, como imagem, não é, porque Capitu é imagem-poético-manifestativa de questões, é imagem-questão. Como imagem e verbo toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra, Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.

“Tipo” é uma imagem-clichê. Como clichê, pode ser uma imagem com dupla força de presença: mostrar o clichê e desfazer o clichê como idéia. Nesse sentido, operará ao nível da poiesis na medida em que como linguagem poética, desfaz a linguagem como clichê, ou seja, língua retórico-instrumental e argumentativa, e a institui como poética.

A imagem-questão é a imagem-poética nos con-vocando para a escuta das grandes questões, onde essa escuta é a condição fundamental de todo diá-logo e de todas as interpretações. Na imagem-poética comparece sempre a poiesis como vigor de todo agir essencial e, ao mesmo tempo, o ethos, como linguagem e sentido do ser. Na medida em que é ethos e sentido, a interpretação se torna o horizonte onde se decide o que somos enquanto valor e sentido. Por isso, de ethos se originou a ética. O mito, origem da poiesis, só trabalha com imagens, não retóricas, porém, questões: são as imagens-questões. Mnemósine é a memória, a mãe de todas as Musas. Verdade é a deusa Aletheia. Sabedoria é Métis. E assim por diante. São imagens-questões. Quando entendermos a linguagem poética dos mitos como imagens-questões, deixaremos que eles voltem a ter o seu vigor originário. As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em realizações incessantes. Nas imagens-questões há uma tensão permanente entre o dito da língua e a ausculta da linguagem. No trânsito desse transe transam o saber e sabor de toda sabedoria da poiesis como imagens sonoro-visuais, que manifestam o real em caminhos que não conduzem a lugar nenhum, porque o caminho é o próprio real se dando em desvelo velado de realizações. Nesta escuta erótico-amorosa, a linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.

Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos, melhor, as obras, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo, “Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. Que questões essa imagem nos coloca? Aí é só começar a pensar. E então podemos ligar "campo" a lugar, a mundo, a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica criei a denominação: Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Capitu, Mme. Bovary, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. As imagens-questões se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas. Quando tal ocorre dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da "Cura" como fonte de todas as questões que essencialmente fundam o ser humano como Da-sein, ou seja, o Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagem-questão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar (Caminho do campo). O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela enquanto mundo e linguagem. Por isso, o caminhar é a travessia "entre" o velado/silêncio/vazio E o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.

A obra de arte e as questões

As questões se fazem presentes nos mitos e nas obras de arte como imagens-questões. Ler e interpretar os mitos e as obras de arte consiste, numa dimensão de aprendizado, apreender as questões que eles manifestam. O itinerário do pensamento de Heidegger, por influência de Hölderlin, levou-o ao vigor do pensamento mítico-poético. Porém, a questão inaugural em Heidegger é sempre a mesma: o Dasein e o sentido do Ser enquanto caminho de pré-compreensão, entre-compreensão e compreensão. A questão fundamental do itinerário ocidental: o mito do homem e seu destino. Examinemos aquele mito-poético grego onde o mito do homem encontra a sua mais rica formulação: Édipo. Pleno de imagens-questões, a obra de Sófocles e o mito com que a tece, narrativamente entre-tece em suas entre-linhas narrativo-poéticas as questões que desde sempre angustiam e desafiam todo ser humano.

A tensão entre questão e conceito ultrapassa e muito o complexo âmbito do saber epistemológico e suas representações. É, certamente, a questão das questões, pois se abre para o lugar do ser humano como e no âmbito do real.

É a questão de poesia E pensamento, a questão da poesia e do pensamento. E como e na poesia e como e no pensamento nos provoca à reflexão, à abertura, à escuta? Mais importante do que tudo o que se diz é o caminho que questão e conceito nos provocam a encaminhar ao nos encaminharmos nos descaminhos de todo questionar e conceituar.

Os caminhos e descaminhos de questão e conceito são os caminhos e descaminhos do “entre”. Qualquer arrogância de questionamento ou de conceituação já se torna uma desobediência, um distanciamento e uma inacessibilidade aos acenos sempre presentes em todo agir em que o ser humano agindo já é agido no e pelo do questionar e do conceituar.

A tensão implícita a todo questionar e conceituar é anular a proximidade e distância de toda “coisa”, por um lado, e, por outro, manifestá-las. É a tensão “entre” pergunta e resposta. A obediência à “coisa” não se pode tornar a desobediência da fala. Deve-se abrir para a simplicidade ambígua da palavra. Um “deve-se” que não depende da decisão da arrogância, mas da própria “coisa” em seu desvelar velante.

Todo querer do questionar já traz inscrita a errância do conceituar na resposta. Atraídos e arrastados pelo questionar que toda pergunta demanda como conceito, erranciamos a partir da “medida” que se retrai no questionar e conceituar, que todo dizer propõe.

Constituídos e atraídos pela cura de ser sendo o que somos e não-somos só nos resta o caminho das procuras de perguntar e responder, de questionar e conceituar.

Obedientes à cura procuramos o que questionar e conceituar manifestam e ocultam, desvelam e velam. Projetados no “entre” do questionar e do conceituar, colhemos a delimitação conceitual do que como questão não é: o ser do não-ser que nunca seremos. Impulsionados pela cura do questionar conceituamos: conceituar é preciso. Questionar não é preciso.

Arrojados na finitude dos conceitos procuramos a não-finitude que move e promove todo questionar.

Experienciando cotidianamente a insuficiência de nossos passos conceituais, fazemos e refazemos o caminho do começo da vida vivida como vida experienciada no horizonte do questionar.

Aconchegados ao burburinho dos conceitos sofremos a paixão da não-ação do silêncio, presença do Nada que nenhuma questão questiona nem conceitua, porque sem fala de proximidade ou distância. Só o diálogo do silêncio no e como silêncio, sem o ruído da fala que questiona ou conceitua. Mas a inevitável procura: o questionar que não quer questionar, sabendo de antemão o contorno de todo conceituar e o fracasso de todo questionar.

Sem questionar nem conceituar, sem proximidade nem distância, sem vivência nem experienciação, sem finitude nem não-finitude, originariamente lançados no limiar de todo “ente-entre”, caminhamos o caminho do como para manifestarmos no questionar e conceituar o que já desde sempre somos: a questão do Nada.

O questionar é a identidade da diferença que é o conceituar. O libertar não é um conceito, é uma questão. Vida, Morte e Linguagem não são conceitos, são questões. Entre o questionar e o conceituar existe a medida do questionar e do conceituar enquanto desmedida (hybris) e medida (peras). Nesse “entre” consiste o ser-humano-corpo enquanto liminaridade, daí ser o ser-do-entre, o entre-ser. Nesse sentido ressurge a Linguagem enquanto sentido da poiesis na arte. Daí a ambigüidade do “ananké” . Por que o “viver não é preciso”? Porque o viver é morrer e o morrer é e não-é preciso. Por que o navegar é preciso? Como imagem-questão do experienciar ele articula o questionar e o conceituar de todo caminhar: viver E morrer.

Questionar é preciso

Experienciar é preciso

Conceituar não é preciso

Delimitar não é preciso

No-nada, linguagem

No-tudo, sentido

No-entre, poiesis

Fala do silêncio

Nada excessivo

Tudo sempre um

A questão e a essência

A questão do conceito está ligada à questão da essência. Note-se que o próprio conceito só pode ser conceituado, dada a sua variação, no horizonte da questão. O conceito como conceito é uma questão. A essência pode ser considerada do ponto de vista concreto – e então está profundamente ligada à questão da essência como questão – e do ponto de vista abstrato, e então será uma essência enquanto conceito lógico-racional, ou seja, estará dependente de um apodigma lógica, isto é, do enunciado demonstrativo de uma enunciação lógica. O conceito é, então, o composto lógico de enunciado e enunciação. Heidegger diz: “O que pensamos quando dizemos essência? Como essência vale habitualmente aquela opinião comum em que todo verdadeiro coincide. A essência se dá no conceito de gênero e no conceito geral, que representa a idéia única que ao mesmo tempo bale para muitos. Esta essência indiferenciada (a essencialidade no sentido de essentia) é, contudo, apenas a essência não essencial” (O originário da obra de arte, § 96). Heidegger retoma esta questão em “Hölderlin e a essência da poesia”. A anulação da questão está na adoção do conceito como uma idéia que vale para muitos. Nisso consiste o conceito abstrato, diferente do concreto, onde o universal e o singular concrescem, não havendo separação lógica nem formal, porque então a linguagem não é meio, mas faz parte constitutiva do que se manifesta e do como se manifesta. O que é, por ser, nunca pode ser tomado e reduzido apenas a algo abstrato. O que é é em virtude do ser. É dessa “virtus”, desse vigor que se gera todo processar e acontecer e, portanto, tem de ser sempre com-creto e constituir sentido. Nisso consiste a linguagem. Ela é o acontecer com sentido. O que acontece e dá sentido é e só pode ser o ser. A essência é o que é sendo. O conceito é o cum-capere do que é enquanto linguagem – o acontecer com sentido. Só porque o “é” acontece pode ser compreendido e apreendido no cum-capere – cum-ceptum. O cum-ceptum é o âmbito do compreendido e do apreendido, do que acontece e se doa enquanto se retrai no que é e no como é. O doado como compreendido e apreendido é o com-ceito do que se retrai e se constitui, portanto, como questão. O que se retrai, o que se vela não é, porém, uma falta de ser que precisaria de uma complementação ou suplmentação. Não é falta nem negatividade nem mal nem violência. Pelo contrário, é de uma riqueza tão grande e impensável e incompreendida e inapreendida que consiste precisamente no nada excessivo. Este é sempre o limite E o não limite do limite. Esse E que é um “entre” possibilita a doação e a apreensão e compreensão do que se doa tanto no doado como no retraído. Isto tem duas conseqüências:

1º. Por ser o que se doa é doado como verdade e como o que se retrai é não-verdade. O “entre” é a liminaridade de verdade e não-verdade. O horizonte da verdade é smpre também o horizonte da não-verdade. Mas a verdade e seu sentido provêm da não-verdade e seu sentido. E nisso consiste a cisão e decisão tenisonal do “entre” linguagem e fala, do “entre” silêncio e música, do “entre” repouso e gesto corporal, isto é, da dança. É a verdade ética da não-verdade ética.

2º. Por ser o que se doa é figurado como o que é isto e aquilo e/entre como o que se retrai é o não-figurado, o vazio, o silêncio. Esta tensão do entre precede o par tradicional “matéria e forma”, porque o figurado é figurado do que acontecendo se retrai, é doação do vazio, do silêncio. E como matéria só é matéria deste e daquele figurado na medida em que pela compreensão e apreensão do entre-compreendido é já originariamente doação do que se retrai, do vazio, do silêncio. Essa “matéria” só é matéria enquanto ela só chega a ser esta e aquela matéria porque é uma doação manifestativa do que se retrai, do vazio, do silêncio. No vazio e no silêncio, pelo vazio e pelo silêncio a “matéria” chega a ser “esta” e “aquela” matéria, porque para ser “esta” e “aquela” matéria é necessário que elas sejam compreendidas e apreendidas na abertura da entre-compreensão.

As considerações sobre questão e conceito e essência abstrata e essência concreta remetem para um nó em que se debatem todas as teorias estéticas e todas as posições críticas que se limitam a basear-se no conceito, na essência abstrata, no par matéria-forma (concebidas como conceitos abstratos).

A questão da entre-compreensão para não se tornar algo também abstrato deve ser concreta e ela se dá no concreto exercício do perguntar, do questionar. Ver para isso meu ensaio em Tempos de metamorfose: “A questão hermenêutica”.

Ver o ensaio: A coisa e o método: o como

Ver o ensaio: O gênero e o conceito

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto belíssimo professor!