23 agosto 2006

A leitura e o uso de dicionários

A interpretação de textos e o uso de dicionários - 13-03-06

Prof. Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

. A leitura de um texto, poema, conto, romance nos lança num mundo poético através do entre-tecer das palavras e verbos numa sintaxe poética. Na tessitura do discurso se dão inter-stícios muitas vezes só acessíveis pela reflexão em torno de algumas palavras fundamentais, verdadeiramente poéticas, isto é, que se tornam núcleos de sentidos múltiplos, verdadeiras imagens-questões. No todo, a obra como tal reúne todos esses sentidos múltiplos e ainda produz novos, numa interação poética do todo e das partes. Essas possíveis interações são semelhantes às existentes num percorrer uma rede, ou melhor, enquanto obra viva, o viver a teia artística da vida.

Para mover-se aí enquanto ato de leitura tudo isso é muito complexo, mas podemos apontar dois caminhos de reflexão mais imediatos:

a - Quando procuramos saber como se originou a denominação de “palavra”, nada nos pode indicar a sua “estranha” formação, pois a sua visibilidade por causa da escrita ou a percepção através dos sons da fala acabam por nos lançar numa apreensão somente sensível e imediata. É então que a “etimologia” (o que é verdadeiro) nos conduz pelos caminhos e veredas tortas da “linguagem”, para além e aquém do simples e imediatamente sensível. Não há sensível sem o sentido dos sentidos.

Palavra vem do grego e se formou através do prefixo pará: junto a, cerca de, entre. E seu radical é formado do verbo ballein: lançar, pôr. Disto decorre que a palavra não é algo substancial, mas a força e ação de lançar, pôr junto a, cerca de, entre. Este “entre” indica a liminaridade, o limite instável entre fala E escuta, escrita E sentido, língua E linguagem, ser E não ser, em que todo ser humano como ser-do-entre já desde sempre está lançado e existe. A palavra assinala sempre uma mobilidade instável do real como linguagem, na medida em que o ser humano, como doação da linguagem, é essencialmente um ser liminar, ou seja, um ser-do-entre;

b – Fazemos parte de uma grande rede, a teia da vida. O ser humano, nesta teia, é o real, a “natureza” se doando como linguagem enquanto palavra, na medida em que o doar é o próprio ato criador, a que se denomina poiesis. O sentido do ser que doa o ser-humano e seu sentido é a palavra nomeadora enquanto linguagem da poiesis. A linguagem é dizendo o sentido do ser do ser-humano, ou seja, é palavra. Esta nos lança, põe na dinâmica da memória e do tempo. Como tecido verbal a palavra tece e entre-tece a vida da memória em três instâncias: hypo-texto, hiper-texto e inter-texto (inter=entre). Disso decorre que toda leitura se alimenta dessa complexa teia de sentidos e caminhos verticais e horizontais uma vez que a vida é a poiesis ou ação em seu sentido manifesto nas palavras da linguagem.

Enquanto memória e tempo os significados e os sentidos das palavras, cotidianos e restritos ao código, não nos permitem apreender toda a sintaxe poética em que o real se configura no texto. Fazem-se, pois, necessários os dicionários.

2º. Há seis tipos de dicionário que podem, e muitas vezes devem, ser consultados se se quer um diálogo mais profundo com as possibilidades poéticas. Isso não quer dizer que podemos esgotar os sentidos poéticos do texto. Não. É o que nos diz o poeta Drummond, contemplando a poesia das palavras:

Lutar com palavras

É a luta mais vã.

Entanto lutamos

Mal começa a manhã.

São muitas, eu pouco ... “O lutador”

E numa outra dimensão o reafirma no poema “Procura da poesia”:

........................................................................................

Penetra surdamente no reino das palavras

........................................................................................

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces sob a face neutra ...

Para seguir o conselho poético é que é necessário consultar os dicionários, mas não como receita e, sim, como possíveis caminhos indicativos. Às vezes as palavras se apresentam em diferentes significados semânticos, outras, tornam-se metá-foras. A relação entre as metáforas e as palavras pode-se dar em dois níveis complementares: a- a formação da palavra metáfora me mostra que ela, como a própria palavra, se move numa força de ação fundamental, pois metá, prefixo grego, diz o entre, o através de. E o radical -fora vem do verbo fero, que diz: levar, conduzir. Ou seja, toda metáfora é um conduzir pelo vigor e ambigüidade do entre, na medida em que é lançado e posto e levado pelo entre da palavra; b – a presença do entre (ambíguo) na palavra e na metáfora faz desta uma imagem poética, como se diz normalmente. Para expressar a presença e força da imagem poética diz-se que as obras de arte são simbólicas. Esta palavra também se forma do grego, em que o sim tem sua origem no prefixo grego: syn, que reúne, junto e em companhia de. Já o radical –bólicas vem do mesmo verbo ballein (pôr e jogar), presente no radical de palavra. Ou seja, em todo símbolo um jogar, um pôr que reúne. Reúne o quê? O que as palavras e as metáforas manifestam do real em sua ambigüidade (na medida em que o ser humano se move, vive na liminaridade e é um ser-do-entre). Então a imagem poética mostra a sua ambigüidade na medida em que ela é imagem-questão. A palavra e imagem poética manifestam o real como questões. Essas questões do real e do ser humano nos advêm como e na linguagem poética como palavras e metáforas. Linaguagem, em seu sentido grego, isto é, derivado do verbo legein (de onde se formou o substantivo logos) significa reunir e só porque reúne é que pode dizer. A tal reunião enquanto linguagem da poiesis é que se dá o nome de sintaxe poética. Para melhor apreender as questões da imagens-questões foi criado uma dicionário especial: o simbólico. Mas os mitos também são essencialmente imagens-questões. Então a consulta de um dicionário de mitos é fundamental. Além disso, na medida em que cada imagem ou figura configura questões é necessário consultar um dicionário de poesia e pensamento.

Mas fique claro que nem todos os significados estão dicionarizados. Os poetas e pensadores criadores desentranham novos sentidos, que o uso dos dicionários não trarão. O que fazer então? Simples. Ler como escuta essas palavras e apreender os seus sentidos a partir do todo da obra ou ensaio, porque todo criar é um auscultar da poiesis da linguagem enquanto sentido do ser e é nesta essência do agir que a obra se denomina obra, ou seja, a que opera. Por que opera? Porque desvela o sentido do ser, ou seja, sua verdade. A um tal operar da verdade se denomina: real.

Os dicionários

A - Há o dicionário normal de significados das palavras. Ele trata dos diferentes empregos semânticos das palavras. Dependendo da sintaxe poética, um ou mais significados podem elucidar os sentidos do texto. É importante ter presente que a sintaxe diz respeito à interconexão das palavras pelas quais o real se nos faz presente, mas sempre numa dinâmica múltipla, como se o real nos aparecesse como uma rede, um tecido. Os diferentes significados semânticos servem para ligar entre si os diversos nós e linhas de conexão e passagens, mas também os enigmáticos buracos vazios do discurso/texto enquanto rede. Não há rede sem os vazios. Como chegar ao vazio da rede? Faz-se necessário apelar para outro tipo de dicionário;

B - Para além dos significados semânticos, as palavras também recebem novos significados dentro das diferentes teorias filosóficas e até das ciências. Não se trata mais de significados semânticos, mas de conceitos filosóficos ou científicos. Para ter acesso a esses conceitos faz-se necessário a consulta a um bom dicionário de filosofia, onde haja uma bibliografia e a referência às obras dos grandes pensadores que deram origem aos conceitos. Mas fique bem claro que uma mesma palavra pode ter diferentes conceitos. Às vezes, um conceito filosófico se torna a chave pela qual se abrem as portas das múltiplas faces das palavras nos textos. Como hoje a ciência está mudando muito é essencial que os conceitos científicos também sejam consultados. A título de exemplo. Os biólogos Varela e Maturana criaram o conceito novo em biologia: autopoiese. No caso do conceito de representação, tão divulgado em teoria literária e correntes críticas, esse novo conceito de biologia vem destruir qualquer pretensão da representação.

C - Nem sempre temos todo acesso às palavras consultando esses dois tipos de dicionários. É que para além da semântica, dos conceitos, há também as questões e as imagens-questões. Uma questão é algo em que estamos lançados e que não podemos nunca resolver, só conviver alegre ou dolorosamente com ela. É o caso, por exemplo, da necessidade, da morte, do amor, do tempo, da alegria, da dor etc. etc. Quando se trata de um questão, então, é necessária outro dicionário. Guimarães Rosa, esse mágico das palavras, em entrevista a um crítico alemão disse o seguinte:

[Nós sertanejos] Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco os meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias ... Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras.

Estas afirmações de Rosa mostram-nos que as palavras podem e devem ser chocadas. Para chegar a esse núcleo vital do qual nascem as palavras e obras é que é necessário muitas vezes consultar um Dicionário etimológico (mas não só, faz-se necessário abrir-se para a escuta da criação que irrompe como linguagem e poiesis). A palavra grega etymon diz o que é verdadeiro. A palavra poética manifesta o real como verdade. Então muitas vezes para chegar a esse núcleo verdadeiro é que o precisamos consultar a etimologia. Mas o que procurar e como aproveitar o essencial, para que não se torne mera ginástica filológica? Quando consultamos uma palavra em sua etimologia, buscamos um ou mais sentidos que ficaram submersos, mas vigoram ainda em seu frescor inaugural, em sua força poética originária, como tempo originário. A interpretação de um texto em seus sentidos profundos depende muitas vezes dessa densidade da palavra em seu sentido etimológico. Citaria um exemplo importante para o estudante de literatura. É a palavra ficção. Vem do verbo latino: fingere. Consultando o dicionário latino, encontramos quatro significados principais: fingir, formar, imaginar, educar. Eles têm uma origem comum, que podemos encontrar na sua etimologia. Propriamente, fingere significa modelar na argila. Figulus é o oleiro. Fictor é o escultor. Daí se generalizou para qualquer ato de manipular, por ex., uma figura, ou modelar, seja externa ou internamente. Passou então a significar imaginar, apresentar, o talhar, o modelar a terra e o ser humano ou real.. Como tal, é criar a partir do nada, do vazio, do que ainda não há. Toda ficção é, pois, uma construção do real a partir do vazio, da Terra. A ficção se torna, verificando a densidade dessa palavra na etimologia, algo real e verdadeiro. Não podemos esquecer aqui que “Deus” fingiu, ficcionou (criou do nada) o ser humano a partir da argila (Terra). No mito de Cura, é a própria Cura que também ficciona, figura o ser humano a partir da argila da Terra. Por isso diz Rosa: Primeiro há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original (isto só é possível pela reinvenção etimológica, ou seja, a partir de seu etymon ou núcleo poético.

A densidade etimológica de cada palavra levou nosso grande Rosa a acrescentar:

Hoje, um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Uma palavra densa é uma palavra grávida de sentidos.

D - Como as palavras criam nova densidade em seu vigor metafórico, tornando-se imagens-questões, é muito importante, dependendo do caso, consultar um dicionário de símbolos. Mas os símbolos ou alegorias só se tornam poeticamente fecundas se as apreendermos como imagens-questões.

E - Além disso os próprios mitos são essencialmente imagens-questões, por isso é também importante consultar diferentes dicionários de mitos ou, ainda melhor, os próprios mitos. Porém, é importante acentuar que as imagens-questões não são nem do poeta nem das obras objetivamente tomadas. Obra diz o que opera. Para a obra operar é necessário que as suas imagens-questões nos atraiam e nos lancem no vigor das questões que nos propõem, para que elas se tornem nossas, isto é, experienciando-as nos apropriemos do que nos é próprio, o ser que nos foi dado. Desse diálogo de leitura é que nascem as interpretações como leituras criativas.

F - Se o leitor bem notou, o convite à reflexão para enriquecimento interpretativo das leituras exige de cada um a união e reunião de poesia e pensamento, onde o pensar poético se faça poesia pensante. Se bem prestou atenção às citações acima de Rosa, poesia e pensamento fazem uma perfeita simbiose. O mesmo foi afirmado por Fernando Pessoa: “Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase súbdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve” (Poesia de Álvaro de Campos. Nota Preliminar, p. 297, in: Fernando Pessoa, obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965). E também o que nos afirma Martin Heidegger: Por isso diz Heidegger: “Os dicionários não dizem nada do que dizem as palavras na experiência originária de pensamento. Por isso, neste caso, como nos demais, não é verdade que o nosso pensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitude vigorosa daquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de forma concentrada. A etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais” (A coisa. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 152).

Procurando essa união de poesia e pensamento estou elaborando um dicionário com esse título, para ser consultado na internet. Em breve estará no ar. Mande um email para profmanuel@gmail.com e mandarei, quando estiver no ar, o endereço.

Dicionários – Indicações

1º. Aurélio ou Houaiss (Em português).

2º. FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofia. Madrid, Alianza Editorial, 1981.

3º. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Ministério de Educação e Cultura.

4º. KÖHLER, Pe. H. Dicionário escolar latino-português. Porto Alegre, Globo.

5º. PEREIRA, Isidro S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto, Apostolado da Imprensa.

6º. BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris, Hachette.

7o. ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictinonnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck.

8º. CHANTRAINE. P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck.

9º. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis, Vozes.

10º. KLUGE – etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. 24.e. Berlin, Walter de Gruyter, 2002.

11º. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles – mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris, Seghers e Jupiter, 1973, 4 volumes.

A leitura e os diferentes textos

A leitura e os diferentes textos – atualizada em 13-09-05

Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

Na perspectiva da língua, todo pensamento é um texto. Um texto é um

sistema de signos em que alguns sempre de novo recorrem numa

cadência regular.

De texto de um língua, o pensamento se faz viagem da Linguagem de

ser e não ser no tempo.

Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a pensar II.

A leitura e as leituras

O jornal O Globo, no dia 9 de setembro de 2005, publicou à página 11 do primeiro caderno uma pequena reportagem, cujo título era: “De 15 a 64 anos, 75% dos brasileiros lêem mal – nessa faixa, apenas cerca de 26% da população dominam plenamente a leitura; 68% são analfabetos funcionais”. Depois a reportagem dá outras percentagens e a sua distribuição por classes. Até a percentagem de desempregados segundo a capacidade de leitura.

O que pensar disso? Como interpretar esses dados? O que essa pesquisa prova e não prova? Para que ela serve? Para quem ela serve? Como reagir a essa situação calamitosa? O que de fato podemos fazer? O que se busca com o domínio da leitura?

Fique logo claro que o amplo domínio de leituras é o mais desejável e importante para cada ser humano. Porém, a reportagem sobre a pesquisa da leitura nada fala de que leitura se trata, isto é, que textos foram usados para fazer a pesquisa. Pois há diferentes leituras segundo os diferentes textos e discursos, assim como de um mesmo texto pode haver diferentes leituras, segundo também diferentes discursos e capacidade de interpretação.

Comecemos pelo começo: Há discursos orais e escritos. Por isso há leituras orais e escritas. Acontece que hoje as sociedades se estruturam em torno da escrita. Em vista disto, o mundo pós-moderno exige, para a pessoa ser funcinalmente incluído nele, um grande domínio não só da escrita, mas também dos diferentes discursos. E estes se tornam cada vez mais difíceis e especializados. O grande volume de pesquisas produz uma renovação do conhecimento rapidamente. Além disso a internet difunde esses conhecimentos instantaneamente para todos. E isso demanda mais estudo, tempo e dinheiro. O que a maioria dos brasileiros não tem. E aí se gera um círculo vicioso.

Antes de tratar de alguns desses discursos, cabe uma observação essencial. A preparação funcional para o domínio da leitura é feita tendo em vista uma sociedade dominada pela tecnologia, seus conhecimentos e produtos. Mas será que tudo na vida de cada pessoa tem de ser tecnológico e se resolve através da tecnologia? Esta produz hoje a sociedade do conhecimento. Mas será que o conhecimento tecnológico também produz sabedoria? E como alguém pode ser feliz sem ser sábio? E nesse sentido a arte não pode nem deve competir com o conhecimento globalizado.

Para além dos conhecimentos técnicos há também e em primeiro lugar o sentido da vida, a busca da realização do que cada um é. E aí ocorre um fato muito simples: a pessoa pode ignorar os discursos técnicos e saber ler, distinguir e entender o que é essencial para a busca e realização do sentido da vida. Para este não basta saber ler, é necessária muita reflexão e vida interior. Isso está ao alcance de cada um: é o famoso princípio de Sócrates: Conhece-te a ti mesmo. Este os discursos científicos e técnicos não ensinam. Onde aprender? Com os mitos, os textos religiosos e as obras de arte, desde que estas não sejam objetos das nomenclaturas críticas e científicas.

Nada disso é fácil. Simplesmente porque até o vocabulário oral, sem falar no escrito, pode-se tornar muito amplo, variado e difícil. Além disso, a circulação dos conhecimentos históricos e da vida cotidiana, por causa da escrita, cada vez mais dilui a presença e importância do que antigamente era transmitido pelas tradicões. As palavras estão sofrendo um profundo esvaziamento pelos meios de comunicação e pelo uso de novas palavras de origem científica e até estrangeira.

Hoje, todo esforço de aprendizado e de compreensão da leitura se centraliza em discursos técnico-científicos, sejam comunicativos, políticos, científicos, “artísticos” e religiosos. As especializações vocabulares tornam, por isso mesmo, a leitura muito difícil. Aliás, falar em leitura é algo irreal. Só se deveria falar em leituras.

O texto, a rede e o silêncio

Texto vem do verbo tecer. Uma boa imagem para texto é rede. Olhando uma rede, nota-se logo um conjunto de linhas que se entre-laçam através dos nós. O entre-laçamento de palavras e orações forma um discurso. Este transmite idéias e conhecimentos, porque as palavras reunidas em orações vão formando um sistema de conceitos. Os diferentes textos ou discursos se estruturam na medida em que formam diferentes sistemas de conceitos. A dificuldade em ler e compreender está no desconhecimento dos conceitos por parte do leitor.

Muitas vezes até a maioria das palavras são semelhantes e as mesmas. O que muda? Cada passo na rede é complexo, porque ele sempre se bifurca, daí surgem diferentes sintaxes e conceitos. As palavras passam a ser altamente ambíguas. Tudo isso dificulta a compreensão da leitura.

Além das linhas e nós, há também os buracos da rede. Eles indicam a fluidez e ambigüidade das palavras, pois elas se movem dentro de vazios e silêncios. Isso é o mais difícil de perceber por parte de um leitor não habituado à reflexão e a muita leitura. Dependendo do discurso conceitual há uma ambigüidade crescente. O comunicativo é o menos ambígüo e o mais é o poético. É que neste os conceitos são substituídos pelas questões. Estas oferecem múltiplas possibilidades de leitura, todas válidas e verdadeiras, se resultam de um diálogo com a obra.

Então, em relação aos diferentes textos, a palavra chave é discurso ou sistema discursivo. Também podemos notar que um sistema discursivo pode-se diferenciar de outros por um universo vocabular próprio.

Na rede não há apenas circulação comunicativa, de acordo com os diferentes discursos e universos vocabulares. A rede tem uma dimensão horizontal e outra vertical. As duas são sustentadas pela memória, a qual gera contínuos metabolismos auto-poéticos.

Há, por isso, uma variedade muito grande de textos. Daí surge a questão básica: Quando um texto, um discurso é artístico? Não há uma resposta pronta, definitiva, mas podemos estabelecer diferenças entre os textos e assim encaminhar uma compreensão mais adequada da ambigüidade em que toda obra de arte se dá.

A linguagem e o discurso instrumental

Os conhecimentos conceituais são transmitidos através da palavra escrita (também oral, mas cada vez mais rara). Se bem notarmos, esse processo apresenta duas facetas, duas dimensões: de um lado a palavra ou proposição, de outro o conhecimento que ela transmite. As palavras se transformam num discurso instrumental. Quanto mais precisa a palavra (isto é, menos ambígua) para expressar o conceito, melhor se apreende o conhecimento. A palavra na sua densidade e existência própria deve se anular, sumir, tornar-se mero instrumento, meio comunicativo e conceitual. Então toda a atenção se concentra no conceito e só prestamos atenção aos conhecimentos que eles transmitem. Mas a linguagem manifestada em palavras tem existência, sabedoria e verdade próprias. Nessa dimensão a linguagem é o real se manifestando, acontecendo. Ela não é meio de nada, ela simplesmente é. É esta linguagem que distingue todas as manifestações artísticas. Então não vamos mais ter conceitos, questões. É por isso que as questões nunca se podem tornar um discurso instrumental nem serem meio para nada, nem transmitirem nada, nem serem úteis ou inúteis. Elas precedem essas categorias conceituais.

A leitura das obras de arte se torna mais difícil por isso mesmo: as questões não podem ser reduzidas a conceitos. O interessante é que quanto mais o leitor exercita a leitura das questões maiores condições tem ele de captar os conceitos. Neste sentido, a arte não é útil, é utilíssima e imprescindível. Dela nos advém um profundo auto-conhecimento e a sabedoria em que se tece a busca do sentido da vida (ser feliz).

Será que nos testes da pesquisa foram avaliados os textos com linguagem instrumental e os textos de linguagem poética e manifestativa? Será que foram avaliados só os conhecimentos ou também a sabedoria?

Os diferentes textos

O texto informativo. Vivemos hoje numa sociedade onde predominam os meios de comunicação, as infovias. Nela, todo esforço consiste na conquista do leitor através de uma variação quase infindável de publicações e de assuntos, usando textos informativos, feitos num discurso objetivo, direto, claro, em geral pobre, que esteja de acordo com o universo vocabular médio dos consumidores aos quais se destina. A busca desenfreada de leitores ou espectadores tem um motivo claro e um preço: fazer dele um consumidor. Por sua vez, o leitor busca as informações que preencham o seu cotidiano e possibilitem acompanhar o mundo em que está inserido, seja local, seja internacional, e conhecimentos gerais sobre os mais diversos assuntos. A informação é uma mercadoria determinada pelo possível preço de venda. Em geral as publicações e seus textos são redigidos tendo já bem definidos os seus públicos alvos (os compradores e leitores potenciais). Os assuntos, o vocabulário, as ilustrações se dirigem a um público já socialmente determinado (nível econômico e cultural). A leitura deve ser fácil e a publicação deve dar a impressão de que passa informações (em geral, em nível superficial e generalizante) que elevam o nível cultural de seus leitores. Há uma enorme variedade de assuntos, que se fazem presentes nos jornais diários ou até em revistas especializadas, passando pela política, a moda, o esporte, a programação cultural etc. Enumerá-los todos é impossível e também desnecessário. Um bom modo de medir o valor e importância destas publicações e o saber que elas divulgam se consegue através da sua duração: todas elas depois de um certo tempo perdem a atualidade e só lhes resta o desinteresse e o abandono.

Mas essas publicações têm o seu atrativo, porque mantêm o público leitor em dia com o que está acontecendo, infelizmente um acontecer circunstancial e passageiro, impossibilitando, em geral, aos leitores estabelecerem uma visão mais crítica do que acontece e da realidade. É claro que algumas publicações têm os cadernos especiais. Até estes têm como parâmetro fundamental o serem acima de tudo comunicativos e informativos. Como a realidade é muito dinâmica perdem logo a atualidade. Nesta leitura predomina a informação digerível e não exige do leitor nenhum esforço significativo que o faça refletir, crescer. O leitor está sempre voltado para algo externo, para uma realidade que o atrai, que lhe é oferecida como um contínuo espetáculo, alegre ou triste, porém que não é a dele, mas que, no íntimo, gostaria (talvez) que fosse. Isto o leva, em geral, a querer viver uma outra realidade que não a dele, gerando diferentes formas de alienação (alienus, do latim, outro). Nestes textos procura-se eliminar o mais possível toda ambigüidade das palavras, não restando senão aquela inerente a toda e qualquer linguagem, pois, no fundo, em toda palavra sempre resta algum dado equívoco. As leituras tendem a serem uniformizadas, embora provoquem reações diferentes em cada pessoa, mas em geral sem maiores conseqüências.

Na comunicação a palavra se torna um instrumento como causa de um meio para um fim. O esvaziamento da palavra é necessário na comunicação para que se torne um instrumento funcional, isto é, tudo funcione de acordo com o processar-se daquilo que se quer comunicar. Este pressupõe um real dominado e predeterminado pelos fins, pelos meios e pela causalidade instrumental. Esses três níveis integrados é que compõem o real sistematizado. Até podem variar os discursos, nas mais diferentes disciplinas, mas eles sempre ocorrem e funcionam tendo como base e causa os três níveis. Mas isto, na realidade, é o simulacro (representação da representação) do real que acontece e somente manifestado na e como palavra poética.

No texto informativo predomina a comunicação. A imagem-questão rede mostra bem este aspecto. As linhas são meios de comunicação que geram diferentes percursos e conjugam diferentes idéias. Mas estas são limitadas pela própria necessidade de comunicação. Na medida em que as linhas da rede são meios, nela a linguagem é sempre instrumental.

O texto publicitário. Nessas publicações destaca-se um outro tipo de texto: o publicitário. Constituídos de textos e imagens (estas têm um impacto muito forte), estes são mais sutis e bem mais elaborados, embora não exijam do leitor um grande esforço de compreensão. Dirigem-se preferencialmente à parte emotiva e pessoal do leitor. De alguma maneira procuram sensibilizá-los e, em última instância, persuadi-los a se tornarem consumidores. Para poderem atingir melhor as emoções (paixões, auto-afirmação, ideais, sonhos, diferenciação), são textos em que de um modo ou deoutro se faz sempre presente uma ambigüidade (que a opção por um determinado produto desfaz). Por trabalharem diversos recursos retóricos, eles exigem dos leitores um maior esforço, mas que não visa ao seu crescimento, mas ao envolvimento para levá-lo, em última instância, ao consumo. Ressalte-se que estes textos também são informativos, mas suas informações se tornam um meio de convencimento e persuasão. Junto com a emoção, o leitor exerce uma certa reflexão, mas que está de antemão direcionada ao objeto de consumo e não contribui para a libertação e auto-afirmação do leitor. É, pois, uma leitura mais sutil e rica do que a anterior, mas que ainda faz do leitor predominantemente um objeto, um número na multidão de consumidores. Embora surjam diferentes leituras, na medida em que cada um interpreta o texto a partir de sua realidade, a persuasão que leva à aquisição do produto objeto da publicidade acaba por desfazer a ambigüidade.

Embora os publicitários-sofistas usem muitas imagens retóricas, neste texto predomina a linguagem instrumental.

O texto científico. Há um outro texto, bem mais complexo e importante. É aquele usado na instituição escolar. O leitor sai do seu universo aparentemente singular e independente e fica submetido a um sistema, onde a leitura pressupõe um diá-logo. Ele se dá na relação professor/aluno. No lugar da informação passa a predominar o conhecimento. O que o distingue da informação, em geral, é que este é portador de um valor que irá ter influência direta na vida do leitor. Neste caso, o ato de ler sai do âmbito do consumidor e se centraliza no próprio conteúdo da leitura, que irá determinar o modo de ser social e profissional do leitor. Este texto é portador de conhecimentos que independem tanto do professor (emissor) quanto do aluno (receptor).

De um lado têm um estatuto de verdade que lhe vem da ciência e, de outro, possibilitam àqueles que deles se apropriam o exercício de uma profissão, daí a leitura estar em função do conhecimento. Aqui, de novo, entra a duração, e o que agora vai acontecer é que estes conhecimentos resistem ao tempo (daí se dizerem científicos). O que caracteriza, pois, estes conhecimentos é uma “certa” permanência. Baseiam-se num estatuto de verdade que lhe advém dos métodos objetivos de sua produção, tendo como características uma certa permanência e universalidade, pois os conhecimentos pretendem ser fundados em princípios universais. Isto quer dizer que, aparentemente, independem de tempo e conjuntura. Hoje em dia sabe-se que estes conhecimentos também mudam e algumas vezes até com bastante rapidez, mas nem por isso ainda deixaram de serem considerados verdadeiros e científicos. O que no fundo caracteriza estes textos é que o centro não é nem o emissor nem o receptor, mas o próprio conhecimento. Isto faz da relação leitor/conhecimento uma relação impessoal, ou seja, uma tal leitura leva cada um à aquisição de conhecimentos ditos objetivos, que caracterizam uma profissão. Nesta, o mais importante é o profundo conhecimento do assunto e não o que cada um é. Se alguém está doente, não vai escolher o médico pela sua beleza, pela idade, pela cor, pelas convicções políticas ou coisa semelhante, mas pela confiança na sua capacidade e na solidez e amplitude de seus conhecimentos profissionais (embora de um bom profissional se exija mais do que conhecimentos objetivos). Neste tipo de texto, a linguagem discursiva está totalmente a serviço do conhecimento, procurando desfazer e evitar todo e qualquer tipo de ambigüidade ou equívoco através de definições prévias dos termos, num jogo conceitual o mais preciso possível. Daí a proximidade da linguagem científica com a matemática. O conceito surge desde o momento em que algo pode ser submetido a uma “medida” dentro de um padrão teórico. Como medir o “silêncio”? Mas pode-se medir o som e até lingüisticamente a fala. Porém toda “medida” depende de um limiar. Se este é medido no seu limite, surge o conceito. Se este é apreendido no seu não-limite, surge a questão. O conhecimento científico só trabalha com conceitos, nunca com questões. Com estas trabalha a arte e o mito.

No entanto, é impossível evitar a ambigüidade total, mesmo nos conceitos, em relação ao real, porque a realidade, toda realidade é sempre de alguma maneira ambígua. Por isso o conceito só nos mostra sempre uma realidade parcial. Isto fica cada vez mais comprovado pela física quântica, onde o conhecimento da natureza se baseia em probabilidades e na complementaridade dual de partículas e ondas. Hoje, a ciência já prefere falar de complexidade, frente ao real enigmático. O sonho de um conhecimento objetivo absoluto se desfez, ainda que expresso matematicamente. Hoje se sabe que somos todos espectadores e atores do grande drama da vida.

Contudo, o modelo de conhecimento e verdade inaugurados pela ciência no século XIX ainda continua vigente popularmente e se tornou o parâmetro predominante na determinação do que é real e verdadeiro. É um modelo tão forte historicamente que extrapolou as ciências naturais e passou a determinar os conhecimentos históricos, ou como se dizia então, as ciências do espírito. A antropologia, a etnografia, a arqueologia, a sociologia, a história, as diferentes histórias (da música, da literatura, da arte etc.), a teoria literária etc. foram sendo constituídas e realizadas tendo como modelo metodológico o conhecimento objetivo e universal das ciências da natureza. Não compreenderam que estes são fenômenos vivos que exigem uma outra postura mais aberta e dinâmica para darem conta das suas transformações no tempo. Em tais fenômenos não há apenas conhecimentos, mas também o sentido como verdade da realidade. Não basta ter conhecimentos racionais, é necessário partir da compreensão. Como o conhecimento científico trabalha com conceitos e estes se fazem a partir de “medidas”, o alcance de sua realidade e veracidade estará dependendo do modelo matemático que as origina. Mas o “real’ é mais do que qualquer modelo matemático, até porque não passa de modelo.

O sentido e a compreensão extrapolam o conhecimento objetivo analítico-matemático. Como dizem respeito a diferentes culturas no tempo e no espaço, acabaram por submeter todas as diferenças culturais ao modelo científico ocidental, oriundo da leitura metafísica da realidade. Hoje se tomou consciência de que um tal conhecimento e análise se baseiam numa identidade generalizante abstrata e ideológica, fundada tão somente na razão (consciência) sem a compreensão. O modelo ocidental se impõe em detrimento das diferenças culturais. Por isso o conhecimento analítico científico, ainda que persistente, tende a entrar em crise e a dar lugar e vez às diferenças e a uma metodologia que substitua a análise pela interpretação, pela hermenêutica no que diz respeito à vida em sua complexidade.

Pela absoluta necessidade de tudo transformar em conceitos, a ciência é a que mais torna a linguagem algo meramente instrumental. A expressão máxima desta insturmentalidade é a gramática e a matemática.

O texto mítico. Os mitos se perdem no fundo da memória e são inerentes a todos os povos. Por diversas circunstâncias histórias foram sendo relegados a um segundo plano, mas jamais deixaram e deixarão de existir. O processo de afirmação da Modernidade consistiu na negação e superação do pensamento e poesia míticos, tornando-se, contraditoriamente, a razão um novo mito. Há uma memória mítica que persiste em todas as culturas e em todo ser humano. Os mitos, hoje em dia, na sua maioria nos chegam através da escrita. Com isso algo da sua dinâmica constitutiva já se perde. É que os mitos tinham como contraface os ritos. Os ritos eram a concretização dos mitos enquanto manifestação e interpretação da realidade, na medida em que os ritos eram o real se manifestando como linguagem. Nesse sentido, o mito é a realidade se manifestando como linguagem na medida em que seus personagens ou assuntos e temas são essencialmente imagens-questões. Ler e interpretar uma mito consiste basicamente em perguntar pelas questões que tal narrativa, tal personagem, tal assunto ou tema nos propõe. Um exemplo simples: Édipo. Seria descabido querer saber onde e quando ele viveu etc. Tudo mudo se nos perguntamos: Quais as questões que o mito de Édipo nos propõe?

Nada mais estranho ao mito do que lhe atribuir uma explicação causal de fenômenos naturais ou psíquicos. Isso já é uma interpretação cientificista e metafísica do mito, pois constituem o conhecimento na medida em que estabelecem causas e conseqüências. O mito realiza um conhecimento manifestativo e não causal. O seu tempo é circular e dinâmico, e não linear como no conhecimento racional. A verdade do mito não pode, pois, ser avaliada a partir do modelo científico de verdade. O mito enquanto rito sempre expressou e manifestou as vicissitudes históricas de cada povo, de cada cultura, ou seja, é a força instaladora de uma ordem e suas questões. Isso provocava diferentes versões do mesmo mito, que nos chegaram muitas vezes através da escrita. Elas já são sinal da profunda riqueza e ambigüidade da realidade. Uma tal ambigüidade ocasionou sempre múltiplas interpretações. O texto mítico é um texto ambíguo, questionante. Em suas transformações históricas, os mitos dão origem às religiões e às artes. Por isso é que os objetos do culto e dos ritos se constituíram nas mais genuínas obras de arte, incluindo os textos discursivos orais ou escritos, as artes visuais e a arte musical. Toda verdadeira arte nunca perde as raízes míticas. O mito em sua essência se funda no sagrado e é este o que estabelece a relação profunda entre as religiões e as artes. O mito se presta a múltiplas leituras não só religiosas e artísticas mas também de diferentes disciplinas ditas científicas. Isto apenas assinala o vigor do mito como linguagem, verdade e saber, ou seja, como questão.

A linguagem mítica é profundamente poético-manifestativa e jamais instrumental.

O texto religioso. Hoje conhecemos diferentes religiões, sejam monoteístas, sejam ainda politeístas. Em geral as grandes religiões se fundam em torno de textos sagrados. São vários. Eles são frutos de revelações. Todas reivindicam uma epifania de Deus como palavra. Em geral, essa palavra é essencialmente ambígua e constituída de imagens-questões. Destas se originaram as parábolas. Ora, estas têm a mesma etimologia de palavra. Isto mostra apenas o sentido poético dos textos sagrados.

O que caracteriza as religiões é se constituírem em torno de um sistema de normas e princípios com forte propensão para a regulamentação da vida das pessoas através de princípios morais. As religiões apresentam sempre uma interpretação do que seja a realidade imanente em relação como uma outra realidade transcendente. Os textos sagrados, apesar de seu caráter de revelação divina, apresentam dados históricos bem nítidos, resultantes não só do uso da língua mas também das circunstâncias e do momento em que foram escritos. Isso levou à necessidade de se proceder a uma interpretação simbólica ou alegórica desses dados, posto que novas povos e novas realidades históricas e até lingüísticas tinham em tais textos as suas referências religiosas. Os textos religiosos são em si essencialmente ambíguos. Ocorre que tal ambigüidade tende a ser interpretada levando em conta a coerência do sistema que constitui a religião. Isso é compreensível, pois uma dispersão das interpretações tenderia a anular o sistema religioso ou a questioná-lo. Isso muitas vezes acontece. Outras se constituem em tendências dentro de um mesmo sistema religioso. O que podemos notar em todos esses multifacetados sistemas religiosos é que os textos religiosos radicam numa ampla ambigüidade. Isso apenas acentua a múltipla riqueza da realidade e do ser humano. O divino em última instância é uma manifestação da linguagem, não fosse a linguagem nessa perspectiva a própria divindade. A leitura, embora ambígua, tende a ser parametrada pelo sistema religioso. A hermenêutica religiosa é muito antiga e recebeu o nome de exegese.

Em si, os textos religiosos são linguagem poético-manifestativa e jamais se presta a qualquer uso instrumental. São portadoras de uma profunda sabedoria. Muitas vezes as interpretações e exegeses é que lhe dão um sentido moral-instrumental.

O texto jurídico. A idéia de justiça tem também um fundo mítico-religioso. A aplicação da justiça bem como o fundamento das próprias normas jurídicas tinham como origem os próprios deuses ou seus representantes divinos, os reis e/ou sacerdotes.

A norma jurídica tem um caráter geral e abstrato, mas a sua aplicação é singular e concreta. E esta realidade singular e concreta varia muito e apresenta aspectos muito diferentes de caso para caso. A passagem da norma para a aplicação concreta exige sempre uma interpretação conceitual. Além desta relação interpretativa há também o fato de que a formulação das leis se dá através de um discurso e este, como toda linguagem, é fonte de permanentes e diversificados equívocos e ambigüidades, embora haja um esforço muito grande de redução e estabelecimento de conceitos precisos.

A leitura e aplicação da lei dá, porém, origem a diferentes interpretações. A ambigüidade propriamente termina quando a lei é aplicada. Uma tal aplicação varia muito de acordo com o fundamento que se toma como parâmetro. Há casos famosos na história, mas o mais duradouro e pertinente nos vem da área artística através da famosa tragédia de Sófocles: Antígona. A aplicação por isso termina um determinado processo ou caso, mas não desfaz o horizonte da ambigüidade do texto jurídico.

A hermenêutica jurídica tem raízes muito antigas e é já muito tradicional. A passagem de um fundamento religioso para um fundamento secular racional lhe trouxe muitos desafios. Hoje se debate no redimensionamento de uma postura epistemológica para uma postura ontológica.

O texto jurídico tem como escopo maior a aplicação prática e cotidiana através das sentenças. Isto o reduz sempre a uma linguagem instrumental.

O texto filosófico. O texto filosófico tende, como o religioso, a dar origem a um sistema conceitual. E aí surge uma inversão: o texto que deu origem ao sistema conceitual passa a ser interpretado a partir das linhas gerais desse mesmo sistema e seus conceitos. É um círculo vicioso dentro do qual se anula todo o vigor de pensamento das obras dos grandes pensadores. Isso ocorre muito nas histórias da filosofia, que falam da obras em linhas gerais ou acentuam traços marcantes, onde as nuances e ambigüidades se perdem. No entanto, as grandes obras quando lidas por um outro grande pensador, motivado por um impulso criativo de pensamento e atendendo ao impulso histórico de novos desafios, dão origem a novas interpretações e novas formulações. Um exemplo famoso seria Aristóteles e S. Tomás de Aquino. Outro seria Heidegger e os Pensadores Originários Heráclito e Parmênides. O pensamento se move, portanto, numa ambigüidade que radica na própria ambigüidade do real. O texto filosófico, nesse sentido, é tanto mais filosófico quanto mais move os leitores a se empenharem na aventura do pensamento e a empreenderem uma caminhada de descoberta e invenção da realidade. A leitura dos textos filosóficos, quando não manietada pelas normas e conceitos dos sistemas e as suas verdades pré-fabricadas, se mostra rica de ambigüidade e fonte de uma experienciação muito radical da realidade.

Ao longo dos séculos se foi estabelecendo uma postura epistemológica que se formalizou em procedimentos científicos. E aí ocorreu algo totalmente hilário: a filosofia se tornou uma disciplina científica. Ocorre que o saber da ciência não se pode fundar a si mesmo nem estabelecer os seus fundamentos, pois senão deixa de ser ciência e passa a ser pensamento filosófico. Talvez a maior contradição esteja na sociologia do saber, onde ela não pode fundar o saber da sociologia. Por isso a verdade e a ética de um tal saber só o são na medida da sociologia do saber. Mas desde quando a ciência funda ética?

Uma outra tradição foi sendo desenvolvida que manteve acesa a chama da filosofia como aventura do pensamento, aproximando-se muito da poesia. É a famosa proximidade de pensamento e poesia. Unindo-os a ambigüidade da realidade, de ser e não ser.

A densidade do pensamento está na densidade da palavra e esta surge da linguagem como linguagem.

A conceituação filosófica se concentra nela mesma e procura abandonar toda e qualquer ambigüidade, fazendo da linguagem um instrumento.

O texto poético.

Cada palavra é, segundo sua essência, um poema.

Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).

A caracterização do texto poético é muito complexa. Já começa pelas diferentes denominações. Podemos falar em texto poético, artístico, literário, ficcional, sem nos referirmos à possibilidade de denominar como texto as diferentes manifestações artísticas. Por que não falar em texto musical, pictórico etc.? Outra distinção necessária e corrente seria entre texto e obra. Texto tem muitos conceitos e não pode simplesmente ser confundido com a escrita. Obra é certamente mais ampla que texto, pois uma obra pode ser constituída de diferentes textos. Obra além disso, tem um sentido específico, ou seja, uma determinada obra, ou genérico, o conjunto de obras de um autor. O problema aumenta em densidade se pensarmos tanto a etimologia de texto como de obra. A caracterização do texto poético, enquanto obra, pode abarcar as demais denominações, quando se compreendem a partir do que lhe é essencial.

Há, porém, uma denominação que precisa de uma distinção: texto ficcional. Esta denominação inclui obras artísticas e não artísticas. O termo ficção vem do particípio latino fictum, do verbo fingere, que tem quatro significados básicos: fingir, mentir; formar; educar; imaginar. Ficção traduz o termo grego mythos. Do ponto de vista teológico, o mito era algo não verdadeiro, produto da fantasia humana, daí a acepção predominante da ficção como algo fingido. Como se vê a verdade teológica não é necessariamente a verdade do mito, até porque esta não é nunca “lógica”: é manifestativa do real. Já do ponto de vista da ciência, a ficção corresponde a mundos possíveis mas não reais, ou seja, aparentes, ilusórios. O que é “real”? Por que o “real” da ciência é mais “real” do que o “real” da ficção (arte)? Evidente que o “real” varia de acordo com as teorias, as religiões, as filosofias etc. O “real” real é um enigma. E uma das experienciações mais radicais desse real é a ficção (arte).

O texto poético ou literário é ficcional, mas nem toda ficção é literária, isto é, poética (assim como nem todo verso é poesia). Poderíamos distinguir uma ficção-de-imagens-questões e uma ficção-ilusão. O imaginar é o contraponto do formar. O formar como formar, estabelecendo sempre limites, origina os conceitos. O contraponto indica a presença da tensão do limite e do ilimitado, do discurso e da linguagem, do homem e do ser. São as questões. Quando tal acontece teríamos o texto poético. Já na ficção-ilusão teríamos, por parte do leitor, um envolvimento mais externo. Nela predominam os valores já estabelecidos e onde a linguagem é manipulada e escolhida porque faz parte de um discurso-código decodificável a partir de um sistema de significados já estabelecidos. Não há invenção de sentidos. Funda-se na linguagem de comunicação cotidiana. Em tais obras, a linguagem é trabalhada ao nível da ambigüidade semântica, que se faz portadora do aparente jogo dos valores ideológicos. Estes acabam por substituir a ambigüidade manifestativa da obra poética por um jogo de oposições binárias necessárias ao funcionamento do sistema, onde uma faceta exclui e se opõe à outra: sensível e inteligível, emocional e racional, imaginação e realidade, verdadeiro e falso, matéria e espírito, exterior e interior, indivíduo e sociedade, existência e essência, vida e morte etc.

Tal separação binária tende também a opor realidade vigente a realidade imaginária, envolvendo o leitor num jogo no qual ele se torna espectador passivo. Esse envolvimento causa prazer ao leitor porque o retira de sua realidade e o projeta numa outra, onde as suas questões não se fazem presentes. Uma tal suspensão temporária alivia o leitor, porque o liberta aparentemente da pressão da realidade da vida e não o pressiona a experienciar a sua vida. Há aí uma aparente catarse. Na realidade, houve uma suspensão e esta, pelo alívio, traz a sensação de prazer. Mas retomado o fio da vida cotidiana, não se faz nenhuma ligação com as experiências vividas pela obra lida, não tendo, por isso mesmo, conseqüências naquilo que cada um é. O poder poético da linguagem manifestativa não se faz presente e ao fim da experiência da leitura o mundo se desenha dentro do mesmo horizonte, porque, na realidade, este horizonte não entrou em tensão ambígua, apenas foi suspenso. Daí o caráter de di-versão de uma tal literatura. No di-vertimento, a realidade se verte, se realiza dicotomicamente em realidade imediata e ilusória. O prazer surge dessa sensação narcótica. Passado o envolvimento e o efeito, recai o leitor na realidade cotidiana, que acaba por lhe provocar ainda um maior desencanto e vazio. A ilusão atua em detrimento do imaginário poético e suas questões. Estas só o texto poético pode ativar. O ilusório não impulsiona a consciência crítica nem a crítica da consciência, mas expõe e impõe um discurso e uma ordem de valores que se justificam por si, ratificando o sistema ideológico vigente, não instigando a crítica da ordem dominadora imposta pelo sistema. Ao fim da leitura não há questões, instigamentos, dúvidas, esperanças, possibilidades futuras, mas um certo vazio, uma estrada sem horizontes, sem novos desafios. O ilusório não é o possível como no texto poético, mas a sensação de irrealidade e desligamento de um grande esvaziamento. No texto poético, pelo contrário, a realidade comparece em toda sua densidade e plenitude, onde não há externo e interno, mas em que cada um se percebe sendo, se realizando, e uma verdadeira sensação de liberdade toma aquele que é envolvido pelo poder manifestativo da poesia quando faz desta uma experienciação de vida e uma aprendizagem.

No texto poético, a palavra comparece em todo o seu poder e densidade, e a separação entre língua e realidade é artificial e abstrata, pois a língua é a realidade se manifestando concretamente, de tal maneira que não é possível falar em significante e significado sem falar em velamento do que na fala se desvela. O significado, a idéia, é o significante se fazendo realidade como linguagem, ou seja, sentido e verdade, engendrados pelo vazio e pelo siêncio. É o som se fazendo música fundada no silêncio.

Desta concretude surge o fato de que no texto poético cada palavra é única e insubstituível, dando origem às dificuldades da tradução e à necessidade de uma verdadeira re-criação. O ritmo, a melodia, enfim, a musicalidade se tornam uma dimensão fundamental da linguagem poética, pela qual a realidade se manifesta em sua plenitude. Na e pela palavra poética, o som se faz linguagem. O discurso poético não se apresenta como a mediação de um emissor e um receptor nem as palavras têm qualquer função: não há mensagem na poiesis, apenas a realidade se processando e presentificando como palavra. Toda grande obra é portadora de um ritmo e melodia único e inimitável. É nisso tudo que o texto poético se distingue de todos os outros textos. Mas para apreender melhor a extensão da presença e do vigor do texto poético, é necessário abordar outros aspectos, que serão vistos e tratados nesta poética da leitura.

A palavra poética dá corpo ao texto. Corporificar diz aí o quê? Como a palavra, quando é poética, corporifica? O que é um “corpo”? E será que cabe numa definição conceitual? Não certamente, pois é, foi e será uma questão.

A palavra não poética exerce uma ação inversa: esvazia, empobrece, clicheriza, generaliza, conceitua, torna-se conhecimento comunicacional transitório e descartável. Nos textos e filmes de ação, em que predomina o enredo, como Aristóteles já assinalou na sua Poética, ela se constitui em algo linear, com fim previsível. As ações não trazem algo de novo e denso, apenas confirmam, no final, idéias e conceitos já previstos e valores já estabelecidos, em que uns personagens querem negar (mal) e os outros querem defender e reafirmar (bem). Ou então um amor ideal que nunca se realiza. Ou ainda uma ascensão social que um amor paixão teima em realizar e em que as classes sociais se opõem ou platonicamente se realiza. São situações, fórmulas já fixas. Há ainda os livros e filmes “históricos”, com muita ação e dificuldades. Dificilmente há um desfecho trágico, pois desagrada ao leitor e desse modo não vende.

Em tais textos, a palavra é apenas um meio de enunciar a ação e as ações confirmam as palavras (e até reduplicam, de tal maneira que, muitas vezes, nem é necessário ver as ações, só escutar o falatório contínuo). Nada aí acontece de novo, de denso, de inaugural, de enigmático (tudo ao final é explicado racionalmente), de ambíguo. E justamente isto é que caracteriza as obras poéticas. Por isso é melhor, neste caso, falar em obras e não em textos, pois a obra é obra na medida em que sempre opera, manifesta o real.

Uma palavra poética é densa quando nela o silêncio fala como sentido e sentidos dos sons. Já no texto não poético dá-se exatamente o inverso. Não há densidade porque as palavras se tornam instrumento e veículo comunicativo, onde a palavra é tanto mais comunicativa quanto mais o silêncio se torna ausente, tornando-as leves, fáceis, bem assimiláveis e compreensíveis, e descartáveis. É o caso também dos filmes sensação e pipoca. Os piores são os que pretensamente querem passar uma “mensagem”. Para quê? Para doutrinarem e “fazerem a cabeça” dos leitore ou espectadores? O ser humano precisa de “mensagens” (sejam políticas, sejam de auto-ajuda) ou de um auto-conhecimento profundo? Nelas o tempo não se faz presente, porque não perduram. Têm a duração da novidade de que são portadores. E só. O leitor ou espectador nunca é provocado a mergulhar e a experienciar o seu tempo enquanto o que ele é.

O rito da leitura da obra poética demanda um tempo próprio, um lento apropriar-se das questões, dando lugar ao recolhimento e à reflexão, a um saborear um saber que se torna densamente saboroso e sabedoria, que se realiza num metabolismo que eclode em corporeidades plenificantes, sem separações e sem divisões entre o corpo que se passa a ter e o corpo que se passa a ser. É nesse horizonte e sentido que a palavra corporifica a obra porque corporifica o ser humano.

A densidade da palavra exige leitores que se abram para esse atuar e operar em leituras de escuta da densidade e do vigor do silêncio que se presentifica e corporifica na ambigüidade de toda palavra poética. É o fazer da leitura da obra poética o lento tempo de maturação do que se é, do que cada um desde sempre já é.

Quando tal acontece, temos a linguagem poética desabrochando. Por isso dá-se-lhe o nome de linguagem manifestativa, porque nela e como ela o real se desvela e vela.

A leitura, a interpretação e o corpo (23-08-06)

A LEITURA E A INTERPRETAÇÃO – atualizada 07-09-05

(Atenção: caso queira ter acesso a outros ensaios clique abaixo do índice no nome dos meses)

Prof. Manuel Antônio de Castro

www.travessiapoetica.com

Assim, heremeneuein, interpretar, não diz conduzir alguma

coisa para a claridade da razão e o discurso da língua, mas

reconduzi-la a seu lugar de origem no mistério da Linguagem.

Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a pensar I, p. 248.

Os latinos traduziram a palavra grega hermenêutica por interpretação. Hermenêutica é a arte de interpretar e tem diferentes realizações. É uma arte tão antiga como o próprio homem. Somos sempre interpretando. Todas as circunstâncias da vida, sejam ordinárias, sejam extraordinárias, exigem de nós uma interpretação. Por isso os gregos, sempre atentos ao essencial, criaram uma figura mítica, o deus Hermes. Seu nome significa verbo e, por isso, ele é, como mediador, o mensageiro e a mensagem entre os deuses e os homens, e, ambiguamente os conduz pelos caminhos da luz e pelos caminhos das trevas. Por isso preside a toda interpretação.

O seu nascimento é seguido de fatos extraordinários, tornando-o um deus de múltiplas facetas, atribuições e características. Ele tem, sobretudo o poder de atar e de desatar (poder da palavra). Tudo isso mostra, mítica e vivencialmente, a complexidade da interpretação. A ligação do poeta e da poesia com Hermes é muito profunda, pois radica na palavra fundadora e profética. Por isso os poetas sempre se souberam os portadores muitas vezes involuntários da palavra reveladora. Sabedores da insuficiência do seu discurso, invocam as musas, as poderosas filhas da Linguagem poética, a Memória. Nela e por ela a realidade se presentifica.

A interpretação esteve inicialmente ligada à enunciação da vontade e destino que os deuses prepararam para os homens em suas vicissitudes. Quando o mito foi sucedido pela religião, inaugurou-se a necessidade da interpretação da palavra do Deus. Tal interpretação recebeu no seu decorrer histórico o nome de exegese, motiva por uma situação conjuntural de aplicação concreta. As disposições jurídicas dos homens na Polis sucederam à disposição da justiça divina. E esta como aquela também exigiram a sua interpretação e aplicação. Há, pois, diferentes interpretações. As obras poéticas têm sua origem no poder revelador da palavra mítica.

O poeta ao ouvir as musas transcreve o que ouve, não o que as musas falam. Daí decorrem duas conseqüências. De um lado, as diferentes obras de um poeta são uma única obra sempre incompleta de tentativa de transcrição da escuta. De outro, a tensão entre escuta e fala gera uma ambigüidade poética, que exige uma contínua interpretação. É a interpretação poética. Esta também se inscreve sempre numa situação conjuntural, mas diferente da situação religiosa e jurídica, onde há uma intenção e mensagem, a interpretação poética se torna um exercício manifestativo do sentido e verdade da realidade, pela qual se de-cide o que somos e não-somos, ou seja, nos experienciamos sendo. Quando o intérprete inicia a sua interpretação tem diante de si um discurso, a palavra do poeta, mas ele lê para escutar a voz da Memória, na fala das Musas. O leitor é tão importante como o autor. A interpretação poética se torna sempre uma aventura fundadora de realidade, porque na obra está em operação a sua verdade.

As observações que se seguem têm o intuito de levá-lo, hermeneuta/leitor, a penetrar um pouco nessa complexidade. É um convite para trilhar os caminhos de Hermes, da Palavra. Eles estão dentro de você. Na travessia desses caminhos cada um de nós na sua caminhada se descobre naquilo que é, enquanto alguém que caminha para realizar as múltiplas possibilidades que a vida nos oferece. A hermenêutica, dada a sua importância, se torna o centro não só da arte, mas também da religião e do direito.

O difícil e múltiplo caminho da interpretação

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

......................................................................

Penetra surdamente no reino das palavras

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata..

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consuma

Com seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito,

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade

No essencial, o leitor não se diferencia do poeta. Uma leitura interpretativa segue os mesmos passos da elaboração do poema. E diante das palavras não pode haver desespero nem pressa, mas assédio paciente e escuta. É necessário penetrar “surdamente no reino das palavras” para deixar a Linguagem poética falar. Uma leitura interpretativa só eclode quando se faz esta experienciação da poesia. E o diálogo tem nas palavras do poema a medida do alcance de cada interpretação, porque não são palavras nem do poeta nem do leitor, mas da poesia. No entanto, no cotidiano, as palavras em nosso viver cotidiano são usadas sem face, anônimas e automatizadas. Pensamos que fazemos um uso pessoal, subjetivo, quando, na verdade, veiculamos idéias correntes e socialmente estabelecidas: é a linguagem comunicativa e instrumental. Deixar que o poema, onde a palavra manifesta o seu vigor, se “... consuma / com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio” passe a nos provocar, é então que se inicia a leitura interpretativa. É uma caminhada de vivenciação e diálogo com as palavras do poema, que exige de nós disposição, atenção, doação e escuta. Não há um modelo ou paradigma que se torne um caminho único e seguro. Isso não levaria em conta a conjuntura, o histórico e a identidade de cada leitor intérprete. Por outro lado de maneira alguma estes dados devem se tornar os motivos subjetivos para realizar a interpretação, senão o poema e suas palavras só irão confirmar o que o leitor já pensa e sabe. É necessário a partir destes dados haver uma efetiva abertura e escuta do leitor intérprete. Quem fala não é o intérprete mas o poema como voz da poesia. Como preparação e execução da escuta interpretativa alguns momentos e procedimentos são recomendados.

Leitura espontânea e poética.

Há um caminho possível (método, não metodologia) de leitura interpretativa que nos põe mais diretamente em contato com a dimensão discursiva de todo poema. Houve sempre a tendência a separar a obra em fundo e forma, em significantes e significados, como se a obra não fosse uma unidade ambígua de manifestação da realidade, onde é tão real o significante como o significado e onde o sentido é o sentir o significante como significado e o significado como significante. O uso adequado das noções gramaticais, no que elas têm de essencial, pode nos preparar para adentrar os sentidos de um texto, de uma obra. É claro que o uso dessas classificações gramaticais não se pode tornar um fim em si, mas são ponte para estabelecer um diálogo com o texto em primeira instância e, em segunda, com o sentido da Linguagem poética. O lançar mão dos recursos discursivos como etapa interpretativa impede a transformação da interpretação numa glosa, o que ocorre freqüentemente, ou ainda na expressão daquilo que já pensamos – são nossas impressões - e que o texto ou obra parece confirmar. Não é que se queira conhecer o significado objetivo do texto ou obra, porque este, na realidade não existe. Ele é depreendido por uma leitura do sentido do texto ou obra baseada nos significados cotidianos do discurso, onde, portanto, não se faz presente a ambigüidade poética. Vamos dividir a leitura interpretativa em três passos, em três momentos, mas é necessário que fique bem claro que essa separação é meramente operacional, porque, na realidade, já sempre nos movemos no círculo hermenêutico.

A leitura espontânea (literal ou atemática)

O que predispõe para a leitura espontânea ou não é uma questão de disposição, porque o sentido da linguagem poética nunca fica prisioneiro de uma formação ou da erudição ou cultura. É necessário deixar a compreensão, que é o humano se manifestando, se tornar presente. A leitura espontânea atende mais aos dados do discurso e ao horizonte cultural e conjuntural em que cada um naturalmente vive. Mas ela já pode trazer as sementes do sentido poético, para o qual a obra poética naturalmente aponta. Este, muitas vezes, só vai ocorrer numa segunda ou terceira leitura. De qualquer maneira é uma leitura que deve ser valorizada e incentivada, porque é a partir da sua incompletude e de perguntas que não foram respondidas a questões levantadas no seu decorrer, que surge a vontade de se fazer uma nova leitura. Há ainda o prazer natural pelo envolvimento e atração que toda ficção poética desencadeia em nosso imaginário. Se o leitor tiver de fazer uma interpretação, alguns procedimentos podem ajudar.

O “entre” de toda palavra nos lança numa tensão que se faz presente permanentemente numa dupla energia: a) a centrípeta ou para a Terra; b) a centrífuga ou para o Céu. O mito sempre usou as imagens-questões Céu e Terra para mostrar essa dupla tendência que nos move e atrai. Disso resulta em nós um movimento que vai do todo para a parte e da parte para o todo, num encaminhar a leitura num processo de apreensão progressiva do sentido do texto. O processo de leitura deve estar atento, em seus diversos passos, a esta tensão. Assim é que a leitura do todo permite a apreensão da cada palavra em sua força poética, mas também uma palavra ou palavras nucleares imantizam todo o texto ou poema ou obra de sentido. É porque aí sempre se faz presente a poiesis como acontecer. Abrir-se para a vigência da poiesis (força poética), enquanto sintaxe poética (sentido do todo/parte e da parte/todo) e não apenas gramatical, permite uma tripla escuta e os demais procedimentos metódicos, preparando a aprendizagem. Quando a aprendizagem acontece surge e experiencia-se a sabedoria. Mas agir sabiamente é agir eticamente. A aprendizagem é o agir ético que leva à sabedoria. Ser sábio é simplesmente ser.

Para tanto é necessário seguir alguns procedimentos metódicos, mas estes não bastam, se não houver abertura para a fala da obra e cada leitor não abandonar os jargões e preconceitos estabelecidos, confundidos, infelizmente, com a chamada subjetividade.

Procedimentos iniciais

- Ler o texto todo para uma primeira apreensão;

- Reler sublinhando as palavras principais. Em ordem de importância: Verbos, substantivos, advérbios, adjetivos e conjunções. Nunca esqueça que o verbo é o coração da oração e ele, de alguma modo, contém o principal sentido. Numa prova, seja ela qual for, comece sempre destacando os verbos etc.;

- Em seguida procurar relacionar os verbos entre si e com os substantivos etc. Nunca esquecer que os advérbios também são muito importantes, pois eles introduzem uma afirmação ou negação etc.;

- Procurar os significados das palavras desconhecidas, pois a criação artística trabalha muito com a ambigüidade. Às vezes os sentidos são apreendidos dentro da sintaxe poética. Esta nada mais é do que a Terra eclodindo enquanto mundo. É a sintaxe poética que possibilita novas relações de sentido. Sentido é o kaos se ordenando em kosmos, ou seja, mundo.

- Assinalar as alusões a fatos e personagens históricos, a mitos etc. Obter maiores

informações sobre esses dados.

- Anotar as principais impressões e idéias causadas pela leitura.

- Sublinhar as passagens mais importantes, comentando-as.

- Notar se há alusão a outras obras.

- Transformar as passagens ambíguas e as metáforas (personagens) em questões para posterior releitura e discussão.

Divisão do texto em movimentos.

Feita a leitura espontânea ou atemática, é importante tentar aprender já um primeiro sentido do texto no seu todo, procurando distinguir o encadeamento das diferentes partes. Dessa maneira estaremos já exercitando o círculo hermenêutico. Essa distinção do todo nas partes é o que chamamos divisão em movimentos e consiste num primeiro esforço de apreender um sentido geral ainda atemático, numa seqüência mais clara e cada vez mais temática. Posteriormente, esta compreensão pode mudar, porque novos significados se foram concretizando no decorrer da interpretação. Entende-se por movimento uma parte, um aspecto, uma idéia do texto (em prosa ou em verso). Numa comparação, o texto estaria para uma casa assim como cada movimento estaria para os cômodos (sala, quartos, cozinha, banheiro). Propriamente não há casa sem os cômodos, embora a idéia de casa seja mais do que cada cômodo. Dependendo do texto e do seu tamanho pode haver sub-movimentos.

Os diversos movimentos mostram o desenvolvimento do tema que o texto propõe. A compreensão do todo nas partes se torna um passo muito importante no sentido do texto e da obra, seja em prosa, seja em verso. A passagem de um movimento a outro se serve dos diferentes recursos discursivos. É impossível estabelecer uma regra. Mas alguns elementos, dependendo do texto, podem, eventualmente, marcar a mudança de movimento. Exemplifiquemos:

- mudança de tempo verbal.

- introdução de uma conjunção adversativa.

- mudança de parágrafo.

- mudança de sujeito.

- etc.

Como proceder? Numere os versos ou linhas do texto. Depois de uma leitura atenta, indique cada movimento com o primeiro e o último número. Procure sintetizar a idéia de cada movimento numa oração. Inicie depois o outro momento: a interpretação através dos elementos discursivo-estruturais. Pode acontecer que no decorrer deste segundo momento mudemos a primeira divisão em movimentos, porque a compreensão do texto já se aprofundou. Isso é normal. Significa que já estamos desenvolvendo a leitura compreensiva circular, dentro do círculo hermenêutico.

A leitura e as camadas da memória

A melhor metáfora para dizer o que é texto é a rede. Como rede ele se constitui de linhas, nós e buracos. E mais amplo que tudo isso o vazio e o silêncio, pois há textos escritos e orais. As palavras têm uma densidade horizontal e vertical, levando o texto a se constituir em múltiplas camadas. Ao entre-cruzamento destas camadas e vozes podemos denominar: hipertexto, intertexto e hypotexto. É importante ter bem presente que o “mundo” se constitui em múltiplos textos e obras. Mas poderíamos dizer que, à semelhança de um organismo vivo, cada texto têm também as suas células, seus membros e seu corpo, mas onde cada célula contém em si todo o corpo (obra). Em grau de complexidade crescente: palavra, oração, discurso, obra.

Hipertexto

O hipertexto é um conjunto de linhas, nós e buracos ligados por conexões constituindo uma sintaxe de muitos sentidos e significados. O que em geral caracteriza o hipertexto é o fato de se poder constituir ele mesmo de outros textos, sejam palavras, imagens, gráficos, seqüências sonoras, sejam documentos complexos que também podem ser eles mesmos hipertextos. Num exemplo simples, poderíamos dizer que uma obra onde entram múltiplas manifestações artísticas se constitui como hipertexto. Fragmentos, colagens, justaposições, citações, comentários etecetera, tudo junto, são elementos de que se constituem os hipertextos. Hoje, o largo uso das infovias e da intenet permite fazer hipertextos ricos e sofisticados. O interessante desse novo texto é a diluição da autoria e até da originalidade. Mas em termos comunicativos pode conduzir a uma grande complexidade.

Intertexto

O intertexto como tal se constitui na reunião de diferentes textos, seja diacrônica, seja soncronicamente. Ele pode tornar-se uma dimensão de um hipertexto. Os intertextos conjugam perspectivas e realizações discursivas diferentes, mas metabolizados numa nova dicção que lhe dá a originalidade. A identificação da intertextualidade exige muita leitura e conhecimentos, e pode permitir interpretações mais ricas.

Hypotexto

Em si, tanto o hipertexto como o intertexto já pressupõem a presença e vigor do hypotexto. Ele constitui as camadas da memória de que se constitui realmente cada texto. Pensando que a teia em que se tece o texto se nutre do discurso e sabendo que o discurso é a matéria do tempo feito memória, vemos que a palavra traz em si, como um pôr entre, o presentificado, o presentificante e o presentificável. A co-presença destas três dimensões do tempo na palavra abre as inúmeras possibilidades de leituras e interpretações. Na memória está todo o saber. O uso de diferentes dicionários é essencial para adentrar o hypotexto de cada texto.

Quando pensamos e constatamos que qualquer um de nós faz parte de uma tradição cultural, onde as múltiplas criações são intertextos, hipertextos e hypotextos, a idéia linear de início, meio e fim é algo absolutamente aleatório. Sendo então a cultura de um povo um intertexto, hipertexto e hypotexto, onde começa e como cada um realiza uma leitura é algo completamente imprevisível, porque depende da formação, do acesso, das conexões, das intuições, da inteligência, das motivações, das crenças etc. de cada um.

Por outro lado, isso gera uma angústia nova: a de que o exercício da subjetividade é algo mais virtual do que real, porque os passos e caminhos percorridos no intertexto, hipertexto e hypotexto já estão previstos na rede. Somos hoje uma sociedade em rede. Mas não podemos confundir a ambigüidade do texto poético, ainda que faça também parte do intertexto, hipertexto e hypotexto, com a as possibilidades e caminhos da rede. Isso seria um grande equívoco. A ambigüidade poética diz respeito à tensão rede, vazio e silêncio do real. Em verdade, se não houvesse o vazio não haveria rede. Nessa dimensão, a leitura do texto poético só se traduz numa interpretação quando a tensão e escolha se dá numa escuta, não do que os fios da rede prevêem, mas quando e tão-somente quando ela vige na tensão fios-discursos, vazio e silêncio. Por isso o estudo tradicional das obras de arte, baseados em matéria e forma, não dá conta do que a obra como obra de arte é. A matéria e a forma nada são poeticamente sem o vazio e o silêncio. A eles se prende a leitura poética, onde o móvel da leitura é a poiesis.

Os passos e as passagens da leitura

1º. Confira o ensaio Método e ação: passagens. Nele expusemos que uma leitura

mais profunda pode-se desdobrar em oito passagens. Recordando: 1ª. Leitura; 2ª. Escuta; 3ª. Diálogo; 4ª. Interpretação; 5ª. Experienciação; 6ª. Acontecimento; 7ª. Aprendizado e aprendizagem; 8ª. Libertação; Ser feliz

A palavra e o corpo – a teia da vida

Nossa idéia de corpo é muito parcial e influenciada por uma dicotomia entre espírito e matéria. Não cabe agora e aqui discutir a origem dessa dicotomia. No entanto, hoje, a ciência está comprovando a profunda ligação entre o ser humano e todo o restante da vida e da natureza. Considera-se hoje que a vida se constitui numa grande rede. Por isso, podemos apreender o corpo em cinco grandes níveis: 1º. O corpo que cada um tem; 2º. O corpo de um grupo familiar e genético (etnia); 3º. O corpo genético de todos os seres humanos; 4º. O corpo como ecossistema; 5º. O corpo planeta como biosfera. Tais corpos se interligam de uma maneira marvilhosa e misteriosa compondo a teia da vida.

Há uma tendência ocidental por influência dos conceitos em detrimento das questões pela qual julgamos que ler é sempre um exercício racional. Mas não.

O ser humano, enquanto sentido do todo que ele é, se condensa em três energias e impulsos: 1ª. física; 2ª. mental; 3ª. erótica, gerando uma tripla escuta e experienciação: 1ª. palavra lida em silêncio ou falada; 2ª. dança; 3ª. música. Nesse processo rico de leituras se dá e densifica o Logos, pois ele diz fundamentalmente reunir como linguagem. A denominação da linguagem, em português, a partir de uma parte do órgão fonador, a língua, conduz a uma compreensão equivoda da linguagem, identificando-a com algo substancial e material e só acentua o nosso lado corporal. Corpo aqui nada tem a ver com matéria ou carne. Corpo somos o que somos enquanto realização do ser como poiesis. Daí a sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura e das questões.

Descartes, que inaugura a Modernidade, separa o ser humano-corpo em duas realidades: 1ª. Res cogitans (coisa pensante, racional); 2ª. Res extensa (material, carnal). Esta divisão é a base da Modernidade, daí a dificuldade hoje em pensar o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo, o todo que cada um é. A argumentação da consciência determinando não só o ser, mas também o próprio real/corpo só seria aceitável se admitirmos a dicotomia cartesiana. Pode-se ela sustentar? O que ficou esquecido? O corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente. Sem esta ação nada pode acontecer, nem mesmo a consciência. A dicotomia levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-introspectivo ou mesmo em voz alta (rara), mas da qual se afastou fundamentalmente o corpo.

A tripla leitura de voz, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Porém, estas três leituras só são possíveis a partir da escuta do que se é. Neste ser nunca há dicotomias.

As três forças

A compreensão do corpo como matéria ou carne é por demais enganador e insuficiente. Até porque não sabemos o que é matéria o carne. Real não é o que se vê, mas o que age. Por isso o corpo é uma sintaxe poética. Nele e com ele atuam as três forças: 1ª. a física, cuja metáfora é o braço; 2ª. a mental e psíquica, desdobrada misteriosamente no pensamento; 3ª. a erótica, cuja metáfora é o coração e sua experienciação amor. A essas três forças perpassa a compreensão, daí apreensão e aprendizagem. Quando isto ocorre se manifesta o espírito, um fogo secreto e misterioso que é o próprio vigor do corpo como corpo, como ser humano. Essas três forças vivem de uma tensão permanente, que os gregos chamaram de polemós (luta, combate). Dele surge como poiesis a sintaxe e narrativa poética. Um corpo tem em si a narrativa primordial.

O ser que o corpo é abrange o uno (silêncio, vazio, nada) e a multiplicidade das diferenças. O uno se dá como compreensão e linguagem. Por isso é necessário mergulhar no entre em que toda palavra se funda como palavra. O irromper em sentido (sentimentos) e caminho é Hermes se fazendo presente na tripla força, daí ser ele verbo. O máximo da sintaxe poética mergulha e se manifesta no entre como repouso, ou seja, a sintaxe poética se dá na tensão e tende sempre à não-ação, como máximo de ação e silêncio. O corpo abrande as três forças e se torna o lugar/mundo como tal do nada excessivo em que se constitui toda a realidade.

A interpretação é a eclosão do corpo como aprendizagem e sabedoria, a partir de e no entre.

A leitura como escuta não consiste, pois, numa decodificação de letras, mas na integral experienciação e aprendizagem do que somos. Por isso Fernando Pessoa nos convida:

Para ser grande

sê inteiro.

Põe quanto és

no mínimo que fazes.

Nada teu exagera

ou exclui.

Assim em cada lago

A lua toda brilha

Porque alta vive.

A leitura poética

... a vida, a morte, tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos e-xistem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras.

Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).

O estudo da literatura não pode se reduzir à prática da leitura dos elementos sistemáticos do texto ou da obra, aos seus aspectos formais e discursivos. Esse deve ser apenas o primeiro passo e a preparação para que a literatura enquanto poesia/linguagem aconteça. O lugar desse acontecimento não é o texto, não é a leitura, não é a interpretação: é o leitor. E em cada leitor de uma maneira absolutamente singular. Isso não quer dizer individual, mas, sim, nesse acontecimento o leitor, cada leitor, singularmente, se experiencia como realização da realidade, isto é, como a realidade que ele é. É a isso que chamamos deixar a realidade acontecer, ou melhor, tornar-se o que é.

A arte sempre coloca como centro de decisão a questão da verdade, pois opera a verdade da realidade. Ora, normalmente, temos um conceito de verdade muito limitado e imediatista em relação à realidade, e passamos a ler o mundo da arte como sendo ficcional e não real, porque nele opera o imaginário. Acontece que o imaginário é o lugar da arte, mas também do ser humano e de toda realidade. E só por ser do homem é que também é da arte. Mas é por força da ficção poética que o sonho e a utopia eclodem. É por força da arte que o homem ultrapassa as meras circunstâncias e penetra na dinâmica de suas realizações, sondando toda a sua complexidade, de que as grandes questões são o índice, na medida em que eclodem como mundo. As circunstâncias como meio só são apreensíveis e compreensíveis no âmbito da realidade como mundo.

Essas grandes questões, como mundo e lugar, é que nos atraem e alimentam na leitura. Mas só se forem metabolizadas. Elas explicam o forte e apaixonante envolvimento da leitura. O melhor caminho que o homem, até hoje, descobriu para chegar até elas foi a arte. Por isso, em arte, como na vida, a ficção poética é a melhor verdade, é a realidade verdadeira. Realidade é, então, um apelo de realização que ultrapassa os limites do imediato e já dado. É o imaginário vigorando. Só não devemos confundir ilusão com imaginação, com ficção poético-artística. A ilusão se estrutura em exterioridades, repetições e preconceitos. Apenas reduplica o sistema e o reafirma. A ficção poético-artística envolve o homem por inteiro, inaugura novas manifestações e percepções da realidade, enfim, abole os preconceitos e liberta. Um exemplo bem forte do vigor da ficção poética está no poema de Fernando Pessoa “Autopsicografia”, quando põe o ser do poeta e do leitor como a tensão entre o fingir (ficção)/ler e o sentir (dor), entre a dor fingida/lida e a dor sentida, no destino que entretém razão e coração, fazendo do que somos um jogo.

Não podemos esquecer nunca que a Poética da poiesis, antes de ser um conjunto de conceitos e normas formuladas a partir de sistemas filosóficos, se manifesta nas próprias obras de arte. Elas trazem em si todos os procedimentos de realização, que são mais do que procedimentos, e sim a manifestação do real em seu sentido e verdade. A melhor maneira de aprender e apreender a arte é pela própria arte. É a isto que chamamos Poética da poiesis. Mas não podemos esquecer que a arte é um enigma e que para ser colhido por ele é necessário um processo de envolvimento, uma incursão reflexiva até se tornar sabedoria e libertação.

O trabalhar/interpretar um texto isoladamente tem as suas vantagens e os seus perigos. Como célula, o texto presta-se, num primeiro momento, já a partir da decisão da escolha, excelentemente, à exemplificação e à demonstração de uma determinada metodologia. Mas na relação texto/metodologia o que nos move? Evidentemente, num primeiro momento, a operacionalização da metodologia. Mas pensemos no passo seguinte. De posse do metodologia, o que fazer com ela? Continuar a usar os textos para exemplificá-la e, dessa maneira, fazermos um claro e seguro trabalho didático? Isso é que é perigoso. Acabamos esquecendo o texto-obra e nos contentando com a metodologia. O texto virou pretexto. Para que tal não aconteça é necessário que voltemos ao texto e nos lembremos que ele faz parte de uma obra e como célula contém em si de alguma maneira toda a obra. A partir desse momento nosso horizonte deixa de ser a interpretação do texto (célula) e passa a ser interpretação da obra em sua construção e vigor: é o que denominamos poética da obra.

Como fazer a ligação da interpretação de textos com a poética da obra? É um trabalho mais amplo e complexo. Não se trata mais de ver o texto/obra como uma célula, mas de refletir sobre o que é a própria obra, lembrando que obra vem do verbo operar, agir. Quem age, essencialmente, é a verdade da poesia, manifestando a realidade como mundo. Obra passa, pois, a ter um significado completamente diferente do tradicional. Contudo, eis algumas observações sumárias. Quando saímos da célula e passamos a examinar a obra, constatamos que o texto/obra é um sistema de palavras, de imagens-questões, de procedimentos metafóricos, em que alguns sempre ocorrem, e de situações conjunturais básicas. Eles tornam-se os elementos-chave da obra, portadores que são de uma força reguladora e organizadora, e que dá sentido ao todo da obra.

A interpretação do texto deixa de ter um fim em-si e passa a ser o caminho para a descoberta das recorrências em torno das questões essenciais. São elas que organizam o todo sintático, seja em campos semânticos, seja nas criações metafóricas, seja nas situações limites ambíguas. Desse primeiro momento, partimos para um segundo que consiste em surpreender todas as articulações a partir dos elementos-chave. Trata-se, então, de compreender as articulações dos elementos-chave entre si e em constelações de junturas dinâmicas. É aí que se torna evidente a força de criação, pois constatamos que a obra numa certa dimensão é um sistema dinâmico e solidamente estabelecido, onde nada falta e nada é demais.

Se nossa intenção é apreender a bem estruturada realização código-discursiva, a forte coesão estilístico-metafórica, as tensões mundivivenciais, teremos conseguido nosso intento. O poético aparece como um mundo vivo, pulsando energia. Por isso não podemos deixar de indagar e investigar: E daí? Para que toda essa realização formal? Será que o autor na sua cotidiana e incessante luta com as palavras tinha em mente só isso? Não devemos nos perguntar antes: O que cada autor e poeta, com isso, nos quer dizer e fazer pensar? Que verdade advém e acontece com a reflexão? O terceiro passo para delineamento da leitura interpretativa e da poética da obra acontece no momento em que os passos anteriores fazem eclodir em nós a compreensão daquilo que o texto/obra não diz, mas quer dizer, em tudo que nos diz. É a presença e vigor do silêncio. Esse não-dizer, querendo dizer, se torna a questão central da interpretação e da poética da poiesis, e com ela experienciamos o retraimento/escuta do que nos atraía em nossa leitura interpretativa. Era a força da paixão da leitura. Presos a uma tensão que resulta do que a obra não diz em tudo que diz, somos envolvidos e convocados a nos lançarmos na aventura do que somos nas conjunturas e questões da nossa vida, no processar-se sem fim da realidade.

A identificação da poética da obra com a decisão do nosso próprio pensamento nos remete para a travessia de retraimento de um horizonte que cada vez mais atrai, se retrai e nos arrasta. Repetimos, obra não é um objeto que pode simplesmente ser desmontado, analisado e conhecido ob-jetivamente, mas um operar da verdade e do sentido da poesia da realidade. Esta compreensão da obra parece ser muito abstrata e nos deixar soltos, sem dados “concretos” e palpáveis. Não é verdade. Abstratos são os conceitos, porque vazios do pulsar da realidade.

Para desfazer esta impressão, voltemo-nos para uma linguagem poética que se faz presente em nosso viver cotidiano: a música. O que a música opera em nós não é algo de real? Não nos envolve e nos sentimos em pleno ato de realização? Não parece que ultrapassamos nossos limites e nos sentimos livres, em um devir constante de grande plenitude, onde tudo nos parece mais real do que tudo o que existe fora de nós e à nossa volta? A este operar da música é que se chama verdade e sentido da poiesis, onde qualquer pergunta por mensagens ou utilidade é de todo despropositado e inútil. E não é algo determinado pelo indivíduo, nada tem a ver com subjetividade ou impressionismo, pois uma mesma música, por exemplo, numa dança, manifesta seu vigor concretamente e de uma maneira singular em cada um e em todos. Esse é o poder de libertar da arte. Mas não podemos esquecer que a literatura, como a música, também é arte. Nesse momento a literatura se torna Linguagem manifestativa, poética e não, simplesmente, linguagem instrumental ou social. A compreensão da obra, das obras, da poética da obra faz da poética da leitura um caminho de sentido e viagem conjuntural de verdade e não-verdade, de saber e não saber, de querer e de não querer, de viver e morrer, de ser e não ser, para sermos sábios, felizes e livres.

O caminho interpretativo que se faz enquanto caminhada para a clareira da realidade, ou seja, enquanto escuta e abertura para o sentido e verdade da poesia da realidade na sua concretude, sempre consistiu na compreensão e apreensão do centro manifestador de toda obra poética. Rosa também chama a atenção para esse aspecto e diz que é como retirar as camadas de cinzas com que o passar do tempo vai revestindo a brasa viva, em que consiste toda obra de arte. É um movimento de descida ao núcleo poético, pulsante, vivo e abrasivo que manifesta e desencadeia a realidade.