O
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É certamente uma das questões mais difíceis de expor.
Queiramos ou não já nos movemos no Universal. Nem poderíamos dialogar se não
nos movêssemos nele. O Universal nos move e comove porque nele acontece o
mistério do permanente e do efêmero. Porém, os usos da palavra universal e seus
sinônimos, consignados no dicionário, não ajudam. Assim: absoluto, coletivo,
comum, cósmico, global, católico, geral, conceitual, genérico, mundial,
internacional, planetário, total, encobrem em vez de manifestarem a riqueza que
o universal realiza, embora acenem para ele. Estes usos nos jogam apenas numa
das suas facetas sem evidenciar a outra.
Para pensar o
universal há duas vias dialéticas: uma conceitual e funcional, e outra poética,
exigindo o permanente questionar. A conceitual ou científica, predominante,
decorre de teorias paradigmáticas para explicar o universo. É adotada pelas classificações
e julgamentos das coisas e das obras de arte e de pensamento. Nela, a
operacionalidade e a funcionalidade decidem a validade e verdade do universal.
É a via do Universal abstrato. Abstrato porque se estabelece um conceito científico-filosófico
de verdade pelo qual são abstraídas, deixadas de fora, todas as diferenças e
traços próprios, e se afirma o que as torna conhecíveis enquanto conceitos ou
categorias, independendo de tempo e espaço. Não há nem pode haver ciência do
particular, do próprio. Não se fala mais em coisa, pessoa, sendo, mas em
“objeto” conhecível porque representável. O universal abstrato resulta de uma
verdade lógica, onde algo é ou não-é,
não havendo lugar para o terceiro excluído. A lógica jamais é dialética, mas
toda dialética é lógica. Na lógica o que não for lógico será necessariamente
i-lógico.
À outra via só chegamos de uma maneira oblíqua: é a via do Universal
concreto. É o caminho oblíquo da arte
e do pensamento: oblíquo porque nele o que se diz nos advém dialeticamente,
isto é, no dizer o não-dizer, no ver o não-ver, no conhecer o não-conhecer, no
manifestar da verdade a não-verdade, sem separação, dicotomia, duplo, mas numa
dobra que não cessa de se desdobrar em processo e diálogo contínuo. Em-si, concreto e Universal constituem uma tautologia, pois dizem o mesmo. O universo
ou realidade nas realizações do real é sempre uma energia em processo, jamais
redutível a uma estrutura ou proposição lógico-gramatical. Por isso, o seu
sentido histórico é a linguagem da unidade, que os gregos denominaram: logos. No entanto, concretamente nada é
igual, tudo é diferente. É uma mônada, autopoiese
e uma versão.
Uni-versal forma-se das palavras latinas: unus e vertere. Vertere diz o sempre eclodir em novas formas ou versões. Unus diz a unidade da multiplicidade infinita e fonte originária das versões, das interconexões universais.
Porém, quem se verte é a unidade, sem a qual não poderíamos nem
compreender as versões. Pois se
houvesse somente versões nem
poderíamos estar falando delas. Seria algo caótico, incompreensível, sem
sentido. E para dizermos caótico ou até ilógico já devemos saber, de antemão, o
que é não-caótico e o que é lógico. Mas a lógica se fundamenta no princípio da
não-contradição: algo é ou não é, não
sendo possível uma terceira posição. Porém, os pensadores e poetas se regem
pela dialética, onde o princípio da não-contradição já é uma contradição na
referência da linguagem e da verdade à realidade. Desta somente temos
proximidade e distância, porque somos sendos, finitos, efêmeros. Eleger um
fundamento para dizer a unidade e
falar a partir dele é a contradição por excelência. Seria como o sendo querer
falar em nome do Ser, o finito-efêmero em nome do Nada. Heidegger a expôs num
paradoxo: “Ser não pode ser. Se fosse
(ser) não mais permaneceria Ser, mas seria ente” (HEIDEGGER, 1970, 95). Dialeticamente
afirma “Ora, o que que é,
antes de tudo, é o Ser” (HEIDEGGER, 1967, 24). Todo é é um predicativo do Ser, pois o Ser é verbo não predicativo. Toda
dialética é dobra de proximidade e distância do Ser/Nada.
Em verdade, dada a nossa condição de efemeridade, só
podemos mesmo é partir das versões, o que não quer dizer parar nelas,
impossível, como vimos acima. Exige-se, portanto, além da verdade lógica,
geral, genérica, classificatória, paradigmática, uma verdade dialética onde
sejam acolhidas as versões. Estas
implicam três dimensões indissociáveis, que comparecem em todo diálogo efetivo
e não apenas nominal: o próprio e o outro, o conhecimento, a verdade. E a
questão do universal então se desloca para a dobra de conhecimento e verdade,
mediada pela palavra, pela dobra de língua e linguagem. Compreender as versões é tão difícil quanto compreender
a unidade e só de uma maneira
oblíqua. Talvez uma imagem-questão nos faça pensar essa dobra que constitui o Universal.
Como expor a identidade e diferença, sem excluir o próprio de cada versão? No
filme Depois do ensaio, Bergman (1984)
encaminha essa questão numa imagem-questão simples. O personagem-Diretor tem de
mostrar para uma personagem-Atriz a unidade do que ela é e do que deve ser a
sua personagem, tendo como referência a leitura-versão da obra, além da unidade entre a versão do Diretor-personagem e a versão- performance da Atriz. Retira do seu cabelo um grampo,
segura as duas pontas e o abre, ficando reto e uno. Recurva-o, de novo: temos duas
pontas. Eis uma dobra em seu dobrar-se e desdobrar-se: unidade e versões. Em
outras palavras: identidade e diferença. Diferença não diz respeito apenas ao
que difere, mas muito mais ao que lhe é próprio e irredutível à generalização.
São as versões. Como estas se afirmam
concretamente? É o que nos propõe o poeta-pensador Guimarães Rosa quando
afirma: “O real não está na saída nem na chegada. Ele se dispõe para a gente é
no meio da travessia” (ROSA: 1968, 52). Portanto, a questão do universal está nas
interconexões da travessia, de nosso existir. Nas interconexões presentificiam-se
as referências de uns com os outros, com as conjunturas e contextos. Eis o
social. “Travessia” concretiza o Universal. Temos uni-versal e tra-vessia provindo
ambos do verbo vertere (verter,
existir: processo de estar além da posição). O prefixo latino tra-/trans- diz o pôr-se a caminho de.
Travessia é a caminhada de cada existente, único e irrepetível, no com-crescer
do próprio e do Universal, no e a partir do uno.
Ele exige uma verdade dialética, não lógica, excludente esta das diferenças,
das versões. Tal verdade é proposta
pela Esfinge a Édipo. Diz: “São duas irmãs. Uma gera a outra. E a segunda, por
seu turno, é gerada pela primeira. Quem são elas?” Responde Édipo: “A luz e a
escuridão. A luz do dia, clareira aberta no céu, gera a escuridão da noite que,
por sua vez, precede a luz do dia”. As
imagens-questões do mito – dia e noite – expõem a verdade universal do humano.
Essa dialética poético-circular da travessia recebeu dos pensadores originários
a denominação: a-letheia, o desvelamento
que se vela. Physis. Universal.
Manuel Antônio de Castro
Um comentário:
Lindo texto!
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