A Poética de
Aristóteles originalmente constituiu-se de anotações para discussão, em aula,
do fenômeno poético. Receberam o título: Peri
poietikes technes: O entre-vigorar do poético no técnico. São complexos os
significados da palavra techne. Dois
predominaram na cultura ocidental: traduzida para o latim como ars, originou a palavra arte, significando criação; derivou-se também a palavra técnica, significando o fazer crítico-racional
e funcional. Isso originou uma dupla e tradicional concepção da Poética: É modelo
e suas regras técnicas para criar obras de arte; refere-se ao fazer criativo, fundamentado
no autor. Num e noutro caso, esqueceram-se as dimensões essenciais do seguinte
questionamento: Como acontece no fenômeno poético a referência entre a
experiência poética, a humana e o sentido real do mundo? É que hoje, como
sempre, a Poética é a experiência
originária e manifestadora da nossa condição humana. Esta implica, necessariamente:
a conjuntura histórico-social, que levou Aristóteles a redigir tais notas; e a
compreensão radical do que seja o humano de todo ser humano em seu realizar-se
poético.
Só a partir das Escolas Helenísticas se criou, e a
Modernidade aprofundou, uma dicotomia entre elas, inexistente na cultura grega.
Basta examinar as tragédias e outras criações. Se tomarmos uma palavra decisiva
e complexa como mundo, dará para
compreender perfeitamente essa integração entre o humano e a pólis. Exemplificando: Se digo ‘fomos
conversando cada vez menos, cada um preso em seus pensamentos’, distingue-se aí
bem a integração do mundo pessoal e do mundo da convivência ou social, embora distintos
também, porque há um trânsito claro entre a permanente conjuntura de
convivência (pólis) e a dimensão
humana da solidão. Nesse sentido, a Poética
propõe um diálogo dialético com as obras, que diz respeito à conjuntura em que
cada um sempre está lançado ontologicamente, isto é, no desafio de realizar-se
e não de simplesmente tomar conhecimento de produtos culturais, que seriam as
obras de arte, ou a sua atribuição crítico-criativa a algum autor. O desafio de
realizar-se consiste em viver a Vida com sentido, isto é, dar um sentido a
todas as nossas ações. A Vida, que nos foi doada para ser, precisa acontecer,
pôr-se em obra no e pelo agir. Cada um é um próprio: possibilidades de e para
possibilidades em obra.
O motivo de viver é o sentido de existir. Vigora sempre no mundo e como mundo de
todo agir histórico-social-humano. Na sua referência à realidade, a Poética das obras de arte move-se no
horizonte de uma clareira de onde lhe advém o sentido e força de realização: mundo. Pensar o sentido é pensar o poético de todo agir. Este implica
sentido e realização, numa caminhada contínua de procuras e escolhas. Nela
todos estamos implicados. Os gregos a pensavam na dobra poético-dialética do telos. Este
tanto pode significar finalidade funcional quanto consumação. Nessa dobra, a experiência
e o aprendizado da existência dizem respeito a nossas relações com os entes em
sua funcionalidade. Já na referência da Essência do humano ao Ser, há uma experienciação
e aprendizagem, nas quais cada um tem de decidir o sentido e a consumação do
destino que recebeu para ser, escutando o apelo do Ser, que nos liberta
essencialmente. O desconhecimento do poético das obras de arte leva a julgar
que elas exemplificam modelos classificatórios: os Estilos de época ou os Gêneros.
Como as obras de arte fazem parte de determinada cultura é engano achar que ela
as determina. As produções culturais podem ser vistas em duas dimensões: aquelas
que estão presas a determinada conjuntura; aquelas que, nascendo numa
conjuntura, a manifesta como mundo e a ultrapassa. Exemplifiquemos. Cultural e
historicamente, hoje, a tri-rema grega e a caravela portuguesa foram
ultrapassadas pelo navio atômico, pois são dependentes de sua época. Já as
tragédias gregas, continuam válidas, sendo encenadas, vistas e lidas até hoje.
As obras de Beethoven são executadas, hoje, em todas as culturas ocidentais e
orientais. No entanto, o compositor e sua obra pertenceram a uma época e
cultura determinadas. E isso acontece com todas as obras de arte de todas as
culturas e épocas. O que as obras de arte têm que as outras produções culturais
não têm? Ambas não são produzidas pelos seres humanos? Mostrar o que as
diferencia e as questões que as constituem é uma das tarefas da Poética. Pensemos. Uma das questões para
apreender a obra de arte consiste no universal: abstrato, se predomina o funcional; concreto, se acontecem as questões. Por ser universal concreto, a
obra de arte é a essência do social e da dialética: o diálogo das épocas. Ela, sendo
o sentido concreto do humano de todos os seres humanos, exige a dialética do
diálogo. Este só acontece onde se fazem presentes a identidade e as diferenças
pessoais, históricas e culturais.
Poética
originou-se do verbo grego poiein, que
significa agir. Este diz todo passar
do não-ser ao ser. Não se pode reduzir o agir (criar) ao fazer (produzir
utensílios, objetos). Deve haver uma integração. A poiesis do poiein é o
vigorar do poético. Ela é a energia
de sentido que torna uma obra poética e não apenas funcional, útil. A obra de
arte também é funcional em diferentes níveis, mas, vigorando na poiesis, não se esgota nele. Uma
luminária que for uma obra de arte pode iluminar e ser poética. Porém, nem todo
utensílio iluminante é necessariamente obra de arte, pois se restringe à função
de iluminar, não manifestando sentido, verdade e mundo, próprio da obra de
arte. Falta-lhe o vigor do poético. Neste exemplo, fica bem claro que o humano,
que está referenciado ao agir, sempre
inclui o funcional, mas não se esgota na funcionalidade. São variadas as
funções das obras de arte, entre elas a político-ideológica, dependendo da sua
manipulação. Contudo, são funções passíveis de ultrapassagem. Não se pode
confundir função com poético. Este é uma questão do universal concreto. Um
outro exemplo: os filmes. A maioria tem a função de distrair. Porém, esgotam-se
nisso. São artísticos aqueles nos quais, além do distrair, também vigora a poiesis, a energia de sentido que
manifesta a verdade e o mundo da realidade nas realizações do real. Como opera a poiesis na obra poética? Se a função se esgota no conceito, o
poético faz-se presente nas questões, pois estas articulam o saber e não-saber,
a verdade e não-verdade, o ser e não-ser. O poético, sendo poiesis, faz o pensar do Ser vigorar e possibilita ao ser humano
tornar-se humano. Tal energia é o vigorar do silêncio no entre de amor e morte. O manto ilimitado do silêncio do vazio é a claridade do
sentido da verdade e não-verdade que constitui o mundo humano, vigorando no agir
do princípio (arché, em grego). Eis o
vigorar da Poética: provocar a auto-escuta
da fala das obras de arte e suas questões.
Manuel Antônio de Castro
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