29 julho 2015

Poética



A Poética de Aristóteles originalmente constituiu-se de anotações para discussão, em aula, do fenômeno poético. Receberam o título: Peri poietikes technes: O entre-vigorar do poético no técnico. São complexos os significados da palavra techne. Dois predominaram na cultura ocidental: traduzida para o latim como ars, originou a palavra arte, significando criação; derivou-se também a palavra técnica, significando o fazer crítico-racional e funcional. Isso originou uma dupla e tradicional concepção da Poética: É modelo e suas regras técnicas para criar obras de arte; refere-se ao fazer criativo, fundamentado no autor. Num e noutro caso, esqueceram-se as dimensões essenciais do seguinte questionamento: Como acontece no fenômeno poético a referência entre a experiência poética, a humana e o sentido real do mundo? É que hoje, como sempre, a Poética é a experiência originária e manifestadora da nossa condição humana. Esta implica, necessariamente: a conjuntura histórico-social, que levou Aristóteles a redigir tais notas; e a compreensão radical do que seja o humano de todo ser humano em seu realizar-se poético.

Só a partir das Escolas Helenísticas se criou, e a Modernidade aprofundou, uma dicotomia entre elas, inexistente na cultura grega. Basta examinar as tragédias e outras criações. Se tomarmos uma palavra decisiva e complexa como mundo, dará para compreender perfeitamente essa integração entre o humano e a pólis. Exemplificando: Se digo ‘fomos conversando cada vez menos, cada um preso em seus pensamentos’, distingue-se aí bem a integração do mundo pessoal e do mundo da convivência ou social, embora distintos também, porque há um trânsito claro entre a permanente conjuntura de convivência (pólis) e a dimensão humana da solidão. Nesse sentido, a Poética propõe um diálogo dialético com as obras, que diz respeito à conjuntura em que cada um sempre está lançado ontologicamente, isto é, no desafio de realizar-se e não de simplesmente tomar conhecimento de produtos culturais, que seriam as obras de arte, ou a sua atribuição crítico-criativa a algum autor. O desafio de realizar-se consiste em viver a Vida com sentido, isto é, dar um sentido a todas as nossas ações. A Vida, que nos foi doada para ser, precisa acontecer, pôr-se em obra no e pelo agir. Cada um é um próprio: possibilidades de e para possibilidades em obra.

O motivo de viver é o sentido de existir. Vigora sempre no mundo e como mundo de todo agir histórico-social-humano. Na sua referência à realidade, a Poética das obras de arte move-se no horizonte de uma clareira de onde lhe advém o sentido e força de realização: mundo. Pensar o sentido é pensar o poético de todo agir. Este implica sentido e realização, numa caminhada contínua de procuras e escolhas. Nela todos estamos implicados. Os gregos a pensavam na dobra poético-dialética do telos. Este tanto pode significar finalidade funcional quanto consumação. Nessa dobra, a experiência e o aprendizado da existência dizem respeito a nossas relações com os entes em sua funcionalidade. Já na referência da Essência do humano ao Ser, há uma experienciação e aprendizagem, nas quais cada um tem de decidir o sentido e a consumação do destino que recebeu para ser, escutando o apelo do Ser, que nos liberta essencialmente. O desconhecimento do poético das obras de arte leva a julgar que elas exemplificam modelos classificatórios: os Estilos de época ou os Gêneros. Como as obras de arte fazem parte de determinada cultura é engano achar que ela as determina. As produções culturais podem ser vistas em duas dimensões: aquelas que estão presas a determinada conjuntura; aquelas que, nascendo numa conjuntura, a manifesta como mundo e a ultrapassa. Exemplifiquemos. Cultural e historicamente, hoje, a tri-rema grega e a caravela portuguesa foram ultrapassadas pelo navio atômico, pois são dependentes de sua época. Já as tragédias gregas, continuam válidas, sendo encenadas, vistas e lidas até hoje. As obras de Beethoven são executadas, hoje, em todas as culturas ocidentais e orientais. No entanto, o compositor e sua obra pertenceram a uma época e cultura determinadas. E isso acontece com todas as obras de arte de todas as culturas e épocas. O que as obras de arte têm que as outras produções culturais não têm? Ambas não são produzidas pelos seres humanos? Mostrar o que as diferencia e as questões que as constituem é uma das tarefas da Poética. Pensemos. Uma das questões para apreender a obra de arte consiste no universal: abstrato, se predomina o funcional; concreto, se acontecem as questões. Por ser universal concreto, a obra de arte é a essência do social e da dialética: o diálogo das épocas. Ela, sendo o sentido concreto do humano de todos os seres humanos, exige a dialética do diálogo. Este só acontece onde se fazem presentes a identidade e as diferenças pessoais, históricas e culturais.

Poética originou-se do verbo grego poiein, que significa agir. Este diz todo passar do não-ser ao ser. Não se pode reduzir o agir (criar) ao fazer (produzir utensílios, objetos). Deve haver uma integração. A poiesis do poiein é o vigorar do poético. Ela é a energia de sentido que torna uma obra poética e não apenas funcional, útil. A obra de arte também é funcional em diferentes níveis, mas, vigorando na poiesis, não se esgota nele. Uma luminária que for uma obra de arte pode iluminar e ser poética. Porém, nem todo utensílio iluminante é necessariamente obra de arte, pois se restringe à função de iluminar, não manifestando sentido, verdade e mundo, próprio da obra de arte. Falta-lhe o vigor do poético. Neste exemplo, fica bem claro que o humano, que está referenciado ao agir, sempre inclui o funcional, mas não se esgota na funcionalidade. São variadas as funções das obras de arte, entre elas a político-ideológica, dependendo da sua manipulação. Contudo, são funções passíveis de ultrapassagem. Não se pode confundir função com poético. Este é uma questão do universal concreto. Um outro exemplo: os filmes. A maioria tem a função de distrair. Porém, esgotam-se nisso. São artísticos aqueles nos quais, além do distrair, também vigora a poiesis, a energia de sentido que manifesta a verdade e o mundo da realidade nas realizações do real. Como opera a poiesis na obra poética? Se a função se esgota no conceito, o poético faz-se presente nas questões, pois estas articulam o saber e não-saber, a verdade e não-verdade, o ser e não-ser. O poético, sendo poiesis, faz o pensar do Ser vigorar e possibilita ao ser humano tornar-se humano. Tal energia é o vigorar do silêncio no entre de amor e morte. O manto ilimitado do silêncio do vazio é a claridade do sentido da verdade e não-verdade que constitui o mundo humano, vigorando no agir do princípio (arché, em grego). Eis o vigorar da Poética: provocar a auto-escuta da fala das obras de arte e suas questões.


                                                      Manuel Antônio de Castro

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