O primeiro grande pensador da dialética foi Heráclito. E,
como pensador originário, será ele a referência obrigatória para toda a dialética
posterior e não, como se pensa, a dialética hegeliana. Partindo-se desta,
reduziu-se a dialética a método, fundamentado na verdade do lógico. Se tomamos o
método no significado lógico-matemático moderno, apriori que determina o
que é a verdade da realidade, a dialética não será método. Fundamentando-se
neste, o ser humano formulou uma teoria consubstanciada num sistema de
progressiva afirmação, negação e síntese, prevendo uma síntese final, pois
achou que poderia modelar a realidade pelo fazer. Sendo finitos como nos é
possível falar em espírito absoluto, seja
material, seja espiritual? Só conceitual
e logicamente a síntese é, segundo Hegel, aufheben:
negar, elevar, superar. Jamais há, no horizonte da finitude, síntese final,
porque, conforme afirma Rosa: “Tudo é e não é...” (1968, 12). Não se pode
pensar a negação sem a abertura para o vigorar do Nada criativo, de que fala Platão (to mè on), outro grande pensador da dialética. A dialética como
tríade a caminho do espírito absoluto fundamenta-se no lógico da verdade
lógica. Toda dialética é lógica, mas nenhuma lógica é dialética. Desde
Heráclito a grande questão da dialética é a verdade como aletheia,
enunciada na sentença 123: Physis kryptestai phylei: A realidade desvelante
apropria-se no velar-se. Neste
jogo dialético, a physis jamais pode fechar-se em qualquer sistema,
ontologicamente sempre aberta para novas realizações. Originariamente é isso
que diz método dialético, fundado na aletheia
da physis: Método é metá-hodos: o pôr-se a caminho da escuta
do Logos, conforme Heráclito nos propõe na sentença 50: Auscultando
não a mim, mas ao logos, é sábio concordar que tudo é um. O pôr-se a
caminho do Logos concretiza-se no diálogo das épocas. É como diálogo que a dialética
vigora no tempo e como sentido do tempo.
A palavra dialética origina-se do sufixo grego –ikos, e,
on (m/f/n), que forma adjetivos a partir de verbos, e do verbo dia-legein.
Tal sufixo indica o ser apto para o agir expresso pelo verbo. Dialeti-ké diz
a qualidade de ser apto para o diálogo. A gramática, fundamentada na proposição
discursiva da verdade lógica, define adjetivo
como a qualidade do sujeito. Antepondo-se um artigo o adjetivo se
substantiva. O substantivo nomeia o ente. Porém, o núcleo da proposição é o
verbo e não o substantivo-sujeito, daí o sufixo –ikos, e, on, referir-se
ao agir dos verbos. Contra o pensamento lógico-gramatical, nem tudo é redutível
a entes-substantivos. Isso é decisivo para compreendermos o que seja dialética.
Esta remete sempre para um pensar verbal. O substantivo-sujeito, sendo conceito
da proposição, esquece o acontecer da verdade dialética da realidade. Tal
acontecer é verbal, é questão. Disso
decorre que pensar a dialética é pensar o diálogo na dinâmica do questionar.
Não há dialética sem diálogo. A essência deste é a escuta do Logos. E a
dialética é o agir do diálogo, isto é, do tempo enquanto linguagem, verdade, sentido
e mundo. O diálogo não pode ser pensado desligado dessas questões essenciais. No
diálogo estará sempre presente a finitude dos dialogantes, pois cada um é e
não-é. Esse é o horizonte do humano. Ele acontecerá no pôr-se a caminho do que
já recebeu para ser e ainda não-é: suas possibilidades. Diálogo e dialética se
implicam mutuamente. Na dialética é o próprio destinar-se do ser que se doa e
acontece, sempre aberto e inesperado, segundo o próprio Heráclito: Se não se
espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de
acesso (Heráclito, 1991, frag. 18, 63).
Diálogo, compõe-se do prefixo diá- e do verbo legein.
O prefixo indica a conjuntura em que a ação verbal acontece, onde jamais haverá
separação entre a conjuntura e o acontecer da realidade (physis). Diá-
nos remete para o considerar de um e de outro lado,
expressando tensão ontológica de limite e não-limite, de ser e não-ser, sempre
num entre abismal e inesgotável. Já o verbo legein, em suas
derivações histórico-etimológicas, assinala a própria dinâmica da realidade, da
physis, dizendo: pôr, depor,
dispor, propor. Por isso legein pode significar: reunir, dizer,
enumerar, narrar, assentar-se, repousar. Trata-se no diálogo e na dialética
de um acolhimento das diferenças na identidade, que não só as aceita, mas
promove necessariamente a diferenciação. Eis a lei da dialética, na
concreticidade universal do diálogo. Para indicar a unidade e diferença de eu e
tu, para além de uma relação subjetiva ou objetiva, diálogo e dialética provêm
do verbo grego dialegein na voz média: dialegesthai. A voz
média difere da voz ativa. Naquela o sujeito é tanto agente quanto paciente, em
que a ação do verbo assinala um experienciar-se mútuo concreto. Isso é a
essência do social. No diálogo poético da dialética, cada um e todos estão
implicados em seu sentido de realização e libertação conjuntural e histórica. A
realização de cada um implica a realização de todos e a de todos a de cada um,
onde o horizonte do agir é o ser. Dialética é caminho de realização
histórica do próprio. Este é uma doação do ser: possibilidades de e para
possibilidades. Nessa caminhada, a dialética é o contínuo estar em crise,
depondo o realizado e abrindo-se para novas realizações. É isso que significa krinein/discernir,
diferenciar. Só podemos
diferenciar quando nos deixamos tomar pelo agir do Ser. A tal agir denomina-se
pensar. Criticar dialético é o operar poético
da verdade da realidade enquanto aletheia. Na verdade funda-se o
sentido, porque é o operar da linguagem, em grego, Logos. Este torna-se para
o ser humano o ethos, a morada do sentido e verdade do Ser. De ethos formou-se ética. Pensar e dialogar
é de-morar-se eticamente no sentido e verdade do Ser.
A expansão global da ciência ocidental desencadeou uma
crise ética global, que desintegra a verdade dominante na realidade. É o jogo
astuto da verdade (aletheia). Desintegra para integrar em novo nível o
humano em seu sentido, verdade, mundo. Toda negação gera uma afirmação que
reintegra em outro nível, num permanente acontecer dialético: um desafio
contínuo de agir, realizando o que é e não é, fundados no Nada criativo. Assumindo a crise, não podemos jamais querer
ressuscitar o que se petrificou em sistemas prontos, acabados. A dialética da
realidade é sempre inclusiva, aberta e inesperada. O real como realização da
realidade não pode caber em nenhum sistema. Onde há sistema não pode haver
dialética, tornando impossível qualquer dialética adjetivada, predicativa, seja
qual for: platônica, hegeliana, marxista etc. Deve vigorar o caminho libertador
do questionar, pois este joga a dialética em sua essência: o Logos como pensar do Ser. Questionar é
experienciar-se dialeticamente, onde os dialogantes se abrem para a escuta do
operar da linguagem: sentido e mundo da realidade acontecendo. A dialética é o
diálogo das épocas, onde o sentido do Ser é o tempo.
Manuel Antônio de Castro
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