25 julho 2015

Eros, humano e os humanimos



              Prof. Manuel Antônio de Castro

Introdução

  O que distingue o ser humano, em meio a todos os entes e fenômenos da natureza, é a ação de questionar. É a nossa essência. Já nos foi destinada como sendo aquilo que somos. Pensemos, questões não são, nem conceitos, nem teorias, nem visões de mundo. Questão é o a-ser-pensado. Por isso, não somos nós que podemos ou não ter as questões, são elas que nos têm e assediam. E tentando corresponder-lhes vivemos nosso percurso histórico, enquanto procura do seu sentido e realização, no sem limite das possibilidades de ser e não-ser, onde esse enigmático “e” (ou “entre”) é que constitui o propriamente humano. É a essência do humano que gera os diferentes humanismos, tentativas históricas de sua representação e realização. Em vista disso, pensamos que possa haver um trans-humanismo, mas não um trans-humano. A não ser que seja compreendido como travessia, o trans-verter-se na caminhada de realização do que se recebeu erótico-destinalmente para ser.

Ao perguntar perguntamos porque sabemos e não sabemos. Mas nenhuma resposta dá conta e anula a questão, porque toda resposta gera e gera-se no âmbito do conceito, enquanto exercício da verdade lógico-racional. O conceito e a verdade ficam, por isso, sempre dependentes da razão representacional, a epistemologia, e da estética, e não da realidade ou Ser. E é no cerne desta disputa, a do “entre” questão e conceito, que surgem as diferentes concepções do que seja o ser humano. Por isso, esta questão não é uma questão nova. É permanente, porque nela se dá a questão essencial da referência de Essência do ser humano e Ser. Tal referência se desdobra em três questões fundamentais na unidade de memória e verdade:

1ª. O que é o Ser?

2ª. O que é o ser humano?

3ª. O que é a linguagem?


  Todos os mitos, as religiões, as filosofias, a ciência, as artes, foram e são tentativas de se responder a essas três questões.  Todas elas “... não são apenas maneiras diferentes de se responder às mesmas perguntas e de se encaminharem os mesmos desafios. São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as respostas dadas; são modos diferentes de se encaminharem desafios criados pela experiência e preservados pela Linguagem” (Leão, 2007, 34). Mas tais questões e suas respostas partem sempre de algo que o pensador poeta Sófocles já formulou há 2.400 anos, quando diz:

Muitas são as coisas estranhas, nada, porém,

              Há de mais estranho do que o homem.

              ............................................................. (Antígona. Versos 332/333).


  O ser humano é um enigma, é o mais estranho do que é estranho, em meio a todos os fenômenos da realidade ou do Ser. E como nos advém esse mistério e as tentativas de resposta, formuladas e experienciadas ao longo da História? Se bem notarmos entre as questões “o que é o ser humano” e “o que é o Ser”, há uma mediação: a linguagem. Mas esta não pode ser algo que venha se acrescentar ao que seja o ser humano e ao que seja o Ser, e jamais lhe serem externas e estranhas. Em vista disso, jamais se pode reduzir aí linguagem a língua ou código. Perguntar então o que é a linguagem é compreendê-la na dobra das duas outras questões, num ininterrupto desdobrar-se. Uma vez que o questionar acontece no ser humano, isso só pode acontecer porque é a linguagem que constitui a sua essência. Essa essência que ele, necessariamente, recebe do Ser. Porém, o questionar, o que constitui a essência do humano, só é questionar no entre não-saber e pensar, na medida em que é e não-é. O ser humano é pensando. E pensando pode ser. Entre ser e pensar há uma dobra – o mesmo -, já nos disse o pensador Parmênides na sentença III, quando afirma: ... to gar auto noein te kai einai / ... pois o mesmo é pensar e ser (Parmênides, 1991, 45). Porém, tanto pensar quanto ser advêm ao sentido na medida em que se tornam linguagem. Por isso há uma sentença imemorial que nos diz o que seja o ser humano no horizonte da linguagem, afirmando: (Anthropos) dzoion logon echon. Como traduzi-la? Aqui começa o drama e a história dos humanismos, na sua tensão com o humano. Portanto, cada humanismo já é, historicamente, uma interpretação do que seja o humano, enquanto este é um Dzoion logon echon. O que essa sentença nos quer dizer? Nela se decide a essência da linguagem, jamais redutível a um código ou língua. Porém, antes de aprofundar essa questão, notemos que a linguagem não é apenas a mediação. Ela também se torna a manifestação do que seja a verdade na referência do ser humano ao Ser. Linguagem é verdade. Por ser a força de mediação, a linguagem será, ao mesmo tempo, histórica e temporal, pois é ela que não só manifesta o que seja a essência do ser humano, na sua referência ao Ser, mas também conserva essas manifestações enquanto memória que ela é. Portanto, tempo é memória, porque é o tempo enquanto linguagem e sentido do destinar-se da verdade do Ser. Se, de um lado, o ser humano é doação do Ser, pois Ser é tudo que é, por outro, o Ser não é, pois se fosse reduzir-se-ia ao ente, o sendo-ser. Nesse paradoxo nos advém a liminaridade do ser humano, experienciando-se no limite e não-limite, no saber e não-saber, na verdade e não-verdade, no ser e não-ser. Esse não-ser do ser humano não se reduz às possibilidades de um sistema de memória virtual ainda não efetivadas, porque o não-ser do ser humano tem como medida e possibilidade o Nada criativo, que é outra maneira de tentarmos dizer o que não pode ser dito, pois só cabe no vazio e no silêncio de toda fala ou discurso. Por isso é que a tradução linguística da sentença grega Dzoin logon echon, como: (Ser humano), aquele animal que fala ou discursa, não nos diz a essência do humano, mas o pressupõe, assim como a fala pressupõe o silêncio, sem o qual não há sentido, muito menos qualquer possibilidade de significado. É uma tradução fiel ao discurso, mas que não se abre para o pensar do Ser no horizonte da memória e, portanto, infiel ao sentido da linguagem do Ser.

Essencialmente, o ser humano experiencia-se sempre como ser do “entre”, é um “entre-ser”, um ek-sistente, um Dasein, diz o pensador Heidegger. Ele é um paradoxo inerente à própria temporalidade, tanto do Ser, quanto da linguagem. Dessa maneira, a sucessão de humanismos não é algo negativo, mas positivo, pois nos remete ao enigma que é o humano, horizonte no qual vigoram todos os humanismos. Sem essência do humano não há humanismos. E estes são a sua manifestação histórico-temporal. Dessa maneira, por ser o ser humano um entre-ser, se experienciará sempre na liminaridade da finitude, no entre-ser e não-ser dos limites e não-limites.

  Porém, tais humanismos já dizem da experienciação histórica da compreensão e tradução da sentença que diz o que seja o ser humano, em sua essência: Dzoion logon echon. É uma sentença de três palavras apenas, mas cada uma carregada de uma densidade que não cessa de originar diferentes interpretações históricas. E é o alcance da compreensão e tradução que irá, não só diferenciando os humanismos, mas também as épocas, porque época não é, essencialmente, uma questão cronológica. É uma questão temporal, na medida em que o tempo é a medida da linguagem e seu sentido.

A palavra portuguesa linguagem é uma tradução da palavra grega logos. Sem dúvida nenhuma, na sentença, a palavra decisiva é logos. No fundo, é uma palavra intraduzível. O grande pensador do logos foi Heráclito, por isso mesmo, apelidado de o obscuro. E hoje, em plena Globalização, onde novas versões do que seja o ser humano já começam a vigorar como trans-humanismo e ciborgue, ela continua a ser compreendida em novos horizontes e a nos questionar.

Seja como for, pensar o humano de todos os humanismos é pensar os limites e alcance do que nos diz a palavra logos. Ao longo da trajetória histórica do Ocidente são numerosas as suas traduções, com implicações, às vezes, contraditórias entre si. Num breve levantamento para o livro Convite ao pensar (cf. CASTRO, Manuel Antônio de e Outros, org., 2014), encontrei as seguintes traduções para logos: 1) Fundamento; 2) Unidade; 3) Razão; 4) Necessidade/Lei do mundo; 5) Lógica; 6) Linguagem; 7) Palavra/Verbo/Filho de Deus; 8) Língua/código; 9) Fala/discurso; 10) Signo/semântica 11) Coletividade. Em verdade, nenhuma pode se arvorar o direito de ser a única verdadeira, pois cada tradução tem muitas implicações e aspectos importantes, de acordo com a época de sua vigência e as questões que ela sempre convoca: o que seja Ser/realidade e ser humano. Essas questões como horizonte das traduções foram esquecidas. E cada tradução passa a bastar-se por si mesma, como se, absurdamente, se auto-originasse. Esquecido o sentido do Ser e sua verdade, a lógica (tradução 5) dicotomiza conhecer e Ser. A verdade é a verdade do discurso lógico, isto é, da proposição. Ficaram esquecidas a physis (o acontecer da totalidade dos fenômenos) e a aletheia (o dar-se e retrair-se da physis), pois a lógica somente fala do ser enquanto representação de um conhecimento, excluindo a dinâmica do seu acontecer, aquilo que não cabe na representação conceitual. Desde então, tudo que não for lógico será ilógico. Algo contraditório aconteceu: o logos dá origem à lógica. E esta passa a definir o que é o logos, reduzindo-o a discurso, fala e razão. No lugar da lógica do Logos, teremos desde então o logos da lógica. Esta distinção é importante para a interpretação dialética das obras de arte e de pensamento, em que acontece a compreensão do que seja a Essência do ser humano na sua referência ao Ser.

 Contudo, essas duas questões não podem, nem ser esquecidas, nem ser separadas, o que acontece desde que se instituíram as disciplinas e no lugar de questão e pensar só se fala de teorias/suportes, conhecimentos disciplinares e conceituais, numa palavra: ciência e sua verdade lógico-racional. Na verdade, o motivo é que passaram a predominar e vigorar quatro traduções, que se implicam mutuamente. E nelas temos, tanto o fundamento da Modernidade, quanto o surgimento, em nosso tempo, da Globalização. Mas acentue-se, todas as traduções se implicam, pois constituem doações de sentido do destinar-se da Verdade do Ser. As quatro traduções do logos, que hoje predominam e dominam, são: razão, língua/discurso, lógica e lei do mundo. Todas as disciplinas da ciência e linhas de pesquisa da linguística dependem destas traduções. Mas elas são parciais, o que não quer dizer que sejam falsas, como vamos ver. Todo advir do Ser ao pensar como conhecer é na medida em que tal manifestação é a manifestação do seu sentido, ou seja, da sua verdade. E esta é a essência da linguagem. O ser humano, sendo doação do Ser, é na medida da linguagem e sua verdade. Por isso, uma tradução da sentença Dzoion logo echon, que pensa, poderia ser (entre outras): (Ser humano): ser vivente de quem a linguagem cuida. Essa é a tradução fiel ao seu sentido e não apenas aos significados.

Mas outras são as dominantes, pois vivemos o império da ciência, baseada sobretudo numa delas, aquela que reduz o logos a razão. Não podemos esquecer que traduzir já é interpretar as questões para as quais as palavras remetem, na medida em que interpretar pensando, necessariamente, é a escuta do sentido do silêncio, da linguagem. Para interpretar é necessário pensar e deixar-se tomar pelo vigorar do sentido do Ser. Não bastam os conhecimentos apenas linguísticos, embora sejam importantes.

A sentença define o ser do homem como: Dzoion logon echon. A tradução latina, esquecendo o vigor do logos, diz: (Homo): animal rationale, ou seja, homem: animal racional. Uma outra tradução diz: (Homem) animal que fala ou discursa. As duas traduções só aparentemente são diferentes, pois a razão causal e científica determinará o que se entende por fala ou discurso. Nesse horizonte da tradução, já vivemos na ditadura da razão, como sendo a lógica ou verdade científica da realidade. Não podemos reduzir dzoion a “animal” e logon a “racional”. Dzoion é Vida. Contudo, os gregos tinham duas palavras diferentes para Vida: bios, o vivente; e dzoe, a Vida, que dá origem a todos os viventes. Nessas traduções linguísticas fica impensada a referência entre bios e dzoe. E aí se trans-via o sentido do humano.

A outra tradução do logos como lógica atropela o que funda a sentença  - o Ser -  e seu vigorar histórico de sentido, enquanto verdade. É o que explicamos no verbete Lógica do livro já citado: Convite ao pensar, pois a referência de Ser e Essência do homem sempre foi a grande questão. O homem não é um ente entre outros entes. O que o diferencia?  É um enigma.

Já sob influência dos sofistas (400 a.C.), iniciou-se em filosofia uma nova postura diante do princípio da physis/Ser. Priorizando o lugar do homem, o ser é esquecido e toma-se o homem como medida de todas as coisas (Protágoras), mas não será o homem racional e lógico, como acontecerá na Modernidade. E desde então, historicamente, o logos, como fundamento (outra tradução), terá três interpretações no percurso ocidental: 1ª. A helenística; 2ª. A cristã; 3ª. A moderna. A lógica surge com as Escolas Helenísticas, pois nem Platão nem Aristóteles reduziram seu pensar à lógica epistêmica. Neles há a tematização do lógico, sem a formalização de uma lógica, pois ainda não havia a diferença entre verdade (aletheia) do Ser e o conhecimento (episteme) do Ser. “A Lógica é a ciência das configurações fundamentais do raciocinar. A Lógica, enquanto ciência, brota da filosofia, como toda e qualquer ciência, mas precisamente nesta forma em que foi apresentada ela mesma já não é filosofia” (Heidegger, 2008: 43). Com a criação da lógica, como disciplina, pretendeu-se ensinar a raciocinar corretamente. Assim, a lógica se tornou a propedêutica metodológica para todas as ciências, fazendo-se presente em todos os ramos de conhecimento, porque desde então algo para ser verdadeiro terá de ser lógico, ou seja, científico. Será o império da lógica, como verdade única e excludente, que dará também origem a esta nossa época: a Globalização. Dessa maneira, todos os humanismos, por mais diferentes que queiram ser, fundamentam sua verdade na lógica. Nesta, há um círculo vicioso: o que é lógico é verdadeiro; o que é verdadeiro é real; e o que é real é lógico. Fora da lógica só existe o falso e ilógico ou irracional. Por isso chegamos a denominar nossos irmãos os animais como seres irracionais. E se denominam alguns impulsos do e no ser humano como instintos (isto é, não racionais, mas animais). Porém, diante das guerras sempre presentes com suas destruições, ódios, assassinatos, já deveria estar na hora de nos perguntarmos quem é irracional.

Se todas as épocas são fundadas na verdade da lógica, o que as diferencia? E o que diferencia a Globalização? Nesta, a lógica chega ao paroxismo de querer criar o ser humano, evidente, um ser humano lógico-orgânico. Toda a questão está em: a verdade se reduz à verdade da lógica? Ou seja, o próprio da essência do ser humano na sua referência ao Ser se reduz à lógica ou continua, como sempre, poética e ontologicamente, vigorando, como próprio na verdade da aletheia? Se isto for verdadeiro, o novo humanismo, o trans-humanismo e o cirborgue fundamentam um ser humano técnico, mas não ek-sistente, livre.  

A lógica continua a tradição sofística, que já desenvolvera a gramática como propedêutica para a verdadeira argumentação pelo conhecimento racional e discursivo da língua. Dentro dessa lógica, surgiu uma nova interpretação do logos: a judaico-cristã. Afirma: “No princípio era o logos”, pois Cristo, segundo o evangelho de São João, era o Filho de Deus: Criador das criaturas. Há uma dicotomia entre Criador e criatura, acentuada pelo pecado. Da junção deste novo fundamento com a lógica, surge a metafísica lógica e dicotômica. Mas o importante também a realçar é a nova noção que essa tradução incorpora: a ideia de criador. Um Deus criador é impensável para a cultura grega. O vigor de criação para ela estava no vigorar da própria physis, enquanto Eros. Pela ideia de criador incorpora-se na cultura ocidental a prerrogativa rácio-lógico-científica da possibilidade de intervenção na realidade, com a pretensão de determinar e poder criar o Ser. E como toda intervenção é feita em nome de uma mudança de mundo, para o melhorar e salvar, surge uma outra dimensão estranha à cultura grega também: a de salvação. Se bem observarmos e pensarmos, houve uma inversão: o fazer é que faz o ser, pois criar, nesse sentido metafísico judaico-cristão, é sempre fazer e intervir.  Essa ideia, restrita a um humanismo teológico, dominante em toda a Idade Média, com a Modernidade, transmuta-se para o humanismo antropológico. O humanismo moderno ou iluminista, apesar de sua propalada superação da Idade Média, naquilo que é essencial, nada muda. Mudam os atores para fazerem as mesmas coisas.  Do humanismo teológico passa-se para o antropológico, mas os fundamentos continuam os mesmos: verdade lógica, ideia de criador, fazer científico como poder de intervir e mudar a realidade, onde o fazer descarta o ser. O novo é que surgem sucessivamente sistemas salvadores e redentores, não só da realidade ou mundo humano, mas também do próprio ser humano, em seus limites de finitude. Ao paraíso celeste sucede o paraíso terrestre sócio-materialista. Não há mais lugar para aura e sagrado, vigora o profano e acontece a fuga dos deuses. E tudo isso acaba por fundamentar não só as atividades e conhecimentos científicos, mas também as teorias e suportes críticos das artes. Nestas, desde a Modernidade, o principal passa a ser o autor ou criador, pois é ele que dá aura/legitimidade às obras. Desde então, uma obra de arte não o é pelo Ser, mas pelo fazer de quem a faz: o artista, o ungido e inspirado pela Faculdade lógica da imaginação. Mas o que é a imaginação? E todas as obras de arte passam a ser estudadas e classificadas em função da “criatividade” dos autores, nas mais diferentes épocas e não pelo que são, enquanto manifestadoras de mundo, na sua tensão permanente com a Terra. Pois obra de arte é – segundo a estética racionalista – dar forma ao belo. Isso é epistemologia lógica e o não pensar o que é a obra de arte em seu operar. Obra de arte diz sempre o cuidar, na sua elaboração e término, do que a funda, o princípio (arché); de tal modo que na obra ele chegue a sua plena manifestação (telos) como princípio. Obra é, enfim, o fim como presença do princípio e seu vigorar. E isso é o humano ético-poético, ou seja, erótico. Mas isso, desde os sucessivos humanismos, foi esquecido, porque foi esquecido o sentido do destinar-se do Ser, advindo o domínio do profano e a fuga dos deuses. Em nossa época vivemos o paradoxo da oferta ilimitada dos bens e a indigência generalizada do bem. Porém, o ser humano, em sua integralidade, não é só constituído pelos bens, sejam materiais, sejam espirituais, porque o humano, na Essência do seu corpo, não é jamais uma dicotomia entre corpo e alma, material e espiritual, razão e emoção.


O corpo

O que é o corpo? O alcance do que seja o humano, os humanismos e até o trans-humano, já deriva fundamentalmente do que seja concebido como corpo. Mas o corpo é uma questão ou é redutível às correntes conceituações científicas ou religiosas? E como se concebe o corpo, quando se trata de linguagem e poesia? A própria concepção do lugar do corpo do ser humano no universo já depende do que se compreenda, tanto o que seja o corpo, quanto o que seja o universo.

Porém, neste ensaio, onde temos mais questões do que respostas, vamos tomar um caminho inusitado, até mesmo inesperado, ainda que possível, para pensar a essência do ser humano e seu corpo, que jamais podem se constituir numa dicotomia. Seja acentuado: vamos pensar e jamais querer doutrinar conceituando e deixando o pensamento ser dominado e tomado inteiramente pela lógica. Propomos, pelo contrário, uma abertura para o logos e seu mistério. Propomos o pensar do Ser, onde é este que age e conduz o pensamento para chegar a saber, pois pretende-se no pensar saber para ser.

Vamos partir de um mito. Mas não podemos compreender o que é mito no horizonte da lógica da razão. O mito sempre foi e é uma força histórica de manifestação do Ser enquanto acontecer. Ser é acontecer. E neste o seu dizer se diz como mito. Propomos, portanto, uma leitura e jamais a eliminação de novas possibilidades de leituras interpretativas, pois o que sempre subjaz e move todo mito, como força histórica do acontecer, é o questionar, noutras palavras: os mitos (questões) são narrações (ritos), em que imagens e personagens jamais têm a pretensão de representarem fatos e vidas. São imagens-questões e personagens-questões. Todo narrar se funda no logos, na medida em que sendo substantivo do verbo legein, este diz o enumerar e reunir diferenças, enquanto sentido do acontecer, na unidade e pela unidade da memória. Isso é o narrar do mito.

E propomos o mito de Eros como personagem-questão da essência do humano. Narra o mito:

Olimpo está em festa. Reunidos, os imortais banqueteiam-se em regozijo ao nascimento de Afrodite (Vênus), a bela deusa do amor. Pelas taças de ouro corre o néctar abundante, a estimular a expansão de despreocupada alegria. Os deuses riem. Terminado o festim, surge à porta uma figura andrajosa e esquálida. Pênia, a pobreza, vem mendigar os restos do banquete. Antes, porém, de esboçar qualquer movimento em direção à mesa, vislumbra a figura de Poros, o Recurso, filho da Prudência. De longe vê quando ele, embriagado pelo excesso de néctar, se afasta dos imortais e entra no jardim de Zeus (Júpiter). Ali se deita o jovem, e logo cai em pesado sono. Pobreza que vivia justamente à cata de recursos, toma nesse instante uma resolução: ter um filho de Poros. (...) Sem ruído, deita-se junto a Recurso. Abraça-o. Desperta-o. E concebe o filho desejado: Eros, o amor (Mitologia, 1973, 33).


Esta versão do mito de Eros baseia-se na narração de Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, presente no diálogo de Platão O banquete (203b – 204a). É importante compreender que o mito de Eros surge desde que os seres humanos foram tomados pela questão do divino, do sagrado, ou seja, desde que o ser humano é ser humano. Ingmar Bergman, assim expõe esta questão quando, no filme Confissões privadas, dirigido por Liv Ullmann, e roteiro dele, o personagem-questão bispo Jokob, respondendo a uma pergunta angustiada da sobrinha Anna, diz o que é Deus:

- Acredita em Deus, tio Jakob? Um Pai do Céu, um Deus do Amor? Um Deus com mãos, um coração e olhar vigilante?

- Não use a palavra "Deus". Diga "Santidade". Há santidade em todas as pessoas. Santidade humana. Todo o resto são atributos, disfarce, manifestação e truque. Não se pode decifrar ou capturar a santidade humana. Ao mesmo tempo... é algo que podemos pegar. Algo tangível que dura até a morte. O que acontece depois é escondido de nós. Apenas os poetas, músicos e santos... é que podem descrever aquilo que podemos apenas discernir: o inconcebível. Eles viram, conheceram, compreenderam... não totalmente, mas de modo fragmentado. Para mim é um conforto pensar na santidade humana (Ullmann).


  O divino é constitutivo da sua Essência. E falar de Eros é tematizar a dimensão divina de todo ser humano. Como princípio originário da Vida, ele é o agente fecundador, pois como força universal de atração justifica que os seres se desejem, procurem e unam, perpetuando o mistério da vida – o divino -, em linhas de descendência, ligando todos os imortais e mortais. Dessa maneira, Eros é indissociável, essencialmente, de Thanatos (morte) e, portanto, ligados a Ser e Tempo, em seu incessante acontecer. Como questão das questões, Eros provoca muitas interpretações ao longo da história humana. Assim, na Teogonia, de Hesíodo, Eros surge de dentro do Kaos primordial. Nesta linha de pensamento, Eros vai ser ligado à luz, como princípio vital de tudo, e à noite, como a falta de luz. Seja para o pensamento, seja para as artes, Eros sempre foi a grande questão, sendo a mais tematizada, interpretada e aprofundada. Por detrás do seu agir, como aquilo que o move, está sempre o Amor do amar. Dessa maneira, há uma certa impropriedade em se falar de Eros como algo substantivo, pois remete facilmente para a sua interpretação e compreensão como algo, como um ente. E não é isso Eros. Como essência do agir é total e completa energia de realização, é luz irradiante em contínuo acontecer. E isso já nos obriga a compreender o que é o corpo do ser humano, em toda a sua complexidade e densidade, muito além de um simples organismo e seu funcionamento. O ser humano, sendo essencialmente o agir de Eros, jamais pode ser reduzido a um corpo orgânico ou mecânico ou virtual.

  Mas para aprofundarmos a compreensão do que seja Eros, retomemos a narração do mito proposta por Platão, através da sacerdotisa de Mantineia. E já não deixa de ser emblemática a escolha dele, uma mulher, para nos expor o que seja a essência da fecundidade, pois ela mesma participa dessa fertilidade inesgotável, que acontece na mulher (e no homem, pois são complementares). O nascimento de Eros está associado, pelo mito, ao nascimento de Vênus, a deusa do amor e da beleza. Porém, sem dúvida nenhuma, os personagens-chave de Eros são também seus pais. É neles que concentraremos a nossa interpretação, pois se tornam caminhos de provocação para o pensar a essência do ser humano.

  A essência do ser humano, partindo do mito de Eros, pode ser apreendida refletindo sobre os três personagens-questões, em torno dos quais se constitui e narra o mito: Vênus, a deusa do Amor e da Beleza; Pênia, a pobreza, a indigência, a falta, a necessidade; e Poros, o Recurso. Podemos interpretar a presença de Vênus como a conjuntura e o horizonte em que acontece a concepção de Eros. Este, ontologicamente, estará ligado à beleza e ao amor. O que isto quer dizer, quando se trata de pensar o humano do ser humano? Para isso temos que nos voltar para seus pais: Poros e Pênia.

Poros, o recurso, é um deus que mora no Olimpo e é imortal. A ele nada falta, pois, como divino, já se move na plenitude. E é esta riqueza como possibilidades, como recursos, que ele irá doar a seu filho: Eros. Dessa maneira, este, como força de procriação, já contém em si a dimensão divina e imortal, sem limite e não-finita, que já traz em si a possibilidade infinita de plenitude. E, claro, a transmite a seus originados, como o pai a ele a transmitiu. Mas a transmitiu como possibilidade, como abertura, como um querer e poder disponível.  Eis a dimensão divina, presente no ser humano, na medida em que ele é originado pela energia e impulso ou libido de Eros.

  Já a mãe de Eros é Pênia, a pobreza, a indigência. Indigência de quê? Eis a questão originária para o ser humano em sua essência, pois, constitutivamente, também traz em si todas as dimensões da pobreza e indigência de ser, uma vez que é sendo ek-sistente e não o Ser. Assim o mito nos diz que o ser humano, nascido da vitalidade originária de Eros, é um ser do “entre”. Enquanto originado de Pênia, ele é mortal, regido pela necessidade. Então o “entre”, essência do ser humano, nos diz que ele é radicalmente ek-sistência, pois esta diz o “estar” (sistere) no limite e na necessidade, mas, ao mesmo tempo, ele também é ek-, isto é, vigente no não-limite, no aberto e livre das possibilidades de ser imortal e realizar a sua dimensão divina. Por esta, o ser humano é vocacionado essencialmente para a liberdade, fazendo de seu viver ek-sistindo uma caminhada de libertação. Neste horizonte, o que falta ao ser humano é e será sempre a liberdade, pois só esta o realiza na sua dimensão divina.

Mas pela ambígua origem de Eros e nossa nele, podemos falar de quatro libidos: libido sentiendi, sciendi, essendi e, reunindo-as no querer, a libido dominandi. Libido, palavra latina, diz originariamente o impulso vital, regido pelo desejo e pela pro-cura do prazer, da satisfação, da completude e realização. Não se pode aí reduzir “vital” a animal, reduzindo a libido a um instinto, próprio dos animais. Tal classificação já parte da interpretação do ser humano como “animal racional”, como já desenvolvemos. Não se pode ligar só a essa dimensão. O problema todo está em determiná-lo por ela. Seria reduzir o ser humano, tendo a origem em Eros, de onde provém certamente a libido, à libido sentiendi (impulso para o sentir). Sem dúvida nenhuma, de imediato, nos encontramos em um corpo-organismo. De um lado, Eros, gerado na indigência dos limites e destinado a morrer, necessita dos bens e prazeres, necessários para satisfazer a libido sentiendi, percebidos pelo seu corpo orgânico, no qual se manifestam a dor, o sofrimento, o desespero. Mas jamais podemos dizer que há uma sensação pura. Sem fronteiras delimitadoras precisas e exatas, nela já atua também a libido sciendi, pela qual a indigência e limites o fazem desejar conhecer os entes e os fenômenos, tudo que é, e também o que ele mesmo é, em sua constituição orgânica, psíquica e social, ultrapassando e redimensionando o meramente orgânico e genético, pois da indigência surgem também os sofrimentos psíquicos e sociais: o medo, a melancolia, a tristeza, a depressão, a apatia, o pânico e a ansiedade. Mas, sem dúvida, se não podemos falar em sensação pura, também, em se tratando do ser humano, é impossível ficar preso a uma razão pura. Por isso, melhor do que falar em instinto, seja melhor dimensioná-lo pelo mito de Cura, conjugando a sua origem, tanto em Eros, quanto em Cura, fazendo desta uma dimensão do próprio Eros, pois, em última instância, as libidos são sempre uma pro-cura, inerente ao próprio do ser humano, enquanto dimensionada por Eros. O mito de Cura é o mito latino para explicar o surgimento e criação do ser humano, que não é uma criação de um Deus, mas uma plasmação, obra, de Cura, ou seja, de Eros, entendido como aquilo que nos projeta na procura poética da realização em plenitude. Dessa maneira, vivemos permanentemente nossa vida à pro-cura, isto é, pro- para diante, para o não-limite e o livre ser. E cura, o cuidado de ser. É, dessa maneira, o atuar da libido essendi, origem da liberdade plena e do não ficar preso e limitado aos bens e prazeres da libido sentiendi. Sem os excluir, necessita também do bem e da beleza, do compreender-se (libido sciendi) uno e verdadeiro. Necessita, enfim, da plenitude, da paz do vazio, do sentido do silêncio, de ser sendo o Ser, sendo o sem-limites do prazer e do conhecer, enfim, do Nada. Pois fora do Nada haverá sempre o limite. Só assim vigorará no livre aberto do divino e do imortal, em que a morte encontra o seu sentido, pois a morte nada mais é do que a necessidade ontológica, a falta do Ser, do Nada. E é isso o que significa a libido essendi, o impulso erótico-vital de pro-cura do Ser, do divino, que já vigora em nossa essência originária.

Em essência, não há apenas essas três libidos. Há ainda, reunindo-as, a libido que é o próprio Eros: a libido dominandi. Esta engloba todos os desejos, que sempre se realizam na medida e alcance de toda representação. Mas só ela vai além do horizonte e dos limites de toda finitude e representação, porque é o querer poder do Ser, do Nada, fonte infinita de tudo que limita e não-limita, conhece e não-conhece, satisfaz e não-satisfaz, é e não-é.


A necessidade e o corpo

Toda indigência é necessidade. Então podemos perguntar: a- O que é indigência? b- Indigência de quê? Todo ente, enquanto ente, tem indigência de ser. Por isso, essencialmente, “o que se é” deve, necessariamente, desdobrar-se n“o como é”, num duplo sentido: o do ente que já é e quer ser, necessita, tem indigência de ser. Mas toda indigência do ente também é indigência do ser enquanto é ser do ente e do Ser enquanto é a diferença, não só de todo ente, mas também do Ser do ente, na medida em que o Ser não é, pois se fosse seria ente e não Ser. Isto, em termos de indigência, origina duas pro-curas: 1ª - aquela ao nível do ente enquanto “o como” do ente (libidos); 2ª - aquela ao nível do Ser, como o originário permanente e inesgotável de todo ente e do Ser: o não-ser (libido dominandi). A primeira diz respeito às diferentes pro-curas que se esgotam no nível das procuras nas relações mundi-entitativas. A segunda diz respeito à pro-cura da Cura, o Ser enquanto Nada: indigência e necessidade originária. A indigência e a procura é o assinalar da liberdade. Por isso, há a liberdade ao nível da vontade subjetiva e a liberdade essencial, ao nível do Ser/Nada, da Cura.

Que quer dizer "pobre"? Em que consiste a essência da pobreza? Que quer dizer "rico", se somente chegamos a ser ricos na pobreza e por ela? "Pobre" e "rico", no sentido habitual, concernem à posse, ao ter. A pobreza é um não-ter e, em verdade, um carecer do necessário. A riqueza é um não-carecer do que é necessário, um ter mais além do necessário. Porém, a essência da pobreza repousa em um Ser. Ser verdadeiramente pobre significa: ser de tal maneira que não carecemos de nada, exceto do necessário (Heidegger, 2006, 106).


Se ser-pobre quer dizer: não carecer de nada, exceto do necessário, então o que podemos compreender por necessário, nesse caso? Não carecer de mais nada do que do livre-que-liberta. Ou seja, o que não depende das necessidades a que o viver por viver nos conduz, nos obriga, eis a superação dos limites do humano. Se não houvesse o livre, jamais poderíamos falar e compreender o que é o pobre. Somente por sermos livres é que podemos ser pobres. Ser: o único necessário é a liberdade que liberta. Só o Ser liberta. E liberta sem coação, por isso é a lei da não-necessidade, porque libertando se torna o único necessário. Eis a essência da pobreza, enfim da necessidade.


O corpo e a razão

   A partir da filosofia de Descartes, o ser humano passou a ser concebido como constituído de res extensa e res cogitans. O que aí entender por res? É uma palavra latina que diz: coisa, ente/sendo, real. E o ser humano como ente-coisa passou a ser visto como sendo um corpo.  Porém, em seu pensar, Descartes concebeu o corpo do ser humano e todo o universo, como sendo uma máquina, com suas partes e peças, passível de se conhecer, desde que pesquisássemos as leis de seu funcionamento. O corpo passa a ser concebido como fundamento e fundado, causa e efeito, subjetivo e objetivo, agente e paciente. Conhecer as leis causais passou a ser o objetivo da ciência, constituindo as diferentes disciplinas. E mais: poder interferir também causalmente nesse funcionamento de maneira cada vez mais eficiente. Estava aberta a possibilidade de reduzir o corpo do ser humano a um organismo em funcionamento, segundo leis que podiam ser pesquisadas e conhecidas. Conhecê-las é poder intervir no corpo humano e em toda a máquina que é o universo. Tal conhecimento comparou-o com o de um relógio. Se o relógio mede o tempo, tudo pode ser medido e calculado. Dessa maneira o corpo foi concebido racionalmente a um organismo que pode ser conhecido em suas leis de funcionamento, podendo-se consertar e substituir algumas peças, as próteses mecânicas. Estavam abertas as portas para o ciborgue, os clones e para a intervenção no código genético, pela análise e conhecimento do genoma. Isto era possível, segundo Descartes, através da res cogitans, ou seja, o pensar que calcula. Daí traduzir-se logos como razão.

No percurso da Modernidade, ela acabou por se impor de uma maneira absoluta, resultando hoje na Globalização. É que a razão se bifurcou em duas tendências: pela primeira estabelece os princípios universais do funcionamento do corpo e dos corpos ou res extensa; pela outra, ela abre um princípio de intervenção, que se quer sem limite, na medida em que se torna invenção técnico-matemática, ou seja, apoiada numa memória de medidas que possibilita a representação da realidade numa base de cálculo digital, a partir da qual quase tudo se pode criar. O que não for passível de medida técnico-matemática é descartado. E há a tendência de esse modelo se impor de uma maneira absoluta. Conseguirá? Não, porque sempre há o apelo ontológico da liberdade, da ek-sistencia, sem modelos prévios submetidos ao cálculo técnico-matemático. É o apelo da liberdade, fundada no Ser, no Nada, sempre inesperada.

Dessa maneira, pode-se pensar o corpo como conceito ou como questão. E, então, tudo será diferente em relação ao corpo e em nossa relação com ele. Em nosso corpo, todas as filosofias, religiões e teorias científicas estão contidas, incorporadas. Mas quando deixamos o corpo ser, ele se tornará corpo-poesia e corpo-pensamento. O corpo como corpo, sem atributos, é sempre insólito, admirável, misterioso, mágico. Deixar o corpo ser corpo é pensar o corpo como questão.

A exigência moderna de se partir do ser humano impõe que se o pense e compreenda como entre-ser e este como corpo. Esse "corpo" se constitui e se figura no poder-ser de suas possibilidades, sendo, portanto, um projeto em contínuo acontecer. Como entre-ser o corpo é a Cura e as pro-curas, reunindo no em-si e no para-si, como abertura dada pela Cura, Mundo e Verdade. Corpo é mundo. A nossa condição "corporal" é ser-no-mundo, ser-com os outros e entre-ser. São dimensões poético-ontológicas do corpo. Tal realização se dá na medida em que o corpo se torna obra de arte, ou seja, o sentido do entre-ser no mundo, em diálogo. Toda obra de arte é um corpo se é obra de arte.

Em vista da divisão cartesiana da realidade, sob o domínio da razão pura, tornou-se, cientificamente, difícil hoje pensar o corpo na sua unidade e experienciá-lo  como um todo. A argumentação da consciência, determinando não só o ser, mas o próprio real/corpo, só é aceitável se admitirmos a dicotomia cartesiana. A partir dela, o corpo humano é entendido como organismo, funcionando numa combinação estrutural entre partes, dentro de uma lógica causal. Daí surgem, com base nessa lógica científica, diferentes concepções do corpo, melhor dizendo, do organismo, e não mais do ser-humano como entre-ser, como ek-sistencia: a) Ele é visto como produto de um código genético, mapeável em seu genoma e determinável operacionalmente em seu devir biológico; b) como entidade sócio-étnico-político, representado nos e pelos valores político-culturais; c) como matéria e forma, combinadas de diversas maneiras, alimentando e impulsionando a libido sentiendi, isto é, consumo generalizado de produtos estéticos, tendo como motivo o culto da beleza estética. Vênus, como a Beleza, tornou-se algo estético, adquirível nas lojas de Departamentos ou em Clínicas de Estética. Sem dúvida nenhuma, é uma festa onde não é possível gerar-se Eros. Por um lado, fica claro que não se compreende o corpo em sua corporeidade, em sua essência ek-sistencial, porque já não se pergunta pelo vigor que o corpo é. Por outro, o que é comum a todos estes encaminhamentos não-corporais de representação do corpo é a determinação racional da unidade material do ente (res). Mas há o corpo poético:

O corpo é uma contínua dança de diferenças, elos que se fazem e desfazem mediante a tensão que é viver morrendo. Desse modo, o corpo se alarga e se desprende da organicidade para se dispor como enleio poético de existência. A necessidade de se delimitar uma corporeidade orgânica se detém na limitação da pele enquanto fronteira do sensível, no entanto, o que não podemos deixar de considerar é que esta é apenas uma possibilidade de manifestação corporal que se conjunta com o que seja inapreensível no sentir do corpo. Afinal, como se mede o amor que fere o corpo? Como se mede a dor de uma ausência ou a felicidade de uma presença? (Pessanha, 2013, 50).


Nas muitas falas sobre o corpo, falta apreender o necessário: todo o poder do corpo e seu mistério, na medida em que se torna para cada ser humano uma descoberta, compreendida esta no jogo da dobra do discernir e da verdade/aletheia, gerando muitos aspectos a serem considerados.

   A descoberta do corpo começa bem cedo, passa por diversas fases e nunca termina, pois trata-se sempre de uma disputa entre vida e morte, Eros e Thanatos. Transformar tal descoberta numa caminhada, sem que se restrinja à sexualidade, ao corpo-organismo, diferente na mulher e no homem, é uma tarefa difícil para cada um. E ainda mais porque um sistema de ensino, dominado pela eficiência, tabus sexuais e religiosos, e uma sociedade de consumo do estético, em vez de facilitar, a obstrui. A descoberta do corpo é mais do que a descoberta da sexualidade, uma vez que se trata da descoberta de Eros. As concepções do corpo dominantes, ou são dicotômicas, ou são excludentes. Repensá-las é o primeiro passo para a sua superação. Esta não pode consistir em substituir verdades feitas por outras, supostamente mais verdadeiras. O que se faz necessário é pensar o necessário do humano, como horizonte de uma realização erótico-libertadora. E isso implica repensar o humano na sua dimensão, não apenas orgânico-discursiva, mas na ético-ontológica do seu sentido.


Eros e ética

Ética não se confunde jamais com moral. Essa confusão advém da incompreensão da questão em que vigora o dizer da sentença grega – Dzoion logon echon -, de que já tratamos antes. E ela não pode ficar isolada na compreensão essencial do que seja o ser humano, mas ser projetada no horizonte de Eros também, da qual é indissociável. Para não se reduzir este a uma dimensão meramente orgânico-sexual, é necessário sondar ainda mais profundamente a essência do ser humano, como estamos tentando fazê-lo. E de novo remetemos para o pensamento grego. Seu grande pensador Heráclito nos deu outra compreensão do ser humano, não excludente da outra, mas que traz novas dimensões. E isso numa densa sentença, que diz: Ethos anthropou daimon / A morada do homem, o extraordinário (Heráclito, 1991, frag. 119, 91). Em português, a palavra ética origina-se diretamente da palavra grega ethos. No entanto, apresentamos aí uma outra tradução: morada, para evitar a possível redução do ethos a uma moral. É claro que esta palavra morada aparece aí como uma palavra-imagem-questão. Morada diz o âmbito erótico do agir e realizar-se do ser humano. Tal agir erótico nos remete para, evidentemente, a libido essendi, o desejo erótico de ser, em tensão originária com a libido dominandi. Observemos logo que a palavra-imagem-questão morada ou casa, também, frequentemente, é usada para traduzir a palavra grega logos. O pensador da ek-sistencia como Eros, Heidegger, diz na Carta sobre o humanismo: “A linguagem é a casa do Ser” (Heidegger, 1967, 24). E a outra palavra da sentença também apresenta sérias dificuldades de entendimento: daimon. Podemos perfeitamente associá-la, como palavra-imagem-questão, a demônio. E este, certamente, a Eros. Pois ele se faz presente no ser humano como a energia da libido sciendi e libido dominandi.  Basta compreendermos aqui dominandi como o poder de querer poder. Isso é Eros. Isso é daimon. E isso é ethos. Por isso, o que diferencia essencialmente o ser humano, enquanto entre-ser ou ek-sistencia, é Eros, o Amor, que reúne e conjuga todas essas dimensões.

Mas fica ainda não claro como aquilo que, tradicional e moralmente, se associa à falta de moral, a atos imorais, agora defendemos como sendo o ético-erótico. É que não se pode reduzir o ser humano a conceitos lógico-científicos, como se fez na Modernidade, banalizado num produto do meio e da sociedade, ou, agora, na tendência a reduzi-lo a um produto da realidade virtual, onde sobra estética e falta o ético-poético. Ou cientificamente na defesa de uma cura de possíveis doenças orgânicas. Os produtos da realidade virtual, por mais perfeitos que sejam, jamais serão dotados de ek-sistencia. A razão moderna, fundamentada na dicotomia, perde a visão e concepção do todo e suas partes, pois toda parte é uma passagem para o todo, do qual jamais se pode dissociar, pois o todo é Eros. Por todo, não se entende, em hipótese alguma, um sistema que abranja todo o ser humano ou toda a realidade, impossível de acontecer, pois a realidade vigora desde sempre no não-limite e no inesperado, somente apreensível para quem tem olhos para ver o extraordinário e ouvidos para o silêncio. E essa difícil provocação nos advém também numa outra sentença de Heráclito: Ean me elpetai, enelpiston ouk ekseuresei, anekseneureton eon kai aporon / Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho nem vias de acesso (Heráclito. Pensadores originários. 1991, Frag. 18).

A atuação do inesperado, como ethos daimon, advém ao ser humano numa dimensão que o caracteriza essencialmente e também, normalmente, não é levada em conta. E pertence, necessariamente, a Eros: a memória.


Eros e a memória

Sendo entre-ser, ek-sistencia, vivemos no limite e não-limite, porque somos e não-somos, num contínuo acontecer erótico-temporal. Eros reúne as diferentes libidos, sem que estas a esgotem, pois é próprio da ek-sistencia experienciar-se numa contínua proximidade e distância do Ser, daí o estado constitutivamente humano da contínua pro-cura, gerando nele angústia e ansiedade. Há sempre a incompletude, pois, por mais próximo que sejamos do Ser, jamais poderemos chegar a ser o Ser, uma vez que somos, como finitos e limitados, sendo entes-verbais. Então toda proximidade será sempre já distância. E isto se estende ao jogo erótico-amoroso entre os amantes. É um jogo vigorando na medida do sem-medida, o que nos pode continuamente provocar o necessário desejo insaciável e, ao mesmo tempo, o único horizonte de realização, pela possibilidade sempre aberta e utópica de completude. E isso seria impossível se não fôssemos essencialmente memória. O que é memória? No fundo, continua sendo a mesma pergunta, tanto pelo que somos enquanto entre-ser, quanto pelo que somos enquanto Eros. Nesta colocação já nos afastamos completamente de uma memória cognoscitiva ou técnico-virtual apenas, mas, claro, sem excluí-las.

Segundo os dicionários correntes, memória é:

1º. Conservação de sensações;

2º. Reminiscência, lembrança, recordação;

3º. Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados, de reter ideias.


Os dicionários léxico-semânticos se baseiam na verdade lógica dos conceitos e não deixam o vigor das palavras serem o que são: manifestação da realidade em sua verdade. Só manifestando, a palavra é verdade e não mera representação conceitual, significantes e significados, não da realidade, mas sobre a realidade.

Memória em seu vigor de palavra remonta à mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes, pois ela é a mãe de todas as Musas. Toda mãe é mãe no vigorar de Eros. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o memorável, a vigência do erótico. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja, o tempo tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória. Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade enquanto diferença, ou seja, permanência e mudança.

Na memória comparecem os ancestrais – os participantes do genos -, não como algo que se reporta ao passado ou às origens. E é nesse sentido que sempre foram objeto de cultos, ritos da memória. Estes são o deixar-se envolver pela memória, é o deixar eclodir dentro de cada um as questões originárias, as questões da memória, porque a memória não foi nem jamais será a mera lembrança do que passou e de que alguém se lembra. A língua e linguagem gregas sempre experienciaram a memória como o cuidado da unidade. É isso o que diz o radical da palavra grega para memória ''mnemosine'', men. Ela é, por isso, a arché, isto é, o princípio imemorial, no qual e pelo qual se dá ''o que foi, é e será''. 

A questão da referência originária de tempo e memória se percebe bem na tensão presente/ausente. Como pode alguém estar ausente e presente, ao mesmo tempo, e igualmente presente e ausente? Ora, este reunir de ausente/presente e presente/ausente é o ''logos'', enquanto “casa do Ser”, na medida em que o ek-sistente – o ser humano – é o lugar da morada do extraordinário, o ethos. É o Ser se fazendo presença e ausência, proximidade e distância. É o entre-ser em que o homem se apropria do que lhe é próprio. O entre-ser é a vigência da memória no ser humano, pois tal vigência é o impulso erótico-poético do pensar. "A memória é a concentração do pensamento" (Heidegger, 2002, 111).

Sabe-se hoje que o ser humano co-participa, com os demais seres, de ecossistemas numa grande unidade cósmica. Mas eles não dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso, o ser humano tem sido estudado em relação a três grandes sistemas: o orgânico-vital, o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três sistemas: a memória, da qual se originam. Mas como ela perfaz e percorre os três, não se deixando esgotar, vai estar ligada ao Ser. Por isso, o código genético e seu conhecimento não alcançam toda a complexidade originária do que seja a memória, nem ela se reduz, seja a informações, seja a sistema de signos, seja a conhecimentos. Memória é mundo, e mais: é a vigência do Ser, pois nela se faz presente o erótico, enquanto ético e sentido poético de realização da vida. E estes jamais são acessíveis a experimentos técnicos, pois eles nada podem dizer do mundo de cada um e do sentido do silêncio e do vazio que os envolve. Disso decorre que o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento configurado numa moral. Aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto sentido do Ser. O Ser, enquanto sentido, é Eros. A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de aprendizagem incessante, fundado no sentido do Ser. A memória do Ser é o ético, o uno, o bom e o belo, ou seja, o poético-erótico.

Na vida humana e no curso da sua história operam muitas memórias: (a) uma memória individual [aquilo que constitui o próprio, o que foi doado a cada sendo], engramática, que grava conteúdos de percepções; (b) uma memória coletiva que aciona possibilidades comunitárias e convoca experiências de participação; (c) uma memória histórica, monumental, que celebra a continuidade das transformações e as consagra para o futuro (LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da memória. In: Revista ''Tempo Brasileiro'', 153: 143/147, abr.-jun., 2002).

Além dessas três memórias, há aquela que se torna o originário de todas elas: a memória fundada em Eros.

Ao lado da lembrança e da recordação, há o esquecimento, seja o positivo, seja o negativo. Estas duas facetas do esquecimento dizem respeito à memória, tanto como mecanismo de reprodução do lembrado – esquecimento negativo -, quanto ao irromper do novo pela deposição do passado passado – esquecimento positivo. É nessa face ambígua do esquecimento que se abre a possibilidade da memória inaugural de mundo, a memória ético-erótica. Nas três memórias dadas, que nos transmitem segurança, comparece a conjuntura como horizonte em que todos nós nos surpreendemos vivendo em múltiplas facetas. Mas a dinâmica da conjuntura só, de fato, se faz presente quando ela se vê projetada e renovada em novas dimensões pelo vigorar da memória ético-poética de Eros, do Ser.

Vida é unidade, que é tempo, que é o que normalmente denominamos memória. Seria impossível perguntar pela vida depois da morte se já não fôssemos memória.  Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória radica em tudo, porque a realidade é memória em sua pujança ético-poética-erótica. Em cada ente/sendo aí está a memória do universo. Em cada vivente aí está a memória que é a Vida. Morte e Vida não têm medida de grandeza nem valor quantitativo, não são passíveis de medida técnico-matemática, nem redutíveis a uma memória digital.

O sentido é a memória do Ser. Sentido é o caminho de todas as caminhadas de procura do único necessário: a unidade, sentido, verdade e memória do Ser, em relação ao passado como possibilidade de futuro. É que a unidade do tempo tripartido é a quarta dimensão do tempo: a linguagem (logos) ou mundo. É a unidade do “tudo um” (hen panta) de que nos convoca ao pensar da escuta a sentença 50 de Heráclito: Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um (1991, 71). A memória, enquanto sentido do Ser no enigma de Eros, é a unidade vigente em “o a-ser-pensado” na sentença 84 de Heráclito: Transformando-se, repousa (Ibidem, 81). Em se sendo Eros, advém a plenitude do repouso da ek-sistencia, do humano.


Bibliografia

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HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

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LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Permanência e atualidade do poético: logos, mythos, epos”. In: Revista Tempo Brasileiro, 171: 33/38, out.-dez., 2007.

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MITOLOGIA. São Paulo: Abril Cultural, v. I, 1973.


PARMÊNIDES. In: OS PENSADORES ORIGINÁRIOS – Anaximandro, Parmênides, Heráclito.  Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.


PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013.


SÓFOCLES. Antígona. Versos 332/333. In: HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.


ULLMANN, Liv. Filme: Confissões privadas (Direção), 1996. Roteiro de Ingmar Bergman.  

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