Prof.
Manuel Antônio de Castro
Introdução
O que distingue o ser humano, em meio a todos
os entes e fenômenos da natureza, é a ação de questionar. É a nossa essência. Já
nos foi destinada como sendo aquilo que somos. Pensemos, questões não são, nem
conceitos, nem teorias, nem visões de mundo. Questão é o a-ser-pensado. Por isso, não somos nós que podemos ou não ter as
questões, são elas que nos têm e assediam. E tentando
corresponder-lhes vivemos nosso percurso histórico, enquanto procura do seu
sentido e realização, no sem limite das possibilidades de ser e não-ser, onde
esse enigmático “e” (ou “entre”) é que constitui o propriamente humano. É a
essência do humano que gera os diferentes humanismos, tentativas históricas de
sua representação e realização. Em vista disso, pensamos que possa haver um
trans-humanismo, mas não um trans-humano. A não ser que seja compreendido como travessia, o trans-verter-se na caminhada de realização do que se recebeu
erótico-destinalmente para ser.
Ao perguntar perguntamos porque sabemos e não
sabemos. Mas nenhuma resposta dá conta e anula a questão, porque toda resposta
gera e gera-se no âmbito do conceito, enquanto exercício da verdade
lógico-racional. O conceito e a verdade ficam, por isso, sempre dependentes da
razão representacional, a epistemologia, e da estética, e não da realidade ou
Ser. E é no cerne desta disputa, a do “entre” questão e conceito, que surgem as
diferentes concepções do que seja o ser humano. Por isso, esta questão não é
uma questão nova. É permanente, porque nela se dá a questão essencial da
referência de Essência do ser humano e Ser. Tal referência se desdobra em três
questões fundamentais na unidade de memória e verdade:
1ª. O que é o Ser?
2ª. O que é o ser humano?
3ª. O que é a linguagem?
Todos os mitos, as religiões, as filosofias, a
ciência, as artes, foram e são tentativas de se responder a essas três
questões. Todas elas “... não são apenas
maneiras diferentes de se responder às mesmas perguntas e de se encaminharem os
mesmos desafios. São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as
respostas dadas; são modos diferentes de se encaminharem desafios criados pela
experiência e preservados pela Linguagem”
(Leão, 2007, 34). Mas tais questões e suas respostas partem sempre de algo
que o pensador poeta Sófocles já formulou há 2.400 anos, quando diz:
Muitas são as
coisas estranhas, nada, porém,
Há
de mais estranho do que o homem.
.............................................................
(Antígona. Versos 332/333).
O ser humano é um enigma, é o mais estranho do
que é estranho, em meio a todos os fenômenos da realidade ou do Ser. E como nos
advém esse mistério e as tentativas de resposta, formuladas e experienciadas ao
longo da História? Se bem notarmos entre as
questões “o que é o ser humano” e “o que é o Ser”, há uma mediação: a linguagem.
Mas esta não pode ser algo que venha se acrescentar ao que seja o ser humano e
ao que seja o Ser, e jamais lhe serem externas e estranhas. Em vista disso,
jamais se pode reduzir aí linguagem a língua ou código. Perguntar então o que é
a linguagem é compreendê-la na dobra das duas outras questões, num ininterrupto
desdobrar-se. Uma vez que o questionar acontece no ser humano, isso só pode
acontecer porque é a linguagem que constitui a sua essência. Essa essência que
ele, necessariamente, recebe do Ser. Porém, o questionar, o que constitui a
essência do humano, só é questionar no entre
não-saber e pensar, na medida em que é e não-é. O ser humano é pensando. E pensando
pode ser. Entre ser e pensar há uma dobra – o mesmo -, já nos disse o pensador Parmênides na sentença III, quando
afirma: ... to gar auto noein te kai
einai / ... pois o mesmo é pensar e
ser (Parmênides, 1991, 45). Porém, tanto pensar quanto ser advêm ao sentido
na medida em que se tornam linguagem. Por isso há uma sentença imemorial que
nos diz o que seja o ser humano no horizonte da linguagem, afirmando: (Anthropos) dzoion logon echon. Como
traduzi-la? Aqui começa o drama e a história dos humanismos, na sua tensão com
o humano. Portanto, cada humanismo já é, historicamente, uma interpretação do
que seja o humano, enquanto este é um Dzoion
logon echon. O que essa sentença nos quer dizer? Nela se decide a essência
da linguagem, jamais redutível a um código ou língua. Porém, antes de
aprofundar essa questão, notemos que a linguagem não é apenas a mediação. Ela também se torna a
manifestação do que seja a verdade na referência do ser humano ao Ser.
Linguagem é verdade. Por ser a força de mediação, a linguagem será, ao mesmo
tempo, histórica e temporal, pois é ela que não só manifesta o que seja a
essência do ser humano, na sua referência ao Ser, mas também conserva essas
manifestações enquanto memória que ela é. Portanto, tempo é memória, porque é o
tempo enquanto linguagem e sentido do destinar-se da verdade do Ser. Se, de um
lado, o ser humano é doação do Ser, pois Ser é tudo que é, por outro, o Ser não
é, pois se fosse reduzir-se-ia ao ente, o sendo-ser. Nesse paradoxo nos advém a
liminaridade do ser humano, experienciando-se no limite e não-limite, no saber
e não-saber, na verdade e não-verdade, no ser e não-ser. Esse não-ser do ser
humano não se reduz às possibilidades de um sistema de memória virtual ainda
não efetivadas, porque o não-ser do ser humano tem como medida e possibilidade
o Nada criativo, que é outra maneira
de tentarmos dizer o que não pode ser dito, pois só cabe no vazio e no silêncio
de toda fala ou discurso. Por isso é que a tradução linguística da sentença
grega Dzoin logon echon, como: (Ser humano), aquele animal que fala ou discursa, não nos diz a essência do
humano, mas o pressupõe, assim como a fala pressupõe o silêncio, sem o qual não
há sentido, muito menos qualquer possibilidade de significado. É uma tradução
fiel ao discurso, mas que não se abre para o pensar do Ser no horizonte da
memória e, portanto, infiel ao sentido da linguagem do Ser.
Essencialmente, o ser humano experiencia-se sempre
como ser do “entre”, é um “entre-ser”, um ek-sistente,
um Dasein, diz o pensador
Heidegger. Ele é um paradoxo inerente à própria temporalidade, tanto do Ser,
quanto da linguagem. Dessa maneira, a sucessão de humanismos não é algo
negativo, mas positivo, pois nos remete ao enigma que é o humano, horizonte no
qual vigoram todos os humanismos. Sem essência do humano não há humanismos. E
estes são a sua manifestação histórico-temporal. Dessa maneira, por ser o ser
humano um entre-ser, se experienciará sempre na liminaridade da finitude, no
entre-ser e não-ser dos limites e não-limites.
Porém, tais humanismos já dizem da
experienciação histórica da compreensão e tradução da sentença que diz o que
seja o ser humano, em sua essência: Dzoion
logon echon. É uma sentença de três palavras apenas, mas cada uma carregada
de uma densidade que não cessa de originar diferentes interpretações históricas.
E é o alcance da compreensão e tradução que irá, não só diferenciando os
humanismos, mas também as épocas, porque época não é, essencialmente, uma
questão cronológica. É uma questão temporal, na medida em que o tempo é a
medida da linguagem e seu sentido.
A palavra portuguesa linguagem é uma tradução da
palavra grega logos. Sem dúvida
nenhuma, na sentença, a palavra decisiva é logos.
No fundo, é uma palavra intraduzível. O grande pensador do logos foi Heráclito, por isso mesmo,
apelidado de o obscuro. E hoje, em
plena Globalização, onde novas versões do que seja o ser humano já começam a
vigorar como trans-humanismo e ciborgue, ela continua a ser compreendida em
novos horizontes e a nos questionar.
Seja como for, pensar o humano de todos os humanismos é pensar os limites
e alcance do que nos diz a palavra logos.
Ao longo da trajetória histórica do Ocidente são numerosas as suas
traduções, com implicações, às vezes, contraditórias entre si. Num breve
levantamento para o livro Convite ao
pensar (cf. CASTRO, Manuel Antônio de e Outros, org., 2014), encontrei as
seguintes traduções para logos: 1) Fundamento; 2) Unidade; 3) Razão; 4) Necessidade/Lei do
mundo; 5) Lógica; 6) Linguagem; 7) Palavra/Verbo/Filho de Deus; 8)
Língua/código; 9) Fala/discurso; 10) Signo/semântica 11) Coletividade. Em
verdade, nenhuma pode se arvorar o direito de ser a única verdadeira, pois cada
tradução tem muitas implicações e aspectos importantes, de acordo com a época
de sua vigência e as questões que ela sempre convoca: o que seja Ser/realidade
e ser humano. Essas questões como horizonte das traduções foram esquecidas. E
cada tradução passa a bastar-se por si mesma, como se, absurdamente, se
auto-originasse. Esquecido o sentido do Ser e sua verdade, a lógica (tradução
5) dicotomiza conhecer e Ser. A verdade é a verdade do discurso lógico, isto é,
da proposição. Ficaram esquecidas a physis (o acontecer da totalidade dos fenômenos) e a aletheia
(o dar-se e retrair-se da physis),
pois a lógica somente fala do ser enquanto representação de um
conhecimento, excluindo a dinâmica do seu acontecer, aquilo que não cabe na
representação conceitual. Desde então, tudo que não for lógico será
ilógico. Algo contraditório aconteceu: o logos dá origem à lógica. E
esta passa a definir o que é o logos, reduzindo-o a discurso, fala e
razão. No lugar da lógica do Logos, teremos desde então o logos da
lógica. Esta distinção é importante para a interpretação dialética das obras de
arte e de pensamento, em que acontece a compreensão do que seja a Essência do
ser humano na sua referência ao Ser.
Contudo,
essas duas questões não podem, nem ser esquecidas, nem ser separadas, o que
acontece desde que se instituíram as disciplinas e no lugar de questão e
pensar só se fala de teorias/suportes, conhecimentos disciplinares e
conceituais, numa palavra: ciência e sua verdade lógico-racional. Na
verdade, o motivo é que passaram a predominar e vigorar quatro traduções, que
se implicam mutuamente. E nelas temos, tanto o fundamento da Modernidade,
quanto o surgimento, em nosso tempo, da Globalização. Mas acentue-se, todas as
traduções se implicam, pois constituem doações de sentido do destinar-se da
Verdade do Ser. As quatro traduções do logos,
que hoje predominam e dominam, são: razão,
língua/discurso, lógica e lei do
mundo. Todas as disciplinas da ciência e linhas de pesquisa da linguística
dependem destas traduções. Mas elas são parciais, o que não quer dizer que
sejam falsas, como vamos ver. Todo advir do Ser ao pensar como conhecer é na
medida em que tal manifestação é a manifestação do seu sentido, ou seja, da sua
verdade. E esta é a essência da linguagem. O ser humano, sendo doação do Ser, é
na medida da linguagem e sua verdade. Por isso, uma tradução da sentença Dzoion logo echon, que pensa, poderia ser (entre outras): (Ser humano): ser vivente de quem a linguagem cuida. Essa é a tradução fiel ao
seu sentido e não apenas aos significados.
Mas outras são as dominantes, pois vivemos o
império da ciência, baseada sobretudo numa delas, aquela que reduz o logos a razão. Não podemos esquecer que traduzir já é interpretar as
questões para as quais as palavras remetem, na medida em que interpretar
pensando, necessariamente, é a escuta do sentido do silêncio, da linguagem.
Para interpretar é necessário pensar e deixar-se tomar pelo vigorar do sentido do
Ser. Não bastam os conhecimentos apenas linguísticos, embora sejam importantes.
A sentença define o ser do homem como: Dzoion
logon echon. A tradução latina, esquecendo o vigor do logos, diz: (Homo): animal
rationale, ou seja, homem: animal
racional. Uma outra tradução diz: (Homem) animal que fala ou discursa. As duas traduções
só aparentemente são diferentes, pois a razão causal e científica determinará o
que se entende por fala ou discurso. Nesse horizonte da tradução,
já vivemos na ditadura da razão, como sendo a lógica ou verdade científica da realidade. Não podemos reduzir dzoion
a “animal” e logon
a “racional”. Dzoion é
Vida. Contudo, os gregos tinham duas palavras diferentes para Vida: bios, o vivente; e dzoe, a Vida, que dá origem a todos os viventes. Nessas traduções
linguísticas fica impensada a referência entre bios e dzoe. E aí se
trans-via o sentido do humano.
A outra
tradução do logos como lógica atropela o que funda a
sentença - o Ser - e seu vigorar histórico de sentido, enquanto
verdade. É o que explicamos no verbete Lógica
do livro já citado: Convite ao
pensar, pois a referência de Ser e Essência do homem sempre foi a grande
questão. O homem não é um ente entre outros entes. O que o diferencia? É
um enigma.
Já sob influência dos sofistas (400 a.C.),
iniciou-se em filosofia uma nova postura diante do princípio da physis/Ser.
Priorizando o lugar do homem, o ser é esquecido e toma-se o homem como medida
de todas as coisas (Protágoras), mas não será o homem racional e lógico, como
acontecerá na Modernidade. E desde então, historicamente, o logos, como fundamento (outra tradução), terá três
interpretações no percurso ocidental: 1ª. A helenística; 2ª. A cristã; 3ª. A
moderna. A lógica surge com as Escolas Helenísticas, pois nem Platão nem Aristóteles
reduziram seu pensar à lógica epistêmica. Neles há a tematização do lógico, sem a formalização de uma lógica,
pois ainda não havia a diferença entre verdade (aletheia) do Ser e o conhecimento (episteme) do Ser. “A
Lógica é a ciência das configurações fundamentais do raciocinar. A Lógica,
enquanto ciência, brota da filosofia, como toda e qualquer ciência, mas
precisamente nesta forma em que foi apresentada ela mesma já não é filosofia”
(Heidegger, 2008: 43). Com a criação da lógica, como disciplina, pretendeu-se
ensinar a raciocinar corretamente. Assim, a lógica se tornou a propedêutica metodológica para todas as ciências,
fazendo-se presente em todos os ramos de conhecimento, porque desde então algo
para ser verdadeiro terá de ser lógico, ou seja, científico. Será o império da
lógica, como verdade única e excludente, que dará também origem a esta nossa
época: a Globalização. Dessa maneira, todos os humanismos, por mais diferentes
que queiram ser, fundamentam sua verdade na lógica. Nesta, há um círculo
vicioso: o que é lógico é verdadeiro; o que é verdadeiro é real; e o que é real
é lógico. Fora da lógica só existe o falso e ilógico ou irracional. Por isso
chegamos a denominar nossos irmãos os animais como seres irracionais. E se
denominam alguns impulsos do e no ser humano como instintos (isto é, não racionais, mas animais). Porém, diante das guerras sempre presentes com suas destruições,
ódios, assassinatos, já deveria estar na hora de nos perguntarmos quem é
irracional.
Se todas as épocas são fundadas na verdade da
lógica, o que as diferencia? E o que diferencia a Globalização? Nesta, a lógica
chega ao paroxismo de querer criar o ser humano, evidente, um ser humano lógico-orgânico.
Toda a questão está em: a verdade se reduz à verdade da lógica? Ou seja, o
próprio da essência do ser humano na sua referência ao Ser se reduz à lógica ou
continua, como sempre, poética e ontologicamente, vigorando, como próprio na
verdade da aletheia? Se isto for
verdadeiro, o novo humanismo, o trans-humanismo
e o cirborgue fundamentam um ser
humano técnico, mas não ek-sistente,
livre.
A lógica continua a tradição sofística, que já
desenvolvera a gramática como propedêutica para a verdadeira argumentação pelo
conhecimento racional e discursivo da língua. Dentro dessa lógica, surgiu uma
nova interpretação do logos: a judaico-cristã. Afirma: “No princípio era
o logos”, pois Cristo, segundo
o evangelho de São João, era o Filho de Deus: Criador das
criaturas. Há uma dicotomia entre Criador e criatura, acentuada pelo pecado. Da
junção deste novo fundamento com a lógica, surge a metafísica lógica e
dicotômica. Mas o importante também a realçar é a nova noção que essa tradução
incorpora: a ideia de criador. Um Deus criador é impensável para a cultura
grega. O vigor de criação para ela estava no vigorar da própria physis, enquanto Eros. Pela ideia de criador incorpora-se na cultura ocidental a
prerrogativa rácio-lógico-científica da possibilidade de intervenção na
realidade, com a pretensão de determinar e poder criar o Ser. E como toda
intervenção é feita em nome de uma mudança de mundo, para o melhorar e salvar, surge
uma outra dimensão estranha à cultura grega também: a de salvação. Se bem
observarmos e pensarmos, houve uma inversão: o fazer é que faz o ser, pois
criar, nesse sentido metafísico judaico-cristão, é sempre fazer e intervir. Essa ideia, restrita a um humanismo teológico,
dominante em toda a Idade Média, com a Modernidade, transmuta-se para o
humanismo antropológico. O humanismo moderno ou iluminista, apesar de sua
propalada superação da Idade Média, naquilo que é essencial, nada muda. Mudam
os atores para fazerem as mesmas coisas. Do humanismo teológico passa-se para o
antropológico, mas os fundamentos continuam os mesmos: verdade lógica, ideia de
criador, fazer científico como poder de intervir e mudar a realidade, onde o
fazer descarta o ser. O novo é que surgem sucessivamente sistemas salvadores e
redentores, não só da realidade ou mundo humano, mas também do próprio ser
humano, em seus limites de finitude. Ao paraíso celeste sucede o paraíso
terrestre sócio-materialista. Não há mais lugar para aura e sagrado, vigora o
profano e acontece a fuga dos deuses. E tudo isso acaba por fundamentar não só
as atividades e conhecimentos científicos, mas também as teorias e suportes
críticos das artes. Nestas, desde a Modernidade, o principal passa a ser o
autor ou criador, pois é ele que dá aura/legitimidade às obras. Desde então,
uma obra de arte não o é pelo Ser, mas pelo fazer de quem a faz: o artista, o
ungido e inspirado pela Faculdade lógica da imaginação. Mas o que é a
imaginação? E todas as obras de arte passam a ser estudadas e classificadas em
função da “criatividade” dos autores, nas mais diferentes épocas e não pelo que
são, enquanto manifestadoras de mundo, na sua tensão permanente com a Terra.
Pois obra de arte é – segundo a estética racionalista – dar forma ao belo. Isso
é epistemologia lógica e o não pensar o que é a obra de arte em seu operar.
Obra de arte diz sempre o cuidar, na sua elaboração e término, do que a funda,
o princípio (arché); de tal modo que
na obra ele chegue a sua plena manifestação (telos) como princípio. Obra é, enfim, o fim como presença do
princípio e seu vigorar. E isso é o humano ético-poético, ou seja, erótico. Mas
isso, desde os sucessivos humanismos, foi esquecido, porque foi esquecido o
sentido do destinar-se do Ser, advindo o domínio do profano e a fuga dos
deuses. Em nossa época vivemos o paradoxo da oferta ilimitada dos bens e a indigência generalizada do bem. Porém, o ser humano, em sua
integralidade, não é só constituído pelos bens, sejam materiais, sejam
espirituais, porque o humano, na Essência do seu corpo, não é jamais uma dicotomia
entre corpo e alma, material e espiritual, razão e emoção.
O corpo
O que é o corpo? O alcance do que seja o
humano, os humanismos e até o trans-humano, já deriva fundamentalmente do que
seja concebido como corpo. Mas o corpo é uma questão ou é redutível às
correntes conceituações científicas ou religiosas? E como se concebe o corpo,
quando se trata de linguagem e poesia? A própria concepção do lugar do corpo do
ser humano no universo já depende do que se compreenda, tanto o que seja o
corpo, quanto o que seja o universo.
Porém, neste ensaio, onde temos mais questões
do que respostas, vamos tomar um caminho inusitado, até mesmo inesperado, ainda
que possível, para pensar a essência do ser humano e seu corpo, que jamais
podem se constituir numa dicotomia. Seja acentuado: vamos pensar e jamais
querer doutrinar conceituando e deixando o pensamento ser dominado e tomado
inteiramente pela lógica. Propomos, pelo contrário, uma abertura para o logos e seu mistério. Propomos o pensar
do Ser, onde é este que age e conduz o pensamento para chegar a saber, pois pretende-se
no pensar saber para ser.
Vamos partir de um mito. Mas não podemos
compreender o que é mito no horizonte da lógica da razão. O mito sempre foi e é
uma força histórica de manifestação do Ser enquanto acontecer. Ser é acontecer.
E neste o seu dizer se diz como mito. Propomos, portanto, uma leitura e jamais
a eliminação de novas possibilidades de leituras interpretativas, pois o que
sempre subjaz e move todo mito, como força histórica do acontecer, é o
questionar, noutras palavras: os mitos (questões) são narrações (ritos), em que
imagens e personagens jamais têm a pretensão de representarem fatos e vidas.
São imagens-questões e personagens-questões. Todo narrar se funda no logos, na medida em que sendo
substantivo do verbo legein, este diz
o enumerar e reunir diferenças, enquanto sentido do acontecer, na unidade e
pela unidade da memória. Isso é o narrar do mito.
E propomos o mito de Eros como personagem-questão da essência do humano. Narra o mito:
Olimpo está em festa. Reunidos, os imortais banqueteiam-se em regozijo
ao nascimento de Afrodite (Vênus), a bela deusa do amor. Pelas taças de ouro
corre o néctar abundante, a estimular a expansão de despreocupada alegria. Os
deuses riem. Terminado o festim, surge à porta uma figura andrajosa e
esquálida. Pênia, a pobreza, vem mendigar os restos do banquete. Antes, porém,
de esboçar qualquer movimento em direção à mesa, vislumbra a figura de Poros, o
Recurso, filho da Prudência. De longe vê quando ele, embriagado pelo excesso de
néctar, se afasta dos imortais e entra no jardim de Zeus (Júpiter). Ali se
deita o jovem, e logo cai em pesado sono. Pobreza que vivia justamente à cata
de recursos, toma nesse instante uma resolução: ter um filho de Poros. (...) Sem
ruído, deita-se junto a Recurso. Abraça-o. Desperta-o. E concebe o filho
desejado: Eros, o amor (Mitologia,
1973, 33).
Esta
versão do mito de Eros baseia-se na
narração de Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, presente no diálogo de Platão O banquete (203b – 204a). É importante
compreender que o mito de Eros surge
desde que os seres humanos foram tomados pela questão do divino, do sagrado, ou
seja, desde que o ser humano é ser humano. Ingmar Bergman, assim expõe esta
questão quando, no filme Confissões
privadas, dirigido por Liv Ullmann, e roteiro dele, o personagem-questão
bispo Jokob, respondendo a uma pergunta angustiada da sobrinha Anna, diz o que
é Deus:
- Acredita em Deus, tio Jakob? Um Pai do Céu, um Deus do Amor? Um Deus
com mãos, um coração e olhar vigilante?
- Não use a palavra "Deus". Diga "Santidade". Há
santidade em todas as pessoas. Santidade humana. Todo o resto são atributos,
disfarce, manifestação e truque. Não se pode decifrar ou capturar a santidade
humana. Ao mesmo tempo... é algo que podemos pegar. Algo tangível que dura até
a morte. O que acontece depois é escondido de nós. Apenas os poetas, músicos e
santos... é que podem descrever aquilo que podemos apenas discernir: o
inconcebível. Eles viram, conheceram, compreenderam... não totalmente, mas de
modo fragmentado. Para mim é um conforto pensar na santidade humana (Ullmann).
O
divino é constitutivo da sua Essência. E falar de Eros é tematizar a dimensão divina de todo ser humano. Como
princípio originário da Vida, ele é o agente fecundador, pois como força
universal de atração justifica que os seres se desejem, procurem e unam,
perpetuando o mistério da vida – o divino -, em linhas de descendência, ligando
todos os imortais e mortais. Dessa maneira, Eros
é indissociável, essencialmente, de Thanatos
(morte) e, portanto, ligados a Ser e Tempo, em seu incessante acontecer. Como
questão das questões, Eros provoca
muitas interpretações ao longo da história humana. Assim, na Teogonia, de Hesíodo, Eros surge de dentro do Kaos primordial. Nesta linha de
pensamento, Eros vai ser ligado à luz, como princípio vital de tudo, e à noite, como a falta de luz. Seja para o pensamento, seja para
as artes, Eros sempre foi a grande
questão, sendo a mais tematizada, interpretada e aprofundada. Por detrás do seu
agir, como aquilo que o move, está sempre o Amor
do amar. Dessa maneira, há uma
certa impropriedade em se falar de Eros como
algo substantivo, pois remete facilmente para a sua interpretação e compreensão
como algo, como um ente. E não é isso Eros.
Como essência do agir é total e completa energia de realização, é luz
irradiante em contínuo acontecer. E isso já nos obriga a compreender o que é o
corpo do ser humano, em toda a sua complexidade e densidade, muito além de um
simples organismo e seu funcionamento. O ser humano, sendo essencialmente o
agir de Eros, jamais pode ser
reduzido a um corpo orgânico ou mecânico ou virtual.
Mas para aprofundarmos a compreensão do que
seja Eros, retomemos a narração do
mito proposta por Platão, através da sacerdotisa de Mantineia. E já não deixa
de ser emblemática a escolha dele, uma mulher, para nos expor o que seja a
essência da fecundidade, pois ela mesma participa dessa fertilidade inesgotável,
que acontece na mulher (e no homem, pois são complementares). O nascimento de Eros está associado, pelo mito, ao
nascimento de Vênus, a deusa do amor e da beleza. Porém, sem dúvida nenhuma, os
personagens-chave de Eros são também
seus pais. É neles que concentraremos a nossa interpretação, pois se tornam
caminhos de provocação para o pensar a essência do ser humano.
A essência do ser humano,
partindo do mito de Eros, pode ser
apreendida refletindo sobre os três personagens-questões, em torno dos quais se
constitui e narra o mito: Vênus, a deusa do Amor e da Beleza; Pênia, a pobreza,
a indigência, a falta, a necessidade; e Poros, o Recurso. Podemos interpretar a
presença de Vênus como a conjuntura e o horizonte em que acontece a concepção
de Eros. Este, ontologicamente, estará ligado à beleza e ao amor. O que isto
quer dizer, quando se trata de pensar o humano do ser humano? Para isso temos
que nos voltar para seus pais: Poros
e Pênia.
Poros,
o
recurso, é um deus que mora no Olimpo
e é imortal. A ele nada falta, pois, como divino, já se move na plenitude. E é
esta riqueza como possibilidades, como recursos, que ele irá doar a seu filho: Eros. Dessa maneira, este, como força de
procriação, já contém em si a dimensão divina e imortal, sem limite e
não-finita, que já traz em si a possibilidade infinita de plenitude. E, claro,
a transmite a seus originados, como o pai a ele a transmitiu. Mas a transmitiu
como possibilidade, como abertura, como um querer e poder disponível. Eis a dimensão divina, presente no ser humano,
na medida em que ele é originado pela energia e impulso ou libido de Eros.
Já a mãe de Eros é Pênia, a pobreza,
a indigência. Indigência de quê? Eis a questão originária para o ser humano em
sua essência, pois, constitutivamente, também traz em si todas as dimensões da
pobreza e indigência de ser, uma vez que é sendo ek-sistente e não o Ser. Assim o mito nos diz que o ser humano,
nascido da vitalidade originária de Eros,
é um ser do “entre”. Enquanto originado de Pênia, ele é mortal, regido pela necessidade. Então o “entre”,
essência do ser humano, nos diz que ele é radicalmente ek-sistência, pois esta diz o “estar” (sistere) no limite e na necessidade, mas, ao mesmo tempo, ele
também é ek-, isto é, vigente no
não-limite, no aberto e livre das possibilidades de ser imortal e realizar a
sua dimensão divina. Por esta, o ser humano é vocacionado essencialmente para a
liberdade, fazendo de seu viver ek-sistindo
uma caminhada de libertação. Neste horizonte, o que falta ao ser humano é e
será sempre a liberdade, pois só esta o realiza na sua dimensão divina.
Mas pela ambígua origem de Eros e nossa nele, podemos falar de
quatro libidos: libido sentiendi, sciendi,
essendi e, reunindo-as no querer, a libido
dominandi. Libido, palavra latina, diz originariamente o impulso vital,
regido pelo desejo e pela pro-cura do prazer, da satisfação, da completude e
realização. Não se pode aí reduzir “vital” a animal, reduzindo a libido a um instinto, próprio dos
animais. Tal classificação já parte da interpretação do ser humano como “animal
racional”, como já desenvolvemos. Não se pode ligar só a essa dimensão. O
problema todo está em determiná-lo por ela. Seria reduzir o ser humano, tendo a
origem em Eros, de onde provém
certamente a libido, à libido sentiendi (impulso para o sentir). Sem dúvida nenhuma, de imediato, nos
encontramos em um corpo-organismo. De um lado, Eros, gerado na indigência dos limites e destinado a morrer,
necessita dos bens e prazeres, necessários para satisfazer a libido sentiendi, percebidos pelo seu
corpo orgânico, no qual se manifestam a dor, o sofrimento, o desespero. Mas
jamais podemos dizer que há uma sensação pura.
Sem fronteiras delimitadoras precisas e exatas, nela já atua também a libido sciendi, pela qual a indigência e
limites o fazem desejar conhecer os entes e os fenômenos, tudo que é, e também
o que ele mesmo é, em sua constituição orgânica, psíquica e social,
ultrapassando e redimensionando o meramente orgânico e genético, pois da
indigência surgem também os sofrimentos psíquicos e sociais: o medo, a
melancolia, a tristeza, a depressão, a apatia, o pânico e a ansiedade. Mas, sem
dúvida, se não podemos falar em sensação pura, também, em se tratando do ser
humano, é impossível ficar preso a uma razão
pura. Por isso, melhor do que falar em instinto,
seja melhor dimensioná-lo pelo mito de Cura,
conjugando a sua origem, tanto em Eros,
quanto em Cura, fazendo desta uma
dimensão do próprio Eros, pois, em
última instância, as libidos são
sempre uma pro-cura, inerente ao
próprio do ser humano, enquanto dimensionada por Eros. O mito de Cura é o
mito latino para explicar o surgimento e criação do ser humano, que não é uma
criação de um Deus, mas uma plasmação, obra, de Cura, ou seja, de Eros, entendido
como aquilo que nos projeta na procura poética
da realização em plenitude. Dessa maneira, vivemos permanentemente nossa
vida à pro-cura, isto é, pro- para
diante, para o não-limite e o livre ser. E cura,
o cuidado de ser. É, dessa maneira, o atuar da libido essendi, origem da liberdade plena e do não ficar preso e
limitado aos bens e prazeres da libido
sentiendi. Sem os excluir, necessita também do bem e da beleza, do compreender-se (libido sciendi) uno e verdadeiro. Necessita,
enfim, da plenitude, da paz do vazio, do sentido do silêncio, de ser sendo o
Ser, sendo o sem-limites do prazer e do conhecer, enfim, do Nada. Pois fora do Nada haverá sempre o limite. Só assim vigorará no livre aberto do
divino e do imortal, em que a morte encontra o seu sentido, pois a morte nada
mais é do que a necessidade ontológica, a falta do Ser, do Nada. E é isso o que significa a libido essendi, o impulso erótico-vital de pro-cura do Ser, do
divino, que já vigora em nossa essência originária.
Em essência, não há apenas essas três libidos. Há ainda, reunindo-as, a libido que é o próprio Eros: a libido dominandi. Esta engloba todos os desejos, que sempre se
realizam na medida e alcance de toda representação. Mas só ela vai além do
horizonte e dos limites de toda finitude e representação, porque é o querer poder do Ser, do Nada, fonte infinita de tudo que limita
e não-limita, conhece e não-conhece, satisfaz e não-satisfaz, é e não-é.
A necessidade e o corpo
Toda indigência é necessidade. Então
podemos perguntar: a- O que é indigência? b- Indigência de quê? Todo ente,
enquanto ente, tem indigência de ser. Por isso, essencialmente, “o que se é”
deve, necessariamente, desdobrar-se n“o como é”, num duplo sentido: o do ente
que já é e quer ser, necessita, tem indigência de ser. Mas toda indigência do
ente também é indigência do ser enquanto é ser do ente e do Ser enquanto é a
diferença, não só de todo ente, mas também do Ser do ente, na medida em que o Ser
não é, pois se fosse seria ente e não Ser. Isto, em termos de indigência,
origina duas pro-curas: 1ª - aquela ao nível do ente enquanto “o como” do ente
(libidos); 2ª - aquela ao nível do Ser,
como o originário permanente e inesgotável de todo ente e do Ser: o não-ser (libido dominandi). A primeira diz
respeito às diferentes pro-curas que se esgotam no nível das procuras nas
relações mundi-entitativas. A segunda diz respeito à pro-cura da Cura, o Ser enquanto Nada: indigência e necessidade
originária. A indigência e a procura é o assinalar da liberdade. Por isso, há a
liberdade ao nível da vontade subjetiva e a liberdade essencial, ao nível do
Ser/Nada, da Cura.
Que quer dizer
"pobre"? Em que consiste a essência da pobreza? Que quer dizer
"rico", se somente chegamos a ser ricos na pobreza e por ela?
"Pobre" e "rico", no sentido habitual, concernem à posse,
ao ter. A pobreza é um não-ter e, em verdade, um carecer do necessário. A
riqueza é um não-carecer do que é necessário, um ter mais além do necessário.
Porém, a essência da pobreza repousa em um Ser. Ser verdadeiramente pobre
significa: ser de tal maneira que não carecemos de nada, exceto do necessário (Heidegger, 2006,
106).
Se ser-pobre quer dizer: não carecer de
nada, exceto do necessário, então o que podemos compreender por necessário,
nesse caso? Não carecer de mais nada do que do livre-que-liberta. Ou seja, o
que não depende das necessidades a que o viver por viver nos conduz, nos
obriga, eis a superação dos limites do humano. Se não houvesse o livre, jamais
poderíamos falar e compreender o que é o pobre. Somente por sermos livres é que
podemos ser pobres. Ser: o único necessário é a liberdade que liberta. Só o Ser
liberta. E liberta sem coação, por isso é a lei da não-necessidade, porque
libertando se torna o único necessário. Eis a essência da pobreza, enfim da
necessidade.
O corpo e a razão
A partir da filosofia de
Descartes, o ser humano passou a ser concebido como constituído de res extensa e res cogitans. O que aí entender por res? É uma palavra latina que diz: coisa, ente/sendo, real. E o ser humano como ente-coisa passou a ser visto como sendo um corpo. Porém, em seu pensar,
Descartes concebeu o corpo do ser humano e todo o universo, como sendo uma
máquina, com suas partes e peças, passível de se conhecer, desde que
pesquisássemos as leis de seu funcionamento. O corpo passa a ser concebido como
fundamento e fundado, causa e efeito, subjetivo e objetivo, agente e paciente.
Conhecer as leis causais passou a ser o objetivo da ciência, constituindo as
diferentes disciplinas. E mais: poder interferir também causalmente nesse
funcionamento de maneira cada vez mais eficiente. Estava aberta a possibilidade
de reduzir o corpo do ser humano a um organismo
em funcionamento, segundo leis que podiam ser pesquisadas e conhecidas.
Conhecê-las é poder intervir no corpo humano e em toda a máquina que é o
universo. Tal conhecimento comparou-o com o de um relógio. Se o relógio mede o
tempo, tudo pode ser medido e calculado. Dessa maneira o corpo foi concebido
racionalmente a um organismo que pode ser conhecido em suas leis de
funcionamento, podendo-se consertar e substituir algumas peças, as próteses
mecânicas. Estavam abertas as portas para o ciborgue,
os clones e para a intervenção no
código genético, pela análise e conhecimento
do genoma. Isto era possível, segundo
Descartes, através da res cogitans, ou
seja, o pensar que calcula. Daí
traduzir-se logos como razão.
No percurso da Modernidade, ela acabou por
se impor de uma maneira absoluta, resultando hoje na Globalização. É que a
razão se bifurcou em duas tendências: pela primeira estabelece os princípios
universais do funcionamento do corpo e dos corpos ou res extensa; pela outra, ela abre um princípio de intervenção, que
se quer sem limite, na medida em que se torna invenção técnico-matemática, ou seja, apoiada numa memória de medidas que possibilita a
representação da realidade numa base de cálculo digital, a partir da qual quase tudo se pode criar. O que não for
passível de medida técnico-matemática é descartado. E há a tendência de esse
modelo se impor de uma maneira absoluta. Conseguirá? Não, porque sempre há o
apelo ontológico da liberdade, da ek-sistencia,
sem modelos prévios submetidos ao cálculo técnico-matemático. É o apelo da
liberdade, fundada no Ser, no Nada, sempre
inesperada.
Dessa maneira, pode-se pensar o corpo como
conceito ou como questão. E, então, tudo será diferente em relação ao corpo e
em nossa relação com ele. Em nosso corpo, todas as filosofias, religiões e
teorias científicas estão contidas, incorporadas. Mas quando deixamos o corpo
ser, ele se tornará corpo-poesia e corpo-pensamento. O corpo como corpo, sem
atributos, é sempre insólito, admirável, misterioso, mágico. Deixar o corpo ser
corpo é pensar o corpo como questão.
A exigência moderna de se partir do ser
humano impõe que se o pense e compreenda como entre-ser e este como corpo. Esse
"corpo" se constitui e se figura no poder-ser de suas possibilidades,
sendo, portanto, um projeto em contínuo acontecer. Como entre-ser o corpo é a Cura
e as pro-curas, reunindo no em-si e no para-si, como abertura dada pela Cura,
Mundo e Verdade. Corpo é mundo. A nossa condição "corporal" é
ser-no-mundo, ser-com os outros e entre-ser. São dimensões poético-ontológicas
do corpo. Tal realização se dá na medida em que o corpo se torna obra de arte,
ou seja, o sentido do entre-ser no mundo, em diálogo. Toda obra de arte é um
corpo se é obra de arte.
Em vista da divisão cartesiana da
realidade, sob o domínio da razão pura, tornou-se, cientificamente, difícil
hoje pensar o corpo na sua unidade e experienciá-lo como um todo. A argumentação da consciência,
determinando não só o ser, mas o próprio real/corpo, só é aceitável se
admitirmos a dicotomia cartesiana. A partir dela, o corpo humano é entendido como
organismo, funcionando numa combinação estrutural entre partes, dentro de uma
lógica causal. Daí surgem, com base nessa lógica científica, diferentes
concepções do corpo, melhor dizendo, do organismo, e não mais do ser-humano
como entre-ser, como ek-sistencia: a)
Ele é visto como produto de um código genético, mapeável em seu genoma e
determinável operacionalmente em seu devir biológico; b) como entidade sócio-étnico-político,
representado nos e pelos valores político-culturais; c) como matéria e forma,
combinadas de diversas maneiras, alimentando e impulsionando a libido sentiendi, isto é, consumo
generalizado de produtos estéticos, tendo como motivo o culto da beleza
estética. Vênus, como a Beleza, tornou-se
algo estético, adquirível nas lojas de Departamentos ou em Clínicas de
Estética. Sem dúvida nenhuma, é uma festa onde não é possível gerar-se Eros. Por um lado, fica claro que não se
compreende o corpo em sua corporeidade, em sua essência ek-sistencial, porque
já não se pergunta pelo vigor que o corpo é. Por outro, o que é comum a todos
estes encaminhamentos não-corporais de representação do corpo é a determinação
racional da unidade material do ente (res).
Mas há o corpo poético:
O corpo é uma contínua dança de
diferenças, elos que se fazem e desfazem mediante a tensão que é viver
morrendo. Desse modo, o corpo se alarga e se desprende da organicidade para se
dispor como enleio poético de existência. A necessidade de se delimitar uma
corporeidade orgânica se detém na limitação da pele enquanto fronteira do sensível,
no entanto, o que não podemos deixar de considerar é que esta é apenas uma
possibilidade de manifestação corporal que se conjunta com o que seja
inapreensível no sentir do corpo. Afinal, como se mede o amor que fere o corpo?
Como se mede a dor de uma ausência ou a felicidade de uma presença? (Pessanha, 2013, 50).
Nas muitas falas sobre o corpo, falta apreender
o necessário: todo o poder do corpo e seu mistério, na medida em que se torna
para cada ser humano uma descoberta, compreendida esta no jogo da dobra do discernir
e da verdade/aletheia, gerando muitos
aspectos a serem considerados.
A
descoberta do corpo começa bem cedo, passa por diversas fases e nunca termina,
pois trata-se sempre de uma disputa entre vida e morte, Eros e Thanatos.
Transformar tal descoberta numa caminhada, sem que se restrinja à sexualidade,
ao corpo-organismo, diferente na mulher e no homem, é uma tarefa difícil para cada
um. E ainda mais porque um sistema de ensino, dominado pela eficiência, tabus
sexuais e religiosos, e uma sociedade de consumo do estético, em vez de
facilitar, a obstrui. A descoberta do corpo é mais do que a descoberta da
sexualidade, uma vez que se trata da descoberta de Eros. As concepções do corpo dominantes, ou são dicotômicas, ou são
excludentes. Repensá-las é o primeiro passo para a sua superação. Esta não pode
consistir em substituir verdades feitas por outras, supostamente mais
verdadeiras. O que se faz necessário é pensar o necessário do humano, como
horizonte de uma realização erótico-libertadora. E isso implica repensar o
humano na sua dimensão, não apenas orgânico-discursiva, mas na ético-ontológica
do seu sentido.
Eros e ética
Ética não se confunde jamais com moral.
Essa confusão advém da incompreensão da questão em que vigora o dizer da sentença
grega – Dzoion logon echon -, de que
já tratamos antes. E ela não pode ficar isolada na compreensão essencial do que
seja o ser humano, mas ser projetada no horizonte de Eros também, da qual é indissociável. Para não se reduzir este a
uma dimensão meramente orgânico-sexual, é necessário sondar ainda mais
profundamente a essência do ser humano, como estamos tentando fazê-lo. E de
novo remetemos para o pensamento grego. Seu grande pensador Heráclito nos deu
outra compreensão do ser humano, não excludente da outra, mas que traz novas
dimensões. E isso numa densa sentença, que diz: Ethos anthropou daimon / A morada do homem, o extraordinário (Heráclito,
1991, frag. 119, 91). Em português, a
palavra ética origina-se diretamente
da palavra grega ethos. No entanto,
apresentamos aí uma outra tradução: morada,
para evitar a possível redução do ethos
a uma moral. É claro que esta
palavra morada aparece aí como uma
palavra-imagem-questão. Morada diz o
âmbito erótico do agir e realizar-se do ser humano. Tal agir erótico nos remete
para, evidentemente, a libido essendi, o
desejo erótico de ser, em tensão originária com a libido dominandi. Observemos logo que a palavra-imagem-questão morada ou casa, também, frequentemente, é usada para traduzir a palavra grega
logos. O pensador da ek-sistencia como Eros, Heidegger, diz na Carta
sobre o humanismo: “A linguagem é a casa do Ser” (Heidegger, 1967, 24). E a
outra palavra da sentença também apresenta sérias dificuldades de entendimento:
daimon. Podemos perfeitamente
associá-la, como palavra-imagem-questão, a demônio.
E este, certamente, a Eros. Pois
ele se faz presente no ser humano como a energia da libido sciendi e libido
dominandi. Basta compreendermos aqui
dominandi como o poder de querer poder. Isso é Eros. Isso é daimon. E isso é ethos. Por
isso, o que diferencia essencialmente o
ser humano, enquanto entre-ser ou ek-sistencia,
é Eros, o Amor, que reúne e conjuga todas essas dimensões.
Mas fica ainda não claro como aquilo que,
tradicional e moralmente, se associa à falta de moral, a atos imorais, agora
defendemos como sendo o ético-erótico. É
que não se pode reduzir o ser humano a conceitos lógico-científicos, como se
fez na Modernidade, banalizado num produto do meio e da sociedade, ou, agora,
na tendência a reduzi-lo a um produto da realidade virtual, onde sobra estética
e falta o ético-poético. Ou
cientificamente na defesa de uma cura de
possíveis doenças orgânicas. Os
produtos da realidade virtual, por mais perfeitos que sejam, jamais serão
dotados de ek-sistencia. A razão
moderna, fundamentada na dicotomia, perde a visão e concepção do todo e suas
partes, pois toda parte é uma passagem para o todo, do qual jamais se pode
dissociar, pois o todo é Eros. Por
todo, não se entende, em hipótese alguma, um sistema que abranja todo o ser
humano ou toda a realidade, impossível de acontecer, pois a realidade vigora
desde sempre no não-limite e no inesperado, somente apreensível para quem tem
olhos para ver o extraordinário e ouvidos para o silêncio. E essa difícil
provocação nos advém também numa outra sentença de Heráclito: Ean me elpetai, enelpiston ouk ekseuresei,
anekseneureton eon kai aporon / Se não se espera, não se encontra o inesperado,
sendo sem caminho nem vias de acesso (Heráclito. Pensadores originários. 1991, Frag. 18).
A atuação do inesperado, como ethos daimon,
advém ao ser humano numa dimensão que o caracteriza essencialmente e
também, normalmente, não é levada em conta. E pertence, necessariamente, a Eros: a memória.
Eros e a memória
Sendo entre-ser, ek-sistencia, vivemos no limite e não-limite, porque somos e
não-somos, num contínuo acontecer erótico-temporal. Eros reúne as diferentes libidos,
sem que estas a esgotem, pois é próprio da ek-sistencia experienciar-se numa contínua proximidade e distância
do Ser, daí o estado constitutivamente humano da contínua pro-cura, gerando nele
angústia e ansiedade. Há sempre a incompletude, pois, por mais próximo que
sejamos do Ser, jamais poderemos chegar a ser o Ser, uma vez que somos, como
finitos e limitados, sendo entes-verbais. Então toda proximidade será sempre já
distância. E isto se estende ao jogo erótico-amoroso
entre os amantes. É um jogo vigorando na medida do sem-medida, o que nos
pode continuamente provocar o necessário desejo insaciável e, ao mesmo tempo, o
único horizonte de realização, pela possibilidade sempre aberta e utópica de
completude. E isso seria impossível se não fôssemos essencialmente memória. O
que é memória? No fundo, continua
sendo a mesma pergunta, tanto pelo que somos enquanto entre-ser, quanto pelo que somos enquanto Eros. Nesta colocação já nos afastamos completamente de uma memória
cognoscitiva ou técnico-virtual apenas, mas, claro, sem excluí-las.
Segundo os dicionários correntes, memória
é:
1º.
Conservação de sensações;
2º.
Reminiscência, lembrança, recordação;
3º.
Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados, de reter
ideias.
Os dicionários léxico-semânticos se
baseiam na verdade lógica dos conceitos e não deixam o vigor das palavras serem
o que são: manifestação da realidade em sua verdade. Só manifestando, a palavra
é verdade e não mera representação conceitual, significantes e significados,
não da realidade, mas sobre a realidade.
Memória em seu vigor de palavra remonta à
mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes, pois ela é a mãe de todas
as Musas. Toda mãe é mãe no vigorar de Eros.
É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o memorável,
a vigência do erótico. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças
fugidias e passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja,
o tempo tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário
como memória. Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade
enquanto diferença, ou seja, permanência e mudança.
Na memória comparecem os ancestrais – os
participantes do genos -, não como
algo que se reporta ao passado ou às origens. E é nesse sentido que sempre
foram objeto de cultos, ritos da memória. Estes são o deixar-se envolver pela
memória, é o deixar eclodir dentro de cada um as questões originárias, as
questões da memória, porque a memória não foi nem jamais será a mera lembrança
do que passou e de que alguém se lembra. A língua e linguagem gregas sempre
experienciaram a memória como o cuidado da unidade. É isso o que diz o radical
da palavra grega para memória ''mnemosine'', men. Ela é, por isso, a arché,
isto é, o princípio imemorial, no qual e pelo qual se dá ''o que foi, é e
será''.
A questão da referência originária de tempo
e memória se percebe bem na tensão presente/ausente. Como pode alguém estar
ausente e presente, ao mesmo tempo, e igualmente presente e ausente? Ora, este
reunir de ausente/presente e presente/ausente é o ''logos'', enquanto “casa do
Ser”, na medida em que o ek-sistente
– o ser humano – é o lugar da morada do extraordinário, o ethos. É o Ser se fazendo presença e ausência, proximidade e
distância. É o entre-ser em que o homem se apropria do que lhe é próprio. O
entre-ser é a vigência da memória no ser humano, pois tal vigência é o impulso
erótico-poético do pensar. "A memória é a concentração do pensamento"
(Heidegger, 2002, 111).
Sabe-se hoje que o ser humano co-participa,
com os demais seres, de ecossistemas numa grande unidade cósmica. Mas eles não
dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso, o ser
humano tem sido estudado em relação a três grandes sistemas: o orgânico-vital,
o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três
sistemas: a memória, da qual se originam. Mas como ela perfaz e percorre os
três, não se deixando esgotar, vai estar ligada ao Ser. Por isso, o código genético
e seu conhecimento não alcançam toda a complexidade originária do que seja a
memória, nem ela se reduz, seja a informações, seja a sistema de signos, seja a
conhecimentos. Memória é mundo, e mais: é a vigência do Ser, pois nela se faz
presente o erótico, enquanto ético e sentido poético de realização da vida. E
estes jamais são acessíveis a experimentos técnicos, pois eles nada podem dizer
do mundo de cada um e do sentido do silêncio e do vazio que os envolve. Disso
decorre que o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento
configurado numa moral. Aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto
sentido do Ser. O Ser, enquanto sentido, é Eros.
A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de aprendizagem
incessante, fundado no sentido do Ser. A memória do Ser é o ético, o uno, o bom
e o belo, ou seja, o poético-erótico.
Na vida humana e no curso da sua história operam
muitas memórias: (a) uma memória individual [aquilo que constitui o próprio, o
que foi doado a cada sendo], engramática,
que grava conteúdos de percepções; (b) uma memória coletiva que aciona
possibilidades comunitárias e convoca experiências de participação; (c) uma
memória histórica, monumental, que celebra a continuidade das transformações e
as consagra para o futuro (LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da
memória. In: Revista ''Tempo Brasileiro'', 153: 143/147, abr.-jun., 2002).
Além
dessas três memórias, há aquela que se torna o originário de todas elas: a
memória fundada em Eros.
Ao lado da lembrança e da recordação, há o
esquecimento, seja o positivo, seja o negativo. Estas duas facetas do
esquecimento dizem respeito à memória, tanto como mecanismo de reprodução do
lembrado – esquecimento negativo -, quanto ao irromper do novo pela deposição
do passado passado – esquecimento positivo. É nessa face ambígua do
esquecimento que se abre a possibilidade da memória inaugural de mundo, a
memória ético-erótica. Nas três memórias dadas, que nos transmitem segurança,
comparece a conjuntura como horizonte em que todos nós nos surpreendemos
vivendo em múltiplas facetas. Mas a dinâmica da conjuntura só, de fato, se faz
presente quando ela se vê projetada e renovada em novas dimensões pelo vigorar
da memória ético-poética de Eros, do
Ser.
Vida é unidade, que é tempo, que é o que
normalmente denominamos memória. Seria impossível perguntar pela vida depois da
morte se já não fôssemos memória.
Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um
futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a
possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o
passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade
acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória
a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória
radica em tudo, porque a realidade é memória em sua pujança ético-poética-erótica.
Em cada ente/sendo aí está a memória do universo. Em cada vivente aí está a
memória que é a Vida. Morte e Vida não têm medida de grandeza nem valor
quantitativo, não são passíveis de medida técnico-matemática, nem redutíveis a
uma memória digital.
O sentido é a memória do Ser. Sentido é o
caminho de todas as caminhadas de procura do único necessário: a unidade,
sentido, verdade e memória do Ser, em relação ao passado como possibilidade de
futuro. É que a unidade do tempo tripartido é a quarta dimensão do tempo: a
linguagem (logos) ou mundo. É a
unidade do “tudo um” (hen panta) de
que nos convoca ao pensar da escuta a sentença 50 de Heráclito: Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio
concordar que tudo é um (1991, 71). A memória, enquanto sentido do Ser no
enigma de Eros, é a unidade vigente
em “o a-ser-pensado” na sentença 84 de Heráclito: Transformando-se, repousa (Ibidem, 81). Em se sendo Eros, advém a plenitude do repouso da ek-sistencia, do humano.
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Roteiro de Ingmar Bergman.
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