Manuel Antônio de Castro
O que é globalização? Não se trata de dar
um conceito dentro de um paradigma lógico-científico. Não. Trata-se de
apreender o que é globalização na dinâmica de pensá-la e questioná-la. Ela é a
questão que nosso momento histórico e sócio-poético ou época nos coloca. E
irrompe com tanta força que já é um nome que reúne as mais diferentes
tendências de reflexão, pois, pela força da essência da técnica, sua presença
se generalizou em todos os ramos de conhecimento e se faz presente em tudo. É
que traz algo absolutamente novo, pois diz respeito a todo o globo terrestre e ao
universo. As transformações são tantas que chegam a afetar não só todas as
culturas, mas também a mãe Terra e pondo em perigo a própria existência do ser
humano. No cerne das profundas transformações faz-se presente todo o poder da
técnica em sua essência, uma vez que diz respeito não apenas à
instrumentalização e funcionalização de tudo, mas atinge a própria essência do
ser humano na sua referência ao ser. Devido a isso, já se fala em transumanismo. Em verdade, o vocabulário
conceitual até agora existente não dá mais conta daquilo que ser e tempo
propõem ao pensar e às artes. A globalização
é o-a-ser-pensado, não há como defini-la. Nela acontece o pensamento por vir. É o grande desafio para
pensadores e poetas em suas obras. E o vocabulário crítico, meramente formal, ideológico
e esteticista, torna-se insuficiente diante dos novos desafios. Em vista disso,
devemos, necessariamente, superar as classificações dos paradigmas já
existentes bem como uma atitude de total condenação ou aceitação. Esse dualismo
não leva em consideração que o acontecer da realidade é e será sempre
dialético, numa tensão permanente de afirmação e negação, porém inclusiva e sem
síntese final (cf. meu ensaio “Dialética e diálogo: a verdade do humano”. In:
Revista Tempo Brasileiro, 192, Dialética em questão I, Rio de Janeiro,
jan.-mar., 2013).
Na presente globalização fica logo evidente a
impossibilidade de um modelo totalizante que preveja e contenha uma síntese
final, ainda que utópica. Passou-se o tempo das teorias utópicas salvacionistas.
A utopia se tornou a realidade digital da imaginação sem limites. É a utopia
sem salvador, sem libertação e sem o inesperado. É um universal gerado por uma matrix, a do conhecimento digital. Mas
pode haver um modelo gerador para tudo e para todos? Claro que não, pois o que
temos são clones ou replicantes, numa uniformidade inesgotável, em que atua uma
linguagem calculante, sem o orvalho do inaugural no vigorar verbal do silêncio,
fonte de toda diferenciação real. O que
é o universal, até para podermos afirmar um tempo e ser globalizados? Pode
haver um universal idealizado virtualmente que pense o ser dos entes e suas
diferenças essenciais em seu acontecer poético? Pode a imaginação da essência
técnica gerar o humano universal, ético? Essa sempre foi a questão em que se
moveram as obras de arte e de pensamento. É no Ocidente que podemos assinalar a
primeira criação de um projeto globalizante, pelo seu vasto alcance e
pioneirismo. Surgiu em cerca de 350 a. C, com Alexandre, o Grande, imperador da
Macedônia, que se apoderou da Grécia e de todo o Médio Oriente, estendendo os
limites até a Índia. Quando jovem, para sua formação foi contratado Aristóteles
como seu preceptor. E este saiu-se tão bem que Alexandre, quando se tornou
imperador, pediu-lhe um projeto baseado no que lhe foi ensinado, para ser
implantado em todo o seu vasto império. Nele havia, inclusive, a previsão da
mudança da capital do império – Pelas – para uma cidade a ser fundada no Egito,
que acabou recebendo o nome de Alexandria, em sua homenagem. Foi lá que se
situou a famosa Biblioteca de Alexandria, que já naquele tempo reunia a maioria
das produções escritas da sua época e tornou-se para sempre uma referência. Não
há globalização sem um forte sistema de acúmulo e divulgação de obras de
conhecimento e cultura para formar elites. Esse sistema, hoje, é absolutamente
novo, pois sem tempo nem espaço, literalmente nas nuvens, podendo ser acessado
por todos de qualquer lugar. E essa se pode tornar a maior fonte de igualdade e
libertação de todos, mas também de meras generalizações funcionais ou apenas
objetos de consumo e passatempos. Desenvolvido e implantado, o projeto de
Aristóteles, por sua profundidade e alcance, recebeu, posteriormente, o nome de
Helenismo, pois a cultura grega foi condensada em algumas diretrizes
essenciais, impondo-se às demais culturas, pelo poder de seus princípios.
A eclosão do que seja o ser humano já acontece sempre
no destinar-se da verdade e sentido do ser. E aí está o fundo que orienta o
projeto, pois toda cultura já implica tanto uma concepção do que seja o ser
humano quanto do que seja a realidade. Mas essa preocupação com a
universalidade do humano e com o seu estudo e formação é tipicamente ocidental
e é a base filosófica do projeto. Este, em seu arcabouço, articula-se em torno
de três grandes princípios, que Emmanuel Carneiro Leão numa conferência sobre a
Poética de Aristóteles – na UFRJ/IFCS
– assim enunciou:
1º.
Simplificar a língua grega. Dar à língua grega uma estrutura dotada de um poder
universal de expansão. É a chamada Kini ou koiné;
2º. Acabar com a diferença entre o grego e o bárbaro,
pois não há uma diferença de qualidade ontológica;
3º. Abolir as diferenças culturais específicas de cada
cidade, pois o que vale é a universalidade do humano.
A questão de fundo se tece em como compreender esses
três princípios e o que eles implicam em termos de efetiva atuação e
realização, pois têm em comum a questão do universal no que diz respeito à
linguagem, ao humano ontológico e ao cultural. E, por isso, pensá-los implica
voltar-se sobretudo para o lugar decisivo das obras de arte e de pensamento.
Pois foi partindo dessas obras da cultura grega que Aristóteles educou
Alexandre ao orientarem e se tornaram o conteúdo do projeto. E este, como tal,
se tornou o paradigma de todos os projetos e paradigmas que o sucederam nas
épocas subsequentes. E tais princípios continuam válidos até hoje, dependendo,
claro, da sua interpretação. De onde
lhes advém esse poder?
É evidente que Alexandre, ao pedir ao
preceptor este projeto, estava pensando no modo de consolidar seu poder e, ao
mesmo tempo, em assegurar a administrabilidade do seu império pela formação de
elites dirigentes e culturais. Essa é uma ambiguidade inerente a toda
globalização com seus projetos de ensino e pesquisa até hoje, nos quais a
questão do poder se torna cada vez mais evidente e com exercício deste a
pretensão de controle de tudo e de todos. De um lado, é essencial o cultivo do
sentido do humano no cultural, de outro, implica também a preparação e
desenvolvimento da aptidão do ser humano para exercer diversas e cada vez mais
complexas funções. E esta finalidade funcional está ligada aos conhecimentos técnico-científicos.
A extensão destes fará variar as dimensões técnicas e sua compreensão. O
próprio dessa compreensão hoje é voltar-se não só para a técnica em sua
essência e não limites imaginários, mas também tem a pretensão de atingir o que
é o homem em sua essência, como se esta se reduzisse a um domínio do
conhecimento científico e sua função. É querer poder fazer o humano em seu
sentido ético pelo uso da imaginação no máximo da eficiência técnico-científica.
Porém, a essência não depende da imaginação e da técnica, mas do ser. Por isso,
o poder de formação do humano em seu sentido não pode ficar somente limitado a
uma preparação funcional, por mais eficiente que seja, pois já desde as suas
origens tal formação tem como horizonte necessário as obras de pensamento e
arte, jamais redutíveis a conceitos crítico-classificatórios funcionais. Nelas
se faz presente o apelo de plena realização do sentido poético do humano. Por
isso, em todos as épocas, elas estão no centro de toda a sua formação através
dos sistemas educativos, pois elas têm sempre como horizonte o universal humano
em seu acontecer poético. Mas pode-se confundir o universal humano com o
universal técnico-funcional? Quando o essencial foi reduzido ao conhecimento
científico, este passou cada vez mais a depender do técnico-matemático e as
próprias obras de arte se tornaram ciência estética. A Poética foi substituída
pela Estética. Porém, pode a eficiência funcional libertar o ser humano para a
sua essência? É nesse horizonte que se debate cada vez mais o alcance da
imaginação científica como globalização tecno-funcional. E nisso está todo o
grande desafio para as obras de arte, isto é, dentro das possibilidades
tecno-digitais novas deixarem eclodir a essência do humano, projetando o
pensamento por vir, pois o tempo não para. Elas se defrontam com a questão do
universal que gesta a globalização atual.
O
que é o universal? Essa é a questão que nos desafia desde os pensadores
originários e se faz presente em todas as culturas através de mitos e ritos, e
depois na filosofia, no pensamento e nas artes. E ela é mais atual do que
nunca. O que mudou foi a sua compreensão a cada nova globalização, pois cada
uma desenvolve novas dimensões. Há uma analogia entre universo e universal. Quando,
hoje, no domínio universal da técnica, falamos em globalização, no fundo,
estamos querendo nos referir a um universal
de tal poder que abrange todo o globo terrestre e todo o universo. Já
pensou o poeta:
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia de Universo é que é uma ideia
minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus
olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer
pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse
peso.
(CAEIRO,
1965, 238)
O
poeta coloca com precisão toda a questão do universal em sua complexidade e
vigência, ao trazer para o pensamento a questão do lugar e da referência do
poeta/ser humano ao universo. Uma vez que é impossível aqui desdobrá-la,
vejamos o que é essencial para nosso tema. Se uni- diz o fundamento, a unidade
de tudo em suas diferenças, -verso já
diz a versão, o aparecimento das
diferenças, do que é próprio de cada um e também o próprio de cada época, de
cada cultura. Os gregos denominaram originariamente essa unidade como arche, o princípio. Mas este é a própria
esfinge que sempre nos desafia e continua cada vez mais enigmática e misteriosa. No universal é tão importante a unidade
quanto o seu verter-se. Importante porque para nós finitos tudo se concentra
nesse verter, nesse não cessar de surgirem versões (independente da vontade do
homem). Podemos até chegar a dizer: tudo é versão, na medida em que,
necessariamente, cada versão é versão sempre da unidade, do todo. Num
pensamento poético-verbal esse é o tempo e ser, pois cada instante é um
espetáculo de beleza e realização irrepetível, que nega toda a uniformidade.
Versão é o vigorar dos limites na forma e, ao mesmo tempo, o desvelamento da
unidade em seu retrair-se e velar-se. As versões são versões do silêncio do
velar-se, enfim, do nada criativo. Nem as versões nem a unidade podem ser
entificadas, substantivadas, serem formas de uma matrix (mãe, matriz, modelo), na medida em que estas proviriam de
um chip sem tempo e espaço, não
inaugurando mundo e sentido. Existem como representações virtuais dentro de um
mundo já vigente e dado, o da programação, eis a sua realidade. Nessas
realidades virtuais não há estações nem os botões das cerejeiras eclodem
exalando seu perfume, não atraindo a musicalidade das abelhas, em sua dança
cósmica.
Há uma referência ontológica entre o todo, a
realidade, o ser, e as partes, na medida em que essa referência das versões se
manifesta no sentido do dar-se a ver. E como o homem faz parte também desse
todo, ele o pode compreender na medida em que o vê, não por vontade ou poder
dele, mas porque o próprio do homem é ser um eidos, uma doação, ou como dizia o mito: uma moira. Em tudo que olha, já sempre pre-viu na medida em que
apreende e compreende o sentido do que não cessa de dar-se a ver, ocultando-se.
E isso é o pensar enquanto sentido, verdade e mundo. Por isso, o homem só pode
ter ideias na medida em que pensa. E pensando pode dizer. Não pensa porque diz,
mas diz porque nele o ser se pensa e diz. Isso é o universal, pois “Fora de eu pensar e de haver quaisquer
pensamentos / A noite anoitece concretamente”.
Concreto nada tem a ver com o conceito vulgar e superficial de algo material,
seguro, parado, fixo, firme, pois “O fulgor das estrelas existe como se tivesse
peso”. Na dialética de dia e noite, comparece o tempo do ser com todo o seu
peso e vigência. E é ele que pesa concretamente, afeta nossos sentidos,
ofertando-se como palavra, música, brilho, cor, imagem. E é isso que significa con-creto: o crescer (-creto, do verbo latino créscere, crescer) na unidade da
multiplicidade (con-, do prefixo
latino cum-, junto, na companhia de)
de diferenças e versões. Estas são necessariamente temporais, pois não cessam
de acontecer como fenômenos. E este universal concreto é o universal poético
que funda toda globalização como universal. Perdendo o peso do tempo, a realidade
nos chega como representação e conceito. Teremos então o universal abstrato (do
verbo latino abstraho, arrancar, separar).
Neste, arranca-se o acontecer do tempo, sempre diferente, e só se considera o
uniforme, o repetitivo, o meramente conceitual, o científico enquanto conceito.
Por isso, tal universal é a base da função, que será sempre repetitiva,
prevista, previsível, sem mudança. Se o universal concreto diz respeito à
verdade originária como a-letheia, o que
se desvela e vela fenomenalmente, o universal abstrato, diz a verdade
conceitual, funcional, que se fundamenta na possibilidade de uma repetição
infinda. Só o funcional pode ser repetido em diferentes momentos, épocas e por
diferentes pessoas, das mais diversas culturas e segmentos sociais. Essa é a essência do instrumento
técnico, como possibilidade da essência da técnica, da techne, um modo de conhecer. Não há entre as duas compreensões do
universal uma oposição, mas são modos diferentes de a realidade dar-se e
acontecer. Não deixemos, porém, de notar que todo universal abstrato, gerando a
verdade conceitual e funcional, tem uma validade determinada inerente ao
paradigma que a utiliza. É que todo funcional se caracteriza pela utilidade,
inclusive na sua dimensão ideológica.
A cada globalização corresponde uma determinada língua
com uma estrutura de um poder universal de expansão, seja comunicativa, seja
poética. Pode a atual globalização realizar as obras de arte e pensamento numa
língua meramente comunicativa? É o a-ser-pensado, pois a obra de arte por
operar na vigência da linguagem, inclui, mas não se limita a ser comunicação. O
código-língua opera como uma sintaxe ou rede, constituída de linhas e nós,
expandindo a noção tradicional de oração constituída de sujeito e predicado
para a de rede comunicativa. No código-língua o poder verbal poético da palavra
se perde, pois nele domina o poder funcional da comunicação em rede. O código
como a rede funciona através dos fios, dos nós e do todo significativo, fazendo
circular as mensagens, dentro de um padrão prévio à comunidade e aos seus
membros. Nessa funcionalidade, uma presença decisiva não é pensada: assim como
a rede precisa do vazio/silêncio para seu funcionamento e expansão, a língua
precisa da linguagem. Por isso, a linguagem é a mãe de todas as línguas, assim
como o vazio é a origem de todas as redes, de todos os códigos. E o silêncio é
a origem de todas as falas.
Elaborar um projeto educacional, eis a questão para
Aristóteles. Toda questão é constituída de uma pergunta e de uma resposta, a
partir de e sobre a realidade como um todo. As diferentes respostas tornam-se paradigmas da realidade, estruturados em
sistemas. Se a questão diz sempre respeito à referência de homem e realidade, o
paradigma expressa uma determinada
teoria ou visão epocal como resposta à questão, apreendendo-a na sua
universalidade. Todas as culturas
como versões são respostas às questões que a realidade coloca. Mas a realidade
precede as culturas, as versões, que são já determinados modos de experienciar
a realidade ou universo. A palavra paradigma
se forma do grego: pará: entre;
durante, por causa de, e do verbo deiknymi:
mostrar, fazer ver; produzir; fazer conhecer, revelar. O paradigma conjuga
então duas dimensões: é um fazer ver,
conhecer, mostrar, mas num entre,
durante, por causa de, numa liminaridade.
No paradigma, previamente, algo se dá a ver e a
conhecer, e se cria um conhecimento através do qual se faz ver o que se mostra.
O paradigma somente diz respeito ao que se deu a ver no acontecer do
destinar-se do sentido do ser, que é sempre temporal. Mas, no que se dá a ver,
a realidade ao mesmo tempo se vela e retrai, tornando-a inesgotável e
misteriosa. Ora, esta dinâmica de mostrar-se e ocultar-se é o que os gregos
denominaram a-letheia, ou seja,
verdade. A grande força de todo paradigma está na visão de verdade que ele
propõe. Porém, não é possível qualquer paradigma dar conta de toda a realidade,
muito menos de todo o acontecer do sentido do ser. E o alcance de sua verdade ficará
restrita ao que se vê daquilo que se deu a ver. Como este não cessa, é ele que
possibilita ultrapassar e criar novos paradigmas e suas verdades. Esta dinâmica
histórica de transformações não é ditada pela ação da vontade do homem, mas
pelo destinar-se do sentido do ser, que permanece enigmático para o ser humano.
À realidade transformada em conhecimento por um paradigma sempre corresponde um
mundo e sua verdade. Na sucessão temporal, as verdades dos paradigmas ou mundos
não se excluem, pois vigem na memória, mostrando as dimensões inesgotáveis do
humano de todo ser humano.
O que se dá a ver é, para os gregos, a physis; para nós, a realidade. Para mostrar o que se dá a ver (a realidade, a physis), o
ser humano recebe da própria physis
duas dimensões que o constituem, circunscrevem e determinam: o pensamento (nous, em grego) e a linguagem (logos, em
grego). O nous é o pensamento que
permite ver o não visto. E este pode ser dito enquanto sentido e mundo porque
somos constituídos pelo logos, a linguagem. É o nous e o logos, na
vigência da poiesis da realidade, que
constituem o seu sentido e mundo, manifestados nos paradigmas. Chamamos poiesis a permanência e transformação da realidade, daí ser ela
originária e radicalmente poética.
O universal do paradigma também gera uma
diferença, pois diz respeito tanto à verdade de uma época, quanto à verdade de cada
identidade cultural. A questão do universal sempre foi não apenas uma questão
lógica e epistemológica, mas essencialmente ontológica e é nesta que se deve
pensar o humano. E aí está também o embate com o técnico em sua essência, não
somente como conjunto de meios. É que o ontológico
diz respeito a todo e qualquer ente (sendo). É nesse horizonte que se coloca a
questão da globalização quando se trata do humano de todo ser humano e de toda
cultura. Sendo o humano ontológico não pode ficar dependente nem submetido aos
recursos e valores técnicos ou valores culturais. O horizonte do valor do
humano é o ético. Entende-se por valor aquilo que constitui a sua essência. Por
isso a sucessiva expansão da globalização em diferentes paradigmas sempre se
centralizou na questão dos humanismos. Por detrás de todo humanismo há uma
questão maior, porque essencial e não apenas atributiva e acidental. É o desafio de pensar o humano de todo ser humano, em todas as épocas e culturas no seu
ético. Como não se pode separar o humano histórico de todo e qualquer ser humano,
houve a necessidade de se pensar o universal
de uma maneira não apenas epistemológica, mas ontológica, isto é, onde haja
uma unidade do universal com o singular e próprio, da identidade com a
diferença, numa permanente dialética e diálogo. O raciocínio lógico
tradicional, ao contrário da dialética e do diálogo poético, sempre trabalhou
com exclusões, até porque o que não é lógico declarou-se ilógico. É esta lógica
excludente que temos de evitar, pois reduz a dinâmica ontológica da realidade à
conceituação científica excludente. E o limite de todo paradigma é justamente
que ele se fundamenta no lógico, como é próprio a todo sistema. O universal
abstrato tem a pretensão de anular o tempo, sendo válido e verdadeiro não só
para aquela representação, mas que ela valha para todos e para sempre.
Impossível, pois da realidade nada se pode excluir.
Mais proximamente a globalização provém da modernidade
e nos remete a um conjunto de fenômenos de transformação radical que,
avassaladoramente, vão cobrindo todos os espaços da existência atual e futura
dos homens em sociedade. Os progressos da técnica, as descobertas das ciências,
o ocaso das ideologias, desencadearam uma avalanche tal que levou de roldão e
destruiu, pela base, os princípios de ordem e as forças de ordenamento que
definiam o perfil e desenhavam a fisionomia do mundo moderno. Desta avalanche
brotaram os fenômenos da atual globalização.
Diante do vendaval dessas profundas transformações
devemos ter o cuidado de não cair facilmente no pessimismo, deixando de
enfrentar o que na globalização há de desafiador: toda crise é ao mesmo tempo
positiva e negativa. A palavra crise originou-se
do verbo grego krinein, que significa
originariamente distinguir, diferenciar,
eclodir do latente no patente, enquanto o próprio acontecer da verdade da
realidade, ou seja, a a-letheia. Esta
é a não-verdade vigorando em cada verdade e, por isso, possibilidade de
libertar-se para o humano. Liberdade é sempre universal concreto como o humano.
Há, portanto, um dar-se a ver e um ocultar, um desvelar e um velar. Desse modo,
por detrás de todo olhar deve vigorar sempre um ver. E todo ver só é ver na
medida em que é dimensionado pelo pensar. Essa é a complexidade de toda
crise e de toda verdade, o que quer dizer de todo paradigma.
A memória de outras culturas, até milenares, se vê hoje
invadida e transmutada pelo paradigma técnico e seus valores. Em verdade, elas
perdem seu valor de vigência ética na vida das pessoas, porque o seu
vocabulário perdeu a força que lhe dava a vida ética. Seu conhecimento
tornou-se aquele conhecimento do turista que chega, olha e passa, dominado
inteiramente pela curiosidade. Tal perda é muito sutil, pois continuam sendo
estudadas e até divulgadas. É mais uma característica da globalização técnica
ou funcional, simplesmente porque, hoje, a globalização atingiu seu ponto
máximo e influencia todas as culturas, sem exceção. E até para estudá-las e
caracterizá-las já são usados conceitos e terminologia ocidentais. Surge, nessa
globalização ocidental, um grande paradoxo: até para opor Ocidente e Oriente, e
mostrar a diferença é usada a terminologia científica ocidental, ditada pelas
conquistas técnico-científicas. Sem dúvida nenhuma, as conquistas técnicas e a
sua terminologia são unicamente ocidentais. Na verdade, a técnica nesse sentido
global é sem atributos culturais. É usada por todas as culturas e as influencia
e transforma, pois passam a predominar os valores técnico-globalizados. Na
globalização atual predomina, sem dúvida nenhuma, a tecnicização do humano, por
um lado, mas, por outro, abre possibilidades nunca antes vistas. Trata-se de
apreender os limites e alcance dessa tecnicização, seja nos aspectos materiais,
seja nos aspectos espirituais e imaginário-simbólicos. O grande desafio é
apreender a essência da técnica e nela as possibilidades de realização
libertadora do humano, naquele horizonte já pensado no projeto de Aristóteles.
Tentemos caracterizar a atual globalização funcional:
As transformações desencadeadas são tão profundas que até o próprio tempo se vê
transfigurado em sua essência. De um lado, é pura e contínua mudança, novidade,
evanescência, obsolescência. Há uma absoluta fome de consumo dos produtos de
última geração, do último modelo. Tudo envelhece rapidamente como se o tempo
estivesse acelerado, nada resistindo a essa aceleração, nem as relações
afetivas que passaram a ter a velocidade da internet. Esta epidérmica
afetividade foi tematizada em dois filmes, como um sintoma e reflexão do medo
de os novos seres humanos confiarem uns nos outros e assumirem algo duradouro: Todas as cores do amor, dirigido por
Elizabeth Gill, 2003; O azul é a cor mais
quente, dirigido por Abdelatif Kechiche, 2013. A ideia ancestral de família
e comunidade, tomados hoje como paradigmas apenas, entra em colapso. De outro,
tem-se a nítida sensação de que em tanta mudança nada muda e há uma repetição
sem fim das mesmas coisas, que verdadeiramente não passam, repetem-se e geram
uma angústia solitária profunda. Na era global da comunicação instantânea (Whatsapp, Twitter) nunca houve tanto isolamento e imersão numa realidade que
nos foge dos pés. Todos conectados e todos isolados. Tanto nas artes quanto nas
ciências reina a mais absoluta perplexidade. Os sistemas faliram e nunca se
tornou tão urgente pensar o ético do humano e o humano do ético enquanto
vigorar do princípio originário (arche).
O ético é a verdade libertadora do universal concreto. Eis algumas denominações
tentando dizer a atual globalização: pós-modernidade, baixa-modernidade,
contemporâneo (como se toda época não fosse contemporânea de quem a
experiencia!!!!), sociedade da informação, sociedade do espetáculo, sociedade
da comunicação, sociedade de consumo, sociedade do conhecimento, pós-tudo, o
tempo das redes, o fim das certezas, a realidade virtual. A pura negação ou a
total aceitação deslumbrante é uma nescidade.
Globalização é dobra, pois toda dicotomia se tornou um chavão dinossáurico:
pensar em termos de materialismo ou espiritualismo, de função ou essência, de
identidade ou alienação, de raça ou gênero, de teoria ou prática, de erudito ou
popular, de marginal ou não-marginal etc. não passa de uma brincadeira risível
sem consequências. Resta-nos o verdadeiro desafio: “... toda experiência
radical de pensamento se embrenha pelas raízes da própria possibilidade de
pensar as realizações do real no e pelo mistério da realidade” (LEÃO, 2012, p.
145). Opondo-se ao pensamento temos a
globalização funcional que é a uniformidade com aparência do novo em tudo e em
todos. É a publicização, a banalização, a predominância do instante e do
simultâneo, a fugacidade e imaterialidade digital de tudo, o domínio absoluto
da imagem. Tudo isto está ocasionando uma transformação de todos os valores e modos
de viver jamais acontecida antes e com tal amplitude: a global. É o tempo da
cibercultura, da engenharia genética, da eliminação da linguagem simbólica, da
inteligência artificial, das próteses microeletrônicas, do ciborgue, do culto
do corpo, do domínio global do profano, do conteúdo reduzido às formas e
formatos, da estetização generalizada da arte, da celebração do instante, da
língua e linguagem reduzidas à comunicação, da perda da memória, da redução do
afetivo e do erótico às sensações, da sociedade em rede. É que nosso tempo é o
tempo das redes. Hoje há rede para tudo, locais e globais: redes de serviços,
de produtos, de ensino, de conhecimentos, de relacionamentos, de suportes, de
aplicativos etc. etc. A sociedade em rede não é uma máquina, nem um conjunto de
máquinas ou procedimentos fundamentados em meios instrumentais, tendo sempre como
finalidade algo útil. A técnica deixou de ser um fator entre muitos outros que
vieram integrar-se, a posteriori, numa sociedade não técnica, numa civilização
autônoma e natural. Na sociedade em rede, a técnica se tornou dominante. A
sociedade em rede substitui progressivamente com grande vantagem o conjunto de
todas as coisas ou real. Trata-se de um ambiente completo e total em que o
homem, a sociedade, a cultura, a civilização, tudo se vê compelido a viver e a
determinar-se pelo técnico e suas funções. Não é apenas mais uma totalidade das
muitas já propostas pelos diferentes humanismos, mas a totalidade sem utopia que
tudo absorve e decide.
Este domínio omnipresente da técnica nos mostra que a
sociedade em rede constitui a realidade, o ar em que o homem global se descobre
inserido e respira. Exige da parte dos homens uma reformulação estrutural
completa de todos os modos de ser e comportar-se até então vigentes, de seus
valores morais, de suas tradições, dos padrões intelectuais e fisiológicos, de
tudo que tinha sido o homem até então. Pela técnica absorvente e dissolvente, a
sociedade em rede monta um sistema, em que tudo é captado e absorvido de
maneira radical. Nela, cada integrante vai transformando-se em elemento do
sistema, pois só tem sentido, i.é, valor, graças à função que lhe confere o
todo do sistema. A sociedade em rede está toda presente em cada uma de suas
partes, em cada uma de suas funções, em cada um de seus desempenhos. As
características da sociedade em rede são as características de seu próprio
funcionamento, a saber: automação, auto-crescimento, funcionalidade, eficiência
e ausência. É difícil distinguir o que é sonho, imaginação, fantasia, real,
ficção. Não se trata nem mesmo de exclusão, é ausência de finalidade ou valor
que venha de fora do sistema. Não há lugar jamais para o inesperado, pois os
programas já pressupõem tudo. Será?
Esse operar da técnica em rede omnipresente é que está
plasmando a nova sociedade do conhecimento complexo. A rede das infovias
constitui hoje todas as relações em que se estrutura a cidade e o campo. As
noções de Estados e Nações inexistem para a realidade digital, pois esta é sem
limites e fronteiras. O paradigma digital a tudo penetra e a tudo determina.
Todos os “ismos” tradicionais que configuravam os “humanismos” caíram, dando
lugar a um profundo esvaziamento ideológico. Isso é muito bom, porque nos lança
no questionamento da construção de um real futuro sem “receitas” prévias. O
real não cabe nas teorias e muito menos nas ideologias. Hoje a grande ideologia
é o conhecimento sem ética e sem libertação real.
É necessário retomar o ético de todo conhecimento, na
medida em que este tem, necessariamente como medida ontológica e princípio de
realização, o humano. O que está faltando é se pensar com radicalidade a
essência do agir em tudo, sobretudo no educar do ser humano, uma vez que fazer
ainda não é ser. E só na vigência deste se age essencialmente. Não basta fazer
é necessário ser o que se faz. Se globalização é rede, há necessidade para o
humano de uma rede poética. Será mais uma rede na feira das redes ou ela se
propõe ser mais do que uma entre outras tantas redes? O que nessa rede está em
rede? Quando dizemos rede poética não
estamos já pensando a essência da rede, se ela por ser poética for ontológica?
É o grande desafio: pensar o que nos dá o sentido de existir. O que nos leva a
constituir uma rede poética não são
os humanismos, nem mais um humanismo, mas o que em todo ser humano o constitui
como próprio: é o humano de todo ser humano. Eis o motivo que move a rede poética. Para ela cada ser humano
não se reduz a um número na multidão dos consumidores, não é um qualquer, pois
todo ser humano já traz algo próprio e único, embora poético-universal: o
humano de todo próprio. Fundando-se no humano
ela procurará estabelecer um diálogo com todo próprio e, no horizonte
deste, com a sociedade em rede, concebida como sinusia, a vigência da cidadania. No filme Todas as cores do amor, centralizado no comportamento dos jovens de
hoje, aparece uma imagem-questão extremamente preocupante, mas que diz muito:
Cada relacionamento afetivo – e afeto não diz mera sensação estética, mas
ético-humana ou erótica - tinha aproximadamente a duração da memória de um
peixe, em torno de um minuto. Para o peixe, a realidade a cada minuto aparece
como uma realidade sempre nova, como se a visse pela primeira vez. Com um pouco
de exagero é isso o que está acontecendo com a memória das relações na época da
globalização da internet: não há permanência, tudo muda muito rapidamente e se
esquece. Podemos experimentar isso com as informações. Elas se sucedem tão
rapidamente que nada perdura, vivem a frescura da novidade e a sorte da sua
rápida substituição pelas mais recentes. E a sensação é de que nada fica, tudo
se esvai com o correr e fluir do tempo. É o tempo da globalização e das redes,
das fáceis relações e rápidas mudanças e substituições. E não são apenas as
relações afetivas pessoais que são afetadas, mas, sim, toda possibilidade de
viver em comunidade, pois não há laços que sustentem o que é comum e essencial
para todos. Comunidade só é possível enquanto vigorar do universal concreto.
Sem dúvida nenhuma, memória é ser. Somos na dimensão da memória vigorando em nós. Por
isso, não somos nós que temos a memória, ela é que nos tem, pois é ela que nos
doa o que somos. De nossa parte temos recordações e lembranças e só estas podem
ser comparadas à memória do peixe. É esse o âmbito do sujeito e de sua vontade.
É claro que não se pode de jeito nenhum criar uma dicotomia entre memória e
lembrança, como não se pode também determinar o que é a partir do sujeito e sua
vontade. Os relacionamentos tendem muito mais para o estar sem ser, daí a
geração social das máscaras, a face com que tendemos a nos olhar, sem nos
vermos, conhecermos e pensarmos. E toda representação é máscara. E até podemos
nos perguntar: será que o relacionamento afetivo não tende em princípio e no
começo a se guiar pelas máscaras? Dar-se a ver e ver-se neste dar-se não é algo
que se dá de repente. É necessário o cultivo e disciplina do aprender a pensar,
para ser o que se vê e pensa. Sem memória, a globalização tende ao viver sem
memória, na rapidez e brilho do instante, num mundo de espetáculo incessante,
numa sucessão feérica de imagens. Porém, jamais podemos esquecer algo que não
pode ser esquecido e nos desafia por detrás e além-aquém de todo parecer: nada
pode parecer sem aparecer. E o que sempre acontece no aparecer é o ser, é a
memória. Quem diz memória diz necessariamente tempo. Portanto, no tempo da
globalização há também memória. E esta será sempre poética. O poético é o a
ser pensado. Aqui lembraria outro filme famoso do diretor indiano Pan Nalin: Samsara, 2001. Se Globalização é tempo, todo tempo já diz de possibilidades de
caminho. Todo caminho é uma caminhada de passagens e paradas, nas e com as
estâncias do existir em contínua possibilidade de ascensão e iluminação, até
advir a possível plenitude. Não vivemos apenas. Ao ser humano é próprio o
existir. Este é um tempo de oportunidades de realização ascensional. No filme,
tomado pelo desejo sexual e apelo de prazer, o monge-personagem budista – Tashi
- lança-se na procura de realização de tais desejos. O caminho escolhido que
parecia ser de realização, se vê tomado por sucessivos desejos e novas
sensações, até descobrir que se tornara um joguete de tais desejos, gerando
conflitos e insatisfações. Eis o que domina a globalização. O caminho escolhido
se mostra tortuoso e incontrolável, levando-o ao impasse e questionamento daquilo
que procurava e da sua realização. E o questionamento sobretudo o leva a se
perguntar pelo caminho. E por isso, em determinado momento, um outro
personagem-monge do filme lhe diz: cada momento da vida é uma oportunidade de
caminhada. Está em nós não apenas olharmos, mas também vermos e pensarmos os
momentos dessas oportunidades, aquilo que está para além do meramente
superficial e aparente, passageiro e incompleto, pois existir é a caminhada de
procura da realização da plenitude do que somos e já recebemos para ser. E
isso, portanto, pode e deve acontecer também na globalização atual. Para tal,
jamais haverá um modelo único de caminhada uniforme para todos, em cada um
acontecerá necessariamente de um modo próprio e diferente. Na uniformidade e
banalização da globalização em sua aparência, esse é o grande desafio: não
apenas olhar, mas ver e pensar.
Com que olhar vemos e pensamos a globalização? Que
possibilidades de caminhada ela nos oferta? Ela nos oferta apenas o múltiplo
olhar ou também o poder ver e pensar? Quando a globalização é a sociedade do
espetáculo, por detrás de todo esse aparecer e possibilidade de olhar não há
também o poder ver? Não há o poder pensar? Não é ela uma oportunidade de
caminhada? A rede poética faz disso o
universal do humano, a sua globalização poética.
Bibliografia
CAEIRO, Alberto.
In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio
de Janeiro: Companhia Aguilar, 1965.
LEÃO, Emmanuel
Carneiro. “Deus e o homem louco”. In: Revista Tempo Brasileiro, 188, Imagem de Ciência, jan.-mar., 2012.
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