25 julho 2015

A globalização e os desafios do humano





                                                                   Manuel Antônio de Castro

       O que é globalização? Não se trata de dar um conceito dentro de um paradigma lógico-científico. Não. Trata-se de apreender o que é globalização na dinâmica de pensá-la e questioná-la. Ela é a questão que nosso momento histórico e sócio-poético ou época nos coloca. E irrompe com tanta força que já é um nome que reúne as mais diferentes tendências de reflexão, pois, pela força da essência da técnica, sua presença se generalizou em todos os ramos de conhecimento e se faz presente em tudo. É que traz algo absolutamente novo, pois diz respeito a todo o globo terrestre e ao universo. As transformações são tantas que chegam a afetar não só todas as culturas, mas também a mãe Terra e pondo em perigo a própria existência do ser humano. No cerne das profundas transformações faz-se presente todo o poder da técnica em sua essência, uma vez que diz respeito não apenas à instrumentalização e funcionalização de tudo, mas atinge a própria essência do ser humano na sua referência ao ser. Devido a isso, já se fala em transumanismo. Em verdade, o vocabulário conceitual até agora existente não dá mais conta daquilo que ser e tempo propõem ao pensar e às artes. A globalização é o-a-ser-pensado, não há como defini-la. Nela acontece o pensamento por vir. É o grande desafio para pensadores e poetas em suas obras. E o vocabulário crítico, meramente formal, ideológico e esteticista, torna-se insuficiente diante dos novos desafios. Em vista disso, devemos, necessariamente, superar as classificações dos paradigmas já existentes bem como uma atitude de total condenação ou aceitação. Esse dualismo não leva em consideração que o acontecer da realidade é e será sempre dialético, numa tensão permanente de afirmação e negação, porém inclusiva e sem síntese final (cf. meu ensaio “Dialética e diálogo: a verdade do humano”. In: Revista Tempo Brasileiro, 192, Dialética em questão I, Rio de Janeiro, jan.-mar., 2013).

Na presente globalização fica logo evidente a impossibilidade de um modelo totalizante que preveja e contenha uma síntese final, ainda que utópica. Passou-se o tempo das teorias utópicas salvacionistas. A utopia se tornou a realidade digital da imaginação sem limites. É a utopia sem salvador, sem libertação e sem o inesperado. É um universal gerado por uma matrix, a do conhecimento digital. Mas pode haver um modelo gerador para tudo e para todos? Claro que não, pois o que temos são clones ou replicantes, numa uniformidade inesgotável, em que atua uma linguagem calculante, sem o orvalho do inaugural no vigorar verbal do silêncio, fonte de toda diferenciação real.  O que é o universal, até para podermos afirmar um tempo e ser globalizados? Pode haver um universal idealizado virtualmente que pense o ser dos entes e suas diferenças essenciais em seu acontecer poético? Pode a imaginação da essência técnica gerar o humano universal, ético? Essa sempre foi a questão em que se moveram as obras de arte e de pensamento. É no Ocidente que podemos assinalar a primeira criação de um projeto globalizante, pelo seu vasto alcance e pioneirismo. Surgiu em cerca de 350 a. C, com Alexandre, o Grande, imperador da Macedônia, que se apoderou da Grécia e de todo o Médio Oriente, estendendo os limites até a Índia. Quando jovem, para sua formação foi contratado Aristóteles como seu preceptor. E este saiu-se tão bem que Alexandre, quando se tornou imperador, pediu-lhe um projeto baseado no que lhe foi ensinado, para ser implantado em todo o seu vasto império. Nele havia, inclusive, a previsão da mudança da capital do império – Pelas – para uma cidade a ser fundada no Egito, que acabou recebendo o nome de Alexandria, em sua homenagem. Foi lá que se situou a famosa Biblioteca de Alexandria, que já naquele tempo reunia a maioria das produções escritas da sua época e tornou-se para sempre uma referência. Não há globalização sem um forte sistema de acúmulo e divulgação de obras de conhecimento e cultura para formar elites. Esse sistema, hoje, é absolutamente novo, pois sem tempo nem espaço, literalmente nas nuvens, podendo ser acessado por todos de qualquer lugar. E essa se pode tornar a maior fonte de igualdade e libertação de todos, mas também de meras generalizações funcionais ou apenas objetos de consumo e passatempos. Desenvolvido e implantado, o projeto de Aristóteles, por sua profundidade e alcance, recebeu, posteriormente, o nome de Helenismo, pois a cultura grega foi condensada em algumas diretrizes essenciais, impondo-se às demais culturas, pelo poder de seus princípios.

A eclosão do que seja o ser humano já acontece sempre no destinar-se da verdade e sentido do ser. E aí está o fundo que orienta o projeto, pois toda cultura já implica tanto uma concepção do que seja o ser humano quanto do que seja a realidade. Mas essa preocupação com a universalidade do humano e com o seu estudo e formação é tipicamente ocidental e é a base filosófica do projeto. Este, em seu arcabouço, articula-se em torno de três grandes princípios, que Emmanuel Carneiro Leão numa conferência sobre a Poética de Aristóteles – na UFRJ/IFCS – assim enunciou:

 1º. Simplificar a língua grega. Dar à língua grega uma estrutura dotada de um poder universal de expansão. É a chamada Kini ou koiné;

2º. Acabar com a diferença entre o grego e o bárbaro, pois não há uma diferença de qualidade ontológica;

3º. Abolir as diferenças culturais específicas de cada cidade, pois o que vale é a universalidade do humano.


A questão de fundo se tece em como compreender esses três princípios e o que eles implicam em termos de efetiva atuação e realização, pois têm em comum a questão do universal no que diz respeito à linguagem, ao humano ontológico e ao cultural. E, por isso, pensá-los implica voltar-se sobretudo para o lugar decisivo das obras de arte e de pensamento. Pois foi partindo dessas obras da cultura grega que Aristóteles educou Alexandre ao orientarem e se tornaram o conteúdo do projeto. E este, como tal, se tornou o paradigma de todos os projetos e paradigmas que o sucederam nas épocas subsequentes. E tais princípios continuam válidos até hoje, dependendo, claro, da sua interpretação.  De onde lhes advém esse poder?

       É evidente que Alexandre, ao pedir ao preceptor este projeto, estava pensando no modo de consolidar seu poder e, ao mesmo tempo, em assegurar a administrabilidade do seu império pela formação de elites dirigentes e culturais. Essa é uma ambiguidade inerente a toda globalização com seus projetos de ensino e pesquisa até hoje, nos quais a questão do poder se torna cada vez mais evidente e com exercício deste a pretensão de controle de tudo e de todos. De um lado, é essencial o cultivo do sentido do humano no cultural, de outro, implica também a preparação e desenvolvimento da aptidão do ser humano para exercer diversas e cada vez mais complexas funções. E esta finalidade funcional está ligada aos conhecimentos técnico-científicos. A extensão destes fará variar as dimensões técnicas e sua compreensão. O próprio dessa compreensão hoje é voltar-se não só para a técnica em sua essência e não limites imaginários, mas também tem a pretensão de atingir o que é o homem em sua essência, como se esta se reduzisse a um domínio do conhecimento científico e sua função. É querer poder fazer o humano em seu sentido ético pelo uso da imaginação no máximo da eficiência técnico-científica. Porém, a essência não depende da imaginação e da técnica, mas do ser. Por isso, o poder de formação do humano em seu sentido não pode ficar somente limitado a uma preparação funcional, por mais eficiente que seja, pois já desde as suas origens tal formação tem como horizonte necessário as obras de pensamento e arte, jamais redutíveis a conceitos crítico-classificatórios funcionais. Nelas se faz presente o apelo de plena realização do sentido poético do humano. Por isso, em todos as épocas, elas estão no centro de toda a sua formação através dos sistemas educativos, pois elas têm sempre como horizonte o universal humano em seu acontecer poético. Mas pode-se confundir o universal humano com o universal técnico-funcional? Quando o essencial foi reduzido ao conhecimento científico, este passou cada vez mais a depender do técnico-matemático e as próprias obras de arte se tornaram ciência estética. A Poética foi substituída pela Estética. Porém, pode a eficiência funcional libertar o ser humano para a sua essência? É nesse horizonte que se debate cada vez mais o alcance da imaginação científica como globalização tecno-funcional. E nisso está todo o grande desafio para as obras de arte, isto é, dentro das possibilidades tecno-digitais novas deixarem eclodir a essência do humano, projetando o pensamento por vir, pois o tempo não para. Elas se defrontam com a questão do universal que gesta a globalização atual.

       O que é o universal? Essa é a questão que nos desafia desde os pensadores originários e se faz presente em todas as culturas através de mitos e ritos, e depois na filosofia, no pensamento e nas artes. E ela é mais atual do que nunca. O que mudou foi a sua compreensão a cada nova globalização, pois cada uma desenvolve novas dimensões. Há uma analogia entre universo e universal. Quando, hoje, no domínio universal da técnica, falamos em globalização, no fundo, estamos querendo nos referir a um universal de tal poder que abrange todo o globo terrestre e todo o universo. Já pensou o poeta:

 O Universo não é uma ideia minha.

        A minha ideia de Universo é que é uma ideia minha.

        A noite não anoitece pelos meus olhos,

        A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.

        Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

        A noite anoitece concretamente

        E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

                                                      (CAEIRO, 1965, 238)

O poeta coloca com precisão toda a questão do universal em sua complexidade e vigência, ao trazer para o pensamento a questão do lugar e da referência do poeta/ser humano ao universo. Uma vez que é impossível aqui desdobrá-la, vejamos o que é essencial para nosso tema. Se uni- diz o fundamento, a unidade de tudo em suas diferenças, -verso já diz a versão, o aparecimento das diferenças, do que é próprio de cada um e também o próprio de cada época, de cada cultura. Os gregos denominaram originariamente essa unidade como arche, o princípio. Mas este é a própria esfinge que sempre nos desafia e continua cada vez mais enigmática e misteriosa. No universal é tão importante a unidade quanto o seu verter-se. Importante porque para nós finitos tudo se concentra nesse verter, nesse não cessar de surgirem versões (independente da vontade do homem). Podemos até chegar a dizer: tudo é versão, na medida em que, necessariamente, cada versão é versão sempre da unidade, do todo. Num pensamento poético-verbal esse é o tempo e ser, pois cada instante é um espetáculo de beleza e realização irrepetível, que nega toda a uniformidade. Versão é o vigorar dos limites na forma e, ao mesmo tempo, o desvelamento da unidade em seu retrair-se e velar-se. As versões são versões do silêncio do velar-se, enfim, do nada criativo. Nem as versões nem a unidade podem ser entificadas, substantivadas, serem formas de uma matrix (mãe, matriz, modelo), na medida em que estas proviriam de um chip sem tempo e espaço, não inaugurando mundo e sentido. Existem como representações virtuais dentro de um mundo já vigente e dado, o da programação, eis a sua realidade. Nessas realidades virtuais não há estações nem os botões das cerejeiras eclodem exalando seu perfume, não atraindo a musicalidade das abelhas, em sua dança cósmica.

Há uma referência ontológica entre o todo, a realidade, o ser, e as partes, na medida em que essa referência das versões se manifesta no sentido do dar-se a ver. E como o homem faz parte também desse todo, ele o pode compreender na medida em que o vê, não por vontade ou poder dele, mas porque o próprio do homem é ser um eidos, uma doação, ou como dizia o mito: uma moira. Em tudo que olha, já sempre pre-viu na medida em que apreende e compreende o sentido do que não cessa de dar-se a ver, ocultando-se. E isso é o pensar enquanto sentido, verdade e mundo. Por isso, o homem só pode ter ideias na medida em que pensa. E pensando pode dizer. Não pensa porque diz, mas diz porque nele o ser se pensa e diz. Isso é o universal, pois “Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos / A noite anoitece concretamente”. Concreto nada tem a ver com o conceito vulgar e superficial de algo material, seguro, parado, fixo, firme, pois “O fulgor das estrelas existe como se tivesse peso”. Na dialética de dia e noite, comparece o tempo do ser com todo o seu peso e vigência. E é ele que pesa concretamente, afeta nossos sentidos, ofertando-se como palavra, música, brilho, cor, imagem. E é isso que significa con-creto: o crescer (-creto, do verbo latino créscere, crescer) na unidade da multiplicidade (con-, do prefixo latino cum-, junto, na companhia de) de diferenças e versões. Estas são necessariamente temporais, pois não cessam de acontecer como fenômenos. E este universal concreto é o universal poético que funda toda globalização como universal. Perdendo o peso do tempo, a realidade nos chega como representação e conceito. Teremos então o universal abstrato (do verbo latino abstraho, arrancar, separar). Neste, arranca-se o acontecer do tempo, sempre diferente, e só se considera o uniforme, o repetitivo, o meramente conceitual, o científico enquanto conceito. Por isso, tal universal é a base da função, que será sempre repetitiva, prevista, previsível, sem mudança. Se o universal concreto diz respeito à verdade originária como a-letheia, o que se desvela e vela fenomenalmente, o universal abstrato, diz a verdade conceitual, funcional, que se fundamenta na possibilidade de uma repetição infinda. Só o funcional pode ser repetido em diferentes momentos, épocas e por diferentes pessoas, das mais diversas culturas e segmentos sociais. Essa é a essência do instrumento técnico, como possibilidade da essência da técnica, da techne, um modo de conhecer. Não há entre as duas compreensões do universal uma oposição, mas são modos diferentes de a realidade dar-se e acontecer. Não deixemos, porém, de notar que todo universal abstrato, gerando a verdade conceitual e funcional, tem uma validade determinada inerente ao paradigma que a utiliza. É que todo funcional se caracteriza pela utilidade, inclusive na sua dimensão ideológica.

A cada globalização corresponde uma determinada língua com uma estrutura de um poder universal de expansão, seja comunicativa, seja poética. Pode a atual globalização realizar as obras de arte e pensamento numa língua meramente comunicativa? É o a-ser-pensado, pois a obra de arte por operar na vigência da linguagem, inclui, mas não se limita a ser comunicação. O código-língua opera como uma sintaxe ou rede, constituída de linhas e nós, expandindo a noção tradicional de oração constituída de sujeito e predicado para a de rede comunicativa. No código-língua o poder verbal poético da palavra se perde, pois nele domina o poder funcional da comunicação em rede. O código como a rede funciona através dos fios, dos nós e do todo significativo, fazendo circular as mensagens, dentro de um padrão prévio à comunidade e aos seus membros. Nessa funcionalidade, uma presença decisiva não é pensada: assim como a rede precisa do vazio/silêncio para seu funcionamento e expansão, a língua precisa da linguagem. Por isso, a linguagem é a mãe de todas as línguas, assim como o vazio é a origem de todas as redes, de todos os códigos. E o silêncio é a origem de todas as falas.

Elaborar um projeto educacional, eis a questão para Aristóteles. Toda questão é constituída de uma pergunta e de uma resposta, a partir de e sobre a realidade como um todo. As diferentes respostas tornam-se paradigmas da realidade, estruturados em sistemas. Se a questão diz sempre respeito à referência de homem e realidade, o paradigma expressa uma determinada teoria ou visão epocal como resposta à questão, apreendendo-a na sua universalidade. Todas as culturas como versões são respostas às questões que a realidade coloca. Mas a realidade precede as culturas, as versões, que são já determinados modos de experienciar a realidade ou universo. A palavra paradigma se forma do grego: pará: entre; durante, por causa de, e do verbo deiknymi: mostrar, fazer ver; produzir; fazer conhecer, revelar. O paradigma conjuga então duas dimensões: é um fazer ver, conhecer, mostrar, mas num entre, durante, por causa de, numa liminaridade.

No paradigma, previamente, algo se dá a ver e a conhecer, e se cria um conhecimento através do qual se faz ver o que se mostra. O paradigma somente diz respeito ao que se deu a ver no acontecer do destinar-se do sentido do ser, que é sempre temporal. Mas, no que se dá a ver, a realidade ao mesmo tempo se vela e retrai, tornando-a inesgotável e misteriosa. Ora, esta dinâmica de mostrar-se e ocultar-se é o que os gregos denominaram a-letheia, ou seja, verdade. A grande força de todo paradigma está na visão de verdade que ele propõe. Porém, não é possível qualquer paradigma dar conta de toda a realidade, muito menos de todo o acontecer do sentido do ser. E o alcance de sua verdade ficará restrita ao que se vê daquilo que se deu a ver. Como este não cessa, é ele que possibilita ultrapassar e criar novos paradigmas e suas verdades. Esta dinâmica histórica de transformações não é ditada pela ação da vontade do homem, mas pelo destinar-se do sentido do ser, que permanece enigmático para o ser humano. À realidade transformada em conhecimento por um paradigma sempre corresponde um mundo e sua verdade. Na sucessão temporal, as verdades dos paradigmas ou mundos não se excluem, pois vigem na memória, mostrando as dimensões inesgotáveis do humano de todo ser humano.

O que se dá a ver é, para os gregos, a physis; para nós, a realidade. Para mostrar o que se dá a ver (a realidade, a physis), o ser humano recebe da própria physis duas dimensões que o constituem, circunscrevem e determinam: o pensamento (nous, em grego) e a linguagem (logos, em grego). O nous é o pensamento que permite ver o não visto. E este pode ser dito enquanto sentido e mundo porque somos constituídos pelo logos, a linguagem. É o nous e o logos, na vigência da poiesis da realidade, que constituem o seu sentido e mundo, manifestados nos paradigmas. Chamamos poiesis a permanência e transformação da realidade, daí ser ela originária e radicalmente poética. 

       O universal do paradigma também gera uma diferença, pois diz respeito tanto à verdade de uma época, quanto à verdade de cada identidade cultural. A questão do universal sempre foi não apenas uma questão lógica e epistemológica, mas essencialmente ontológica e é nesta que se deve pensar o humano. E aí está também o embate com o técnico em sua essência, não somente como conjunto de meios. É que o ontológico diz respeito a todo e qualquer ente (sendo). É nesse horizonte que se coloca a questão da globalização quando se trata do humano de todo ser humano e de toda cultura. Sendo o humano ontológico não pode ficar dependente nem submetido aos recursos e valores técnicos ou valores culturais. O horizonte do valor do humano é o ético. Entende-se por valor aquilo que constitui a sua essência. Por isso a sucessiva expansão da globalização em diferentes paradigmas sempre se centralizou na questão dos humanismos. Por detrás de todo humanismo há uma questão maior, porque essencial e não apenas atributiva e acidental.  É o desafio de pensar o humano de todo ser humano, em todas as épocas e culturas no seu ético. Como não se pode separar o humano histórico de todo e qualquer ser humano, houve a necessidade de se pensar o universal de uma maneira não apenas epistemológica, mas ontológica, isto é, onde haja uma unidade do universal com o singular e próprio, da identidade com a diferença, numa permanente dialética e diálogo. O raciocínio lógico tradicional, ao contrário da dialética e do diálogo poético, sempre trabalhou com exclusões, até porque o que não é lógico declarou-se ilógico. É esta lógica excludente que temos de evitar, pois reduz a dinâmica ontológica da realidade à conceituação científica excludente. E o limite de todo paradigma é justamente que ele se fundamenta no lógico, como é próprio a todo sistema. O universal abstrato tem a pretensão de anular o tempo, sendo válido e verdadeiro não só para aquela representação, mas que ela valha para todos e para sempre. Impossível, pois da realidade nada se pode excluir.

Mais proximamente a globalização provém da modernidade e nos remete a um conjunto de fenômenos de transformação radical que, avassaladoramente, vão cobrindo todos os espaços da existência atual e futura dos homens em sociedade. Os progressos da técnica, as descobertas das ciências, o ocaso das ideologias, desencadearam uma avalanche tal que levou de roldão e destruiu, pela base, os princípios de ordem e as forças de ordenamento que definiam o perfil e desenhavam a fisionomia do mundo moderno. Desta avalanche brotaram os fenômenos da atual globalização.        

Diante do vendaval dessas profundas transformações devemos ter o cuidado de não cair facilmente no pessimismo, deixando de enfrentar o que na globalização há de desafiador: toda crise é ao mesmo tempo positiva e negativa. A palavra crise originou-se do verbo grego krinein, que significa originariamente distinguir, diferenciar, eclodir do latente no patente, enquanto o próprio acontecer da verdade da realidade, ou seja, a a-letheia. Esta é a não-verdade vigorando em cada verdade e, por isso, possibilidade de libertar-se para o humano. Liberdade é sempre universal concreto como o humano. Há, portanto, um dar-se a ver e um ocultar, um desvelar e um velar. Desse modo, por detrás de todo olhar deve vigorar sempre um ver. E todo ver só é ver na medida em que é dimensionado pelo pensar. Essa é a complexidade de toda crise e de toda verdade, o que quer dizer de todo paradigma.

A memória de outras culturas, até milenares, se vê hoje invadida e transmutada pelo paradigma técnico e seus valores. Em verdade, elas perdem seu valor de vigência ética na vida das pessoas, porque o seu vocabulário perdeu a força que lhe dava a vida ética. Seu conhecimento tornou-se aquele conhecimento do turista que chega, olha e passa, dominado inteiramente pela curiosidade. Tal perda é muito sutil, pois continuam sendo estudadas e até divulgadas. É mais uma característica da globalização técnica ou funcional, simplesmente porque, hoje, a globalização atingiu seu ponto máximo e influencia todas as culturas, sem exceção. E até para estudá-las e caracterizá-las já são usados conceitos e terminologia ocidentais. Surge, nessa globalização ocidental, um grande paradoxo: até para opor Ocidente e Oriente, e mostrar a diferença é usada a terminologia científica ocidental, ditada pelas conquistas técnico-científicas. Sem dúvida nenhuma, as conquistas técnicas e a sua terminologia são unicamente ocidentais. Na verdade, a técnica nesse sentido global é sem atributos culturais. É usada por todas as culturas e as influencia e transforma, pois passam a predominar os valores técnico-globalizados. Na globalização atual predomina, sem dúvida nenhuma, a tecnicização do humano, por um lado, mas, por outro, abre possibilidades nunca antes vistas. Trata-se de apreender os limites e alcance dessa tecnicização, seja nos aspectos materiais, seja nos aspectos espirituais e imaginário-simbólicos. O grande desafio é apreender a essência da técnica e nela as possibilidades de realização libertadora do humano, naquele horizonte já pensado no projeto de Aristóteles.

Tentemos caracterizar a atual globalização funcional: As transformações desencadeadas são tão profundas que até o próprio tempo se vê transfigurado em sua essência. De um lado, é pura e contínua mudança, novidade, evanescência, obsolescência. Há uma absoluta fome de consumo dos produtos de última geração, do último modelo. Tudo envelhece rapidamente como se o tempo estivesse acelerado, nada resistindo a essa aceleração, nem as relações afetivas que passaram a ter a velocidade da internet. Esta epidérmica afetividade foi tematizada em dois filmes, como um sintoma e reflexão do medo de os novos seres humanos confiarem uns nos outros e assumirem algo duradouro: Todas as cores do amor, dirigido por Elizabeth Gill, 2003; O azul é a cor mais quente, dirigido por Abdelatif Kechiche, 2013. A ideia ancestral de família e comunidade, tomados hoje como paradigmas apenas, entra em colapso. De outro, tem-se a nítida sensação de que em tanta mudança nada muda e há uma repetição sem fim das mesmas coisas, que verdadeiramente não passam, repetem-se e geram uma angústia solitária profunda. Na era global da comunicação instantânea (Whatsapp, Twitter) nunca houve tanto isolamento e imersão numa realidade que nos foge dos pés. Todos conectados e todos isolados. Tanto nas artes quanto nas ciências reina a mais absoluta perplexidade. Os sistemas faliram e nunca se tornou tão urgente pensar o ético do humano e o humano do ético enquanto vigorar do princípio originário (arche). O ético é a verdade libertadora do universal concreto. Eis algumas denominações tentando dizer a atual globalização: pós-modernidade, baixa-modernidade, contemporâneo (como se toda época não fosse contemporânea de quem a experiencia!!!!), sociedade da informação, sociedade do espetáculo, sociedade da comunicação, sociedade de consumo, sociedade do conhecimento, pós-tudo, o tempo das redes, o fim das certezas, a realidade virtual. A pura negação ou a total aceitação deslumbrante é uma nescidade.  Globalização é dobra, pois toda dicotomia se tornou um chavão dinossáurico: pensar em termos de materialismo ou espiritualismo, de função ou essência, de identidade ou alienação, de raça ou gênero, de teoria ou prática, de erudito ou popular, de marginal ou não-marginal etc. não passa de uma brincadeira risível sem consequências. Resta-nos o verdadeiro desafio: “... toda experiência radical de pensamento se embrenha pelas raízes da própria possibilidade de pensar as realizações do real no e pelo mistério da realidade” (LEÃO, 2012, p. 145). Opondo-se ao pensamento temos a globalização funcional que é a uniformidade com aparência do novo em tudo e em todos. É a publicização, a banalização, a predominância do instante e do simultâneo, a fugacidade e imaterialidade digital de tudo, o domínio absoluto da imagem. Tudo isto está ocasionando uma transformação de todos os valores e modos de viver jamais acontecida antes e com tal amplitude: a global. É o tempo da cibercultura, da engenharia genética, da eliminação da linguagem simbólica, da inteligência artificial, das próteses microeletrônicas, do ciborgue, do culto do corpo, do domínio global do profano, do conteúdo reduzido às formas e formatos, da estetização generalizada da arte, da celebração do instante, da língua e linguagem reduzidas à comunicação, da perda da memória, da redução do afetivo e do erótico às sensações, da sociedade em rede. É que nosso tempo é o tempo das redes. Hoje há rede para tudo, locais e globais: redes de serviços, de produtos, de ensino, de conhecimentos, de relacionamentos, de suportes, de aplicativos etc. etc. A sociedade em rede não é uma máquina, nem um conjunto de máquinas ou procedimentos fundamentados em meios instrumentais, tendo sempre como finalidade algo útil. A técnica deixou de ser um fator entre muitos outros que vieram integrar-se, a posteriori, numa sociedade não técnica, numa civilização autônoma e natural. Na sociedade em rede, a técnica se tornou dominante. A sociedade em rede substitui progressivamente com grande vantagem o conjunto de todas as coisas ou real. Trata-se de um ambiente completo e total em que o homem, a sociedade, a cultura, a civilização, tudo se vê compelido a viver e a determinar-se pelo técnico e suas funções. Não é apenas mais uma totalidade das muitas já propostas pelos diferentes humanismos, mas a totalidade sem utopia que tudo absorve e decide.

Este domínio omnipresente da técnica nos mostra que a sociedade em rede constitui a realidade, o ar em que o homem global se descobre inserido e respira. Exige da parte dos homens uma reformulação estrutural completa de todos os modos de ser e comportar-se até então vigentes, de seus valores morais, de suas tradições, dos padrões intelectuais e fisiológicos, de tudo que tinha sido o homem até então. Pela técnica absorvente e dissolvente, a sociedade em rede monta um sistema, em que tudo é captado e absorvido de maneira radical. Nela, cada integrante vai transformando-se em elemento do sistema, pois só tem sentido, i.é, valor, graças à função que lhe confere o todo do sistema. A sociedade em rede está toda presente em cada uma de suas partes, em cada uma de suas funções, em cada um de seus desempenhos. As características da sociedade em rede são as características de seu próprio funcionamento, a saber: automação, auto-crescimento, funcionalidade, eficiência e ausência. É difícil distinguir o que é sonho, imaginação, fantasia, real, ficção. Não se trata nem mesmo de exclusão, é ausência de finalidade ou valor que venha de fora do sistema. Não há lugar jamais para o inesperado, pois os programas já pressupõem tudo. Será?

Esse operar da técnica em rede omnipresente é que está plasmando a nova sociedade do conhecimento complexo. A rede das infovias constitui hoje todas as relações em que se estrutura a cidade e o campo. As noções de Estados e Nações inexistem para a realidade digital, pois esta é sem limites e fronteiras. O paradigma digital a tudo penetra e a tudo determina. Todos os “ismos” tradicionais que configuravam os “humanismos” caíram, dando lugar a um profundo esvaziamento ideológico. Isso é muito bom, porque nos lança no questionamento da construção de um real futuro sem “receitas” prévias. O real não cabe nas teorias e muito menos nas ideologias. Hoje a grande ideologia é o conhecimento sem ética e sem libertação real.

É necessário retomar o ético de todo conhecimento, na medida em que este tem, necessariamente como medida ontológica e princípio de realização, o humano. O que está faltando é se pensar com radicalidade a essência do agir em tudo, sobretudo no educar do ser humano, uma vez que fazer ainda não é ser. E só na vigência deste se age essencialmente. Não basta fazer é necessário ser o que se faz. Se globalização é rede, há necessidade para o humano de uma rede poética. Será mais uma rede na feira das redes ou ela se propõe ser mais do que uma entre outras tantas redes? O que nessa rede está em rede? Quando dizemos rede poética não estamos já pensando a essência da rede, se ela por ser poética for ontológica? É o grande desafio: pensar o que nos dá o sentido de existir. O que nos leva a constituir uma rede poética não são os humanismos, nem mais um humanismo, mas o que em todo ser humano o constitui como próprio: é o humano de todo ser humano. Eis o motivo que move a rede poética. Para ela cada ser humano não se reduz a um número na multidão dos consumidores, não é um qualquer, pois todo ser humano já traz algo próprio e único, embora poético-universal: o humano de todo próprio. Fundando-se no humano ela procurará estabelecer um diálogo com todo próprio e, no horizonte deste, com a sociedade em rede, concebida como sinusia, a vigência da cidadania. No filme Todas as cores do amor, centralizado no comportamento dos jovens de hoje, aparece uma imagem-questão extremamente preocupante, mas que diz muito: Cada relacionamento afetivo – e afeto não diz mera sensação estética, mas ético-humana ou erótica - tinha aproximadamente a duração da memória de um peixe, em torno de um minuto. Para o peixe, a realidade a cada minuto aparece como uma realidade sempre nova, como se a visse pela primeira vez. Com um pouco de exagero é isso o que está acontecendo com a memória das relações na época da globalização da internet: não há permanência, tudo muda muito rapidamente e se esquece. Podemos experimentar isso com as informações. Elas se sucedem tão rapidamente que nada perdura, vivem a frescura da novidade e a sorte da sua rápida substituição pelas mais recentes. E a sensação é de que nada fica, tudo se esvai com o correr e fluir do tempo. É o tempo da globalização e das redes, das fáceis relações e rápidas mudanças e substituições. E não são apenas as relações afetivas pessoais que são afetadas, mas, sim, toda possibilidade de viver em comunidade, pois não há laços que sustentem o que é comum e essencial para todos. Comunidade só é possível enquanto vigorar do universal concreto.

       Sem dúvida nenhuma, memória é ser. Somos na dimensão da memória vigorando em nós. Por isso, não somos nós que temos a memória, ela é que nos tem, pois é ela que nos doa o que somos. De nossa parte temos recordações e lembranças e só estas podem ser comparadas à memória do peixe. É esse o âmbito do sujeito e de sua vontade. É claro que não se pode de jeito nenhum criar uma dicotomia entre memória e lembrança, como não se pode também determinar o que é a partir do sujeito e sua vontade. Os relacionamentos tendem muito mais para o estar sem ser, daí a geração social das máscaras, a face com que tendemos a nos olhar, sem nos vermos, conhecermos e pensarmos. E toda representação é máscara. E até podemos nos perguntar: será que o relacionamento afetivo não tende em princípio e no começo a se guiar pelas máscaras? Dar-se a ver e ver-se neste dar-se não é algo que se dá de repente. É necessário o cultivo e disciplina do aprender a pensar, para ser o que se vê e pensa. Sem memória, a globalização tende ao viver sem memória, na rapidez e brilho do instante, num mundo de espetáculo incessante, numa sucessão feérica de imagens. Porém, jamais podemos esquecer algo que não pode ser esquecido e nos desafia por detrás e além-aquém de todo parecer: nada pode parecer sem aparecer. E o que sempre acontece no aparecer é o ser, é a memória. Quem diz memória diz necessariamente tempo. Portanto, no tempo da globalização há também memória. E esta será sempre poética. O poético é o a ser pensado. Aqui lembraria outro filme famoso do diretor indiano Pan Nalin: Samsara, 2001. Se Globalização é tempo, todo tempo já diz de possibilidades de caminho. Todo caminho é uma caminhada de passagens e paradas, nas e com as estâncias do existir em contínua possibilidade de ascensão e iluminação, até advir a possível plenitude. Não vivemos apenas. Ao ser humano é próprio o existir. Este é um tempo de oportunidades de realização ascensional. No filme, tomado pelo desejo sexual e apelo de prazer, o monge-personagem budista – Tashi - lança-se na procura de realização de tais desejos. O caminho escolhido que parecia ser de realização, se vê tomado por sucessivos desejos e novas sensações, até descobrir que se tornara um joguete de tais desejos, gerando conflitos e insatisfações. Eis o que domina a globalização. O caminho escolhido se mostra tortuoso e incontrolável, levando-o ao impasse e questionamento daquilo que procurava e da sua realização. E o questionamento sobretudo o leva a se perguntar pelo caminho. E por isso, em determinado momento, um outro personagem-monge do filme lhe diz: cada momento da vida é uma oportunidade de caminhada. Está em nós não apenas olharmos, mas também vermos e pensarmos os momentos dessas oportunidades, aquilo que está para além do meramente superficial e aparente, passageiro e incompleto, pois existir é a caminhada de procura da realização da plenitude do que somos e já recebemos para ser. E isso, portanto, pode e deve acontecer também na globalização atual. Para tal, jamais haverá um modelo único de caminhada uniforme para todos, em cada um acontecerá necessariamente de um modo próprio e diferente. Na uniformidade e banalização da globalização em sua aparência, esse é o grande desafio: não apenas olhar, mas ver e pensar.

Com que olhar vemos e pensamos a globalização? Que possibilidades de caminhada ela nos oferta? Ela nos oferta apenas o múltiplo olhar ou também o poder ver e pensar? Quando a globalização é a sociedade do espetáculo, por detrás de todo esse aparecer e possibilidade de olhar não há também o poder ver? Não há o poder pensar? Não é ela uma oportunidade de caminhada? A rede poética faz disso o universal do humano, a sua globalização poética.

Bibliografia

CAEIRO, Alberto. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1965.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Deus e o homem louco”. In: Revista Tempo Brasileiro, 188, Imagem de Ciência, jan.-mar., 2012.

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