25 julho 2015

Ser



O Ser se diz. Porém, a grande dificuldade para escutá-lo como palavra é a tradição metafísica, pela qual só chegaríamos ao seu conhecimento através do discurso. Dentro dessa tradição, neste ensaio, teríamos a oportunidade de conhecer o que é o Ser. É um engano, pois Ser não é um problema de discurso, muito menos de gramática. Segundo esta, ser é um falso problema, pois há línguas onde na proposição não aparece o ser. Pela teoria do discurso tudo tem de ser reduzido a conceitos articulados na sintaxe da verdade lógica. Isso é redutor, porque esta esquece a dialética.

O Ser dizendo-se, o importante não é escrever, falar, pensar algo. O importante é não dizer, pensar nada. Sobre o Ser não há discurso, pois quando dizemos o Ser já o pensamos a partir do seu vigorar no sendo. E todo é é um atributo do Ser. Daí que nos aparece em nosso estar cotidiano como é. Este nos remete para o ente, não para o Ser. Ser é a palavra impossível, embora seja a partir dela que tudo pronunciamos. Tendemos a confundir estar com Ser, esquecendo este. Educado nos conceitos lógicos, o leitor pode desistir de aprender o que é Ser, o sem nome.  Sem ser necessário aprender e se tornar um ato de consciência, o leitor já é. Tudo já é. Porém, o que é, antes de tudo, é o Ser. Por outro lado, também podemos afirmar: O Ser não é, pois se fosse seria ente (predicativo) e não Ser. Não depende de que o pensemos ou nos seja ensinado. “O ser-tão não tem janelas nem portas” (Rosa: 1968, 374). Em-si, o Ser não é questão, mas o sendo é. No horizonte deste, tudo é e não-é. É que o Nada é o véu do Ser. Se o ensaio tem como tema o Ser, não será nele que o Ser advirá ao conhecimento do leitor. Ser já somos. Qual então o motivo do ensaio? O especularmo-nos. Especular é deixar-se tomar pelo que no espelho se nos ilumina e vemos: o que somos e não somos. O ensaio quer provocar o pensar. Cada leitor é uma doação do Ser. Só lhe resta o diálogo com o que já é: seu próprio, possibilidades de e para possibilidades. Realizá-las é pensar dialeticamente no auto-diálogo, porque ver-se especulando-se é pensar-se. Afirmou Parmênides: “... o mesmo é pensar e ser”. Mas então o pensar é o pensar do ser, não do sujeito, que só discursa e raciocina. Aqui não questionamos o Ser, tarefa inútil. Questionamo-nos para ser. Somente sendo experienciaremos o Ser. O que aqui se diz sobre o Ser não é o importante, mas o iluminar que ele pode desencadear em cada um, num processo que Guimarães Rosa denomina no conto “O espelho”: tirar as máscaras, culminando no “salto mortal”. E Pessoa/Caieiro denomina: “... raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...” (Caieiro: 2004, 84). O caminho que conduz ao Ser é o mais difícil e exige coragem, embora seja o mais leve. Nesse caminhar chegamos ao que já somos. É um caminho que conduz a lugar nenhum. Isso é difícil porque, como finitos, temos o pesado fardo de nos desfazermos dos limites. O difícil se torna dificílimo porque, ao retirarmos camada por camada, ao darmos passo por passo, além dos limites defrontamo-nos com o abismo: o Nada, que abarca tanto o infinito externo quanto o interno. Ambos nos projetam na solidão angustiante da nulidade. Se o abismo é o Nada, a solidão é o Silêncio da claridade, da inteireza. Sendo, compreendemos que solidão não é estar só, mas só ser, abertura de plenitude.

Ser é agir. Neste, três são os limites em que a vida nos joga: o conhecer, o ver, o sentir. Não há porque temer esses três limites em que podemos experienciar a proximidade do que somos. Obedientes ao desafio do destino de sermos o que somos, é necessário deixá-los ser na vigência do distanciar, para que ele se torne a maior proximidade. Para tanto, para cada um de nós, não basta conhecer, é necessário ser o que se conhece, não basta ver, é necessário ser o que se vê, não basta sentir, é necessário ser o que se sente. Como? Na renúncia de tudo que nos distancia de ser, acontecerá a maior proximidade, pois o ser é tão próximo que até já o somos. As grandes obras de arte e de pensamento movem-se, no fundo, no horizonte das questões da distância e da proximidade de ser pela renúncia, pois a renúncia não tira, dá. Mas então todos os nossos empenhos serão ambíguos: tanto mais nos empenhamos pelos bens, quanto mais a eles temos de renunciar, porque o sem-limite do que somos não cessa de nos atrair como o penhor de todos os nossos empenhos: consumarmos o que já somos. De Ser só podemos dizer, conhecer, ver, sentir, pensar. Mais nada? Não. Falta-nos o único penhor de todos os nossos empenhos e desempenhos: amar, que não se reduz ao deixar-se envolver pela paixão do sentir. Amar é o deixar-se tomar pelo advento do mistério de Ser, permanente desafio. No Ser, enquanto amar, acontecem duas dimensões indissociáveis e que, geralmente, são dicotomizadas na determinação do Ser pelo conhecer: linguagem e verdade. São elas dizeres do Ser, e não quem escreve, escravo do limite do discurso. Ser, linguagem e verdade formam uma trindade originária, onde a unidade é o vigorar do sentido de existir. E o melhor caminho para trazê-las ao pensar é nos perguntarmos como se originou no português, a palavra Ser. Num mistério insolúvel da experienciação do Ser na língua portuguesa, cuja origem é o latim, num processo poético de manifestação em sua verdade, acontecer do Ser enquanto linguagem, Ser está ligado ao verbo latino sedere: sentar-se; morar, ficar concentrado, recolhido em repouso. O Ser tanto mais se manifesta e ilumina quanto mais vigora no repouso. Sedeo diz o sentar-se no repouso do recolhimento e também o recolher-se ao repousar de si mesmo, deixando o Silêncio nos iluminar para chegarmos à consumação do que somos. Podemos entender isso melhor dizendo que Ser, no estar como tomar posição, integra o seu vigorar no se pôr e depor (logos) do recolhimento e do acolhimento. Daí, em português, a sua identificação com o verbo sedeo, o estar sentado em recolhimento, no pouso e repouso de sua realização no Silêncio, no Vazio, no Nada poético. Todo consumar é um realizar as possibilidades de e para possibilidades que cada sendo já recebeu do Ser. Repouso não diz, por isso, falta de ação, quebra de posição, mas a sua plenitude iluminante. O Ser não muda nem permanece, vigora como Nada criativo, fonte inesgotável do sentido de ser, pois Ser é Amar.

(Este ensaio faz parte do livro coletivo Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014).


                                                                    Manuel Antônio de Castro

Nenhum comentário: