25 julho 2015

Logos



            Caso se quisesse caracterizar o Ocidente com uma única palavra, esta seria:   logos. Qualquer tradução que dela se proponha é insuficiente. Logos, como o Tao chinês, disse Heidegger, é intraduzível. Levar o leitor a apreender essa intraduzibilidade e a tomar conhecimento das vias que suas traduções abriram no Ocidente é esta a difícil tarefa. O maior pensador do logos foi Heráclito, denominado, em vista disso, o obscuro. Só se adentra o logos pensando e escutando a força da presença constante do silêncio, plenitude e fonte de toda fala.

Com o surgimento das Escolas Helenísticas, do logos originou-se a lógica, tendo a pretensão de se tornar o paradigma único da verdade (o que não for lógico será i-lógico, afirma-se). Daí surge a dicotomia em que se fundamenta o Ocidente metafísico: o logos dá origem à lógica e depois esta passou a determinar – pelo critério do lógico ou verdadeiro – o que é o logos. Ou seja, tudo no Ocidente gira em torno da questão da verdade. Falar da realidade, do ser, é sempre já estar pensando a questão da verdade. O que verdade implica torna-se a questão, porque verdade é ser se manifestando e jamais alguma adequação lógica, representacional. Ela é tão misteriosa como o próprio ser, do qual sempre já estamos próximos e distantes, porque a maior proximidade possível da verdade ainda é a não-verdade do sentido do ser. E isso é o logos, pois o ser é princípio (arché) e sentido (telos). Daí se originou a tradução predominante: fundamento, em grego, hypokeimenon. O abandono, aproximadamente desde o Helenismo, da aletheia pela lógica gerou o esquecimento do sentido do ser e, com isso, a compreensão invertida do que os pensadores originários diziam com logos. Nestas poucas indicações é impossível comentar tudo isso. Fica o convite ao pensar. Eis algumas traduções: 1) Fundamento; 2) Unidade; 3) Razão; 4) Necessidade/Lei do mundo; 5) Lógica; 6) Linguagem; 7) Palavra/Deus; 8) Língua/código; 9) Fala/discurso; 10) Signo/semântica 11) Coletividade. Podemos reunir estas traduções em três grupos. 1º. Diz respeito ao logos quanto à questão do princípio de tudo, dando origem às traduções: 1, 2, 3, 4; 2º. Verdade: 5, 6; 3º. Narrar ou discursar, dependendo da ambiguidade do segundo: 7, 8, 9, 10, 11. Então, segundo a determinação do que seja verdade, os grupos primeiro e terceiro serão lidos de uma maneira até oposta. Porém, o que aí se decide é algo radical: o que seja ser/realidade e ser humano. Este horizonte das traduções foi esquecido e elas passam a bastar-se por si mesmas, como, absurdamente, se auto-originassem. Contudo, essas duas questões não podem ser separadas, o que acontece desde que se instituíram as disciplinas e no lugar de questão só se fala de conhecimento disciplinar. Porém, a questão de todo pensar originário e poético será sempre a referência de Ser e Essência do homem. Esse “e” não é partícula gramatical. É o abismo em que desde sempre nos vemos projetados como entre-ser. No fundo, esse “e” é o logos, daí ele tanto se referir ao Ser quanto ao homem.

Para adentramos essas questões, tomemos uma sentença grega e suas traduções. Estas implicam as questões, pois traduzir é interpretar, que é a escuta do sentido do silêncio, da linguagem. Para interpretar já devemos vigorar no Ser. A sentença define o homem: Dzoion logon echon. A tradução latina, esquecendo o vigor do logos, propõe: (Homem) animal rationale, animal racional. Uma outra tradução diz: (Homem) animal que fala. As duas traduções só aparentemente são diferentes, pois a razão causal e científica determinará o que se entende por fala ou discurso. Não podemos reduzir dzoion a animal e logon a racional. Dzoion é Vida. Os latinos reduziram physis a natureza. Pela lógica, ela é composta de seres inanimados e animados. E estes divididos em racionais e irracionais. Isso é classificação científica, racional. Logos foi traduzido por ratio, razão. E esta se tornou a causa, isto é, o fundamento do universo. O fundamento teve duas versões. Pela primeira, torna-se Deus/palavra. Dominou desde a implantação do Cristianismo até a Modernidade. Apoia-se, sobretudo, no início do evangelho de São João (90 d. C), quando afirma, referindo-se a Cristo, filho de Deus: “En archei ho logos”. “No princípio era a Palavra”, traduz-se. Temos aí a ligação do primeiro grupo com o terceiro: fundamento e linguagem. Ele escreveu no grego da Koiné, isto é, do Helenismo (300 anos a.C). Estava aberta a possibilidade para a outra tradução: “homem, animal que fala”, pois ele é uma criação de Deus/fundamento. Quando a Modernidade substitui a teo-logia pela antropo-logia, o fundamento/logos torna-se razão: autor, Criador, causa. E a linguagem passa a ser fundamentada pela ciência linguística. Como o conhecimento científico é essencialmente funcional, a linguagem reduziu-se às suas funções comunicativas e sociais, isto é, ao discurso. Quando o fundamento tornou-se causa (ratio/razão), todo objeto do conhecimento científico passou a ser estudado pelo princípio das quatro causas: material, formal, eficiente e final, proposto por Aristóteles. É uma confusa mistura de noções. Matéria passou a ser confundida com linguagem e conteúdo, forma com meios, eficiente com subjetividade, final com função e meta. E é isso que é ensinado hoje, onde o logos originário de Heráclito ficou esquecido.

É do verbo legein que depreendemos o que é o logos. O radical indo-europeu desse verbo é lg. A experiência inaugural a que ele remete é: pôr, depor, dispor, propor e compor. Porém, os significados correntes são: reunir, dizer, ler, narrar, colher e repousar. Como isto se deu no acontecer poético e dialético? É que o doar-se do ser no pôr não é um simples justapor, como se para fazer uma casa bastasse justapor os tijolos. No pôr do ser conduz-se o que se põe para o pouso de seu ser, dando-lhe sentido em sua realização. Tal processo implica, portanto, ordenamentos e diferenciações de posições. Trata-se, em vista disso, de um acolhimento diferenciado por identidade, estimulando a diferenciação. Na raiz de todo é e não é age o vigor de legein, gerando posições e compondo oposições. Isto pelo poder criador (pondo) e destruidor da linguagem (depondo). Em virtude disso, na sua forma medial legesthai, experiencia-se o recolher-se no repouso de si mesmo e dos outros. Recolher é acolher. Tal recolher-se à vigência do silêncio torna-se a possibilidade de todo diálogo e dialética. É que somos acolhidos pelo vazio, na vigência do nada criativo. Quando nos recolhemos a nossa morada, a linguagem, é no vazio do silêncio do logos que encontramos o que somos. Das experienciações originárias de legein, podemos configurar três campos de significados: reunir e concentrar; assentar e repousar; relacionar, enumerar, narrar.

Se agora voltarmos à sentença grega, que define o homem, podemos, poeticamente, traduzi-la: Alguém de quem o logos cuida para ser o que é.

 (Este ensaio faz parte do livro coletivo Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2014) 

                                                           Manuel Antônio de Castro

Um comentário:

Eduardo disse...

Que maravilha!
Abraços, professor!