A questão do
Fundamento se confunde com a filosofia como questão em seu desdobramento e
versões na História do Ocidente. Sem estas não há Ocidente e nem haveria hoje:
Era da Técnica, Sociedade do Conhecimento, Globalização. É uma questão que
gerou múltiplas denominações: princípio, origem, unidade, essência, ideia, logos, causa, Criador, Deus, Verbo, substância, paradigma, arquétipo, modelo,
base, suporte, inconsciente, predominando hoje a denominação razão.
Em todos os mitos o ser humano pensa a referência entre o
enigma do universo e seu próprio enigma. São os mitos de origem. Mas o Ocidente
encaminhou tais reflexões numa tensão entre mythos
e logos, inaugurando a tradição
filosófica centrada na questão da physis,
do Ser (realidade). Cedo este foi esquecido e passou-se a falar de ente (to on), enquanto totalidade do real (ta onta). Isso gerou diferentes encaminhamentos do “on”, pois tratava-se sempre da procura do principiar de tudo
enquanto sentido do Ser, advindo no logos, a linguagem da unidade. Aristóteles já os constata, dizendo:
“To on legetai pollachos”, “O real diz-se de muitas maneiras”.
Pensar a unidade desses dizeres é pensar o logos
do on, como lugar próprio do
Fundamento. Há um deslocamento sutil do Ser (physis) para o ente/o real (to
on), na procura do Fundamento. Este é o que está metá-physis, além da physis, originando
a Metafísica. Tal esquecimento
consolidou-se com o Helenismo, que estruturou as reflexões, presentes nas obras
dos pensadores gregos, em três ordens de conhecimento: he episteme physike, he episteme ethike, he episteme logike (o conhecimento físico, ético, lógico),
englobadas pela Metafísica.
Historicamente, primeiro deslocou-se o pensar da physis (ser) para o on (ente); depois, para o logos (linguagem); e
agora para a episteme, pois era esta
o traço comum às três ordens de conhecimento. Episteme passou a ser o Fundamento, numa interdependência com o conhecimento lógico (episteme logike), de onde surge o
conhecimento verdadeiro. O Fundamento depende, portanto, da episteme e da lógica. Não basta conhecer é necessário que seja lógico.
A tripla episteme terá
um novo encaminhamento com a irrupção do Cristianismo. Por um lado, as Escolas
Helenísticas caem no poder doutrinal do Cristianismo, por outro, este é
helenizado, radicalizando-se mais o Fundamento, pois agora identificam o logos com Cristo, que é o Filho de Deus
(Theos). O Fundamento torna-se
metafísico e teológico, reforçando a entificação ambígua, centrada no homem.
Fala-se de Deus, mas pensa-se em Cristo. Fala-se de Cristo e pensa-se em Deus-homem.
Filosoficamente, a Idade Média torna o Fundamento
metafísico-teológico dominante através da criação das Universidades, para
ensino da teologia, a que estava
submetida a filosofia. Seu modelo continua na Modernidade, embora tenhamos uma
nova concepção de Fundamento, centralizado no homem (Antropologia), enquanto
raciocinar e criticar. Originariamente, criticar diz-se em grego: krinein. Deste formou-se o substantivo krisis, o juízo que é verdadeiro porque é
o acontecer da physis enquanto a-letheia, operada no logos, a linguagem da unidade. Assim pensou
Heráclito. A mudança profunda se inicia com Descartes, partindo da dúvida metódica,
premissa do conhecimento verdadeiro. Duvidar é raciocinar, exercitando,
metodologicamente, um criticar. Dúvida, método, crítica e proposição inauguram
a Modernidade, pois tudo passa a se centralizar no novo Fundamento, deslocando
a verdade para o conhecimento epistêmico da razão.
Ele é gestado e desenvolvido nas obras de Descartes, Leibniz, Kant. Foi,
porém, Leibniz que o sintetizou na proposição: Nihil est sine ratione (Nada
é sem razão). Este Fundamento é radicalmente inovador, pois diz: tudo que é
somente é enquanto vigora na razão. Isto
implica: o real é em sua efetividade; o possível é em sua possibilidade; o
necessário é em sua necessidade. O Fundamento ou razão fundamenta o juízo enquanto proposição verdadeira. Portanto,
só há verdade caso lhe possa ser dado um Fundamento. É a partir deste que uma
proposição se torna verdadeira. Não é
mais o Ser que faz a conexão entre sujeito e predicado, mas o Fundamento, a razão. Esta se apresenta na proposição e
legitima, desde o Fundamento, a verdade. É na proposição da razão que se percebe a verdade, pois dela dá conta e a assegura por tal cálculo. A razão
deve dar conta dessa percepção, mas quem a fundamenta?
É quem percebe. Porém, só há
perceber se houver também um perceber-se a
partir do Fundamento. E para tal é
necessário que ele já esteja no homem como aquilo que lhe é íntimo, interior: a
razão. Acontece então o jogo do
especular, presentificado no espelho. O
homem não apenas vê, mas se vê a partir do que lhe é concedido pela razão. Por esta o que é e o como é
somente são verdadeiros no como se
conhecer, quando se apercebe (especula)
e o expressa, o representa, na pro-posição, a partir da razão. Esta é sub-jetiva, interior,
enquanto é especular. O Fundamento está no su-jeito,
na sua interioridade, que se torna o lugar da essência de todo fazer
humano, pelo qual faz o real e nele pode interferir. O homem torna-se autor e
criador. O Fundamento de tudo só pode
ser o homem, mas entendido enquanto age racionalmente, tornando-se a causa racional.
O raciocínio que dá conta do Fundamento, calculando (matematização), e o
representa, é aquele que reflete, especula
enquanto consciência. Desde então
qualquer juízo ou proposição só é verdadeira quando se ex-puser a razão,
dando-se conta do conhecimento matematizável, exato. Este é algo inato ao ser
humano, mas agora tratava-se de saber (scire)
e saber que sabe (cum-scire). Desde
então todo conhecimento é conhecimento da consciência,
sem a qual não há conhecimento verdadeiro. A episteme se torna ciência no sentido de consciência. Esta é necessariamente crítica (Kant). Na e pela Crítica, Kant funda o conhecimento dito
transcendental, onde algo só é no como se
conhece. Não basta ver, é necessário que se dê conta da razão em tudo que se conhece, só assim
será crítico e verdadeiro, pois surge através de uma análise (ex-plicativa),
fundamentada na consciência. Ver e se
ver é o processo de conhecimento especulativo.
Dizer especulativo é conhecer-se no espelho, como possibilidade de encontrar
a razão, o Fundamento. Espelho diz
visão iluminada. Desse modo, passa-se a afirmar algo verdadeiro desde que conhecido
na luz da razão. Ela constitui o
Fundamento de todo conhecimento científico epistémico moderno.
A razão ou Fundamento centraliza-se no espelho. Mas nele se
descobre um abismo sem fundo (inconsciente), que funda a proposição e o
Fundamento (cf. Fundar e fundamentar. CASTRO: 2011). Na proposição, enquanto
conhecimento crítico-formal, temos a metafísica humanista, a metafísica do
Fundamento, que somente se refere aos entes.
A ciência nunca considera o Nada, o
silêncio, o vazio, inacessíveis à razão. Cabe
à arte fazê-lo, porque vigora no fundar e se projeta além do Fundamento, mergulhando
na procura do sentido do Ser, num
diálogo dialético entre fala e silêncio, raciocinar e pensar, ente e Ser.
Manuel Antônio de Castro
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