29 julho 2015

Fundamento



       A questão do Fundamento se confunde com a filosofia como questão em seu desdobramento e versões na História do Ocidente. Sem estas não há Ocidente e nem haveria hoje: Era da Técnica, Sociedade do Conhecimento, Globalização. É uma questão que gerou múltiplas denominações: princípio, origem, unidade, essência, ideia, logos, causa, Criador, Deus, Verbo, substância, paradigma, arquétipo, modelo, base, suporte, inconsciente, predominando hoje a denominação razão.
Em todos os mitos o ser humano pensa a referência entre o enigma do universo e seu próprio enigma. São os mitos de origem. Mas o Ocidente encaminhou tais reflexões numa tensão entre mythos e logos, inaugurando a tradição filosófica centrada na questão da physis, do Ser (realidade). Cedo este foi esquecido e passou-se a falar de ente (to on), enquanto totalidade do real (ta onta). Isso gerou diferentes encaminhamentos do “on”, pois tratava-se sempre da procura do principiar de tudo enquanto sentido do Ser, advindo no logos, a linguagem da unidade. Aristóteles já os constata, dizendo: “To on legetai pollachos”, “O real diz-se de muitas maneiras”. Pensar a unidade desses dizeres é pensar o logos do on, como lugar próprio do Fundamento. Há um deslocamento sutil do Ser (physis) para o ente/o real (to on), na procura do Fundamento. Este é o que está metá-physis, além da physis, originando a Metafísica. Tal esquecimento consolidou-se com o Helenismo, que estruturou as reflexões, presentes nas obras dos pensadores gregos, em três ordens de conhecimento: he episteme physike, he episteme ethike, he episteme logike (o conhecimento físico, ético, lógico), englobadas pela Metafísica.
Historicamente, primeiro deslocou-se o pensar da physis (ser) para o on (ente); depois, para o logos (linguagem); e agora para a episteme, pois era esta o traço comum às três ordens de conhecimento. Episteme passou a ser o Fundamento, numa interdependência com o conhecimento lógico (episteme logike), de onde surge o conhecimento verdadeiro. O Fundamento depende, portanto, da episteme e da lógica. Não basta conhecer é necessário que seja lógico.
A tripla episteme terá um novo encaminhamento com a irrupção do Cristianismo. Por um lado, as Escolas Helenísticas caem no poder doutrinal do Cristianismo, por outro, este é helenizado, radicalizando-se mais o Fundamento, pois agora identificam o logos com Cristo, que é o Filho de Deus (Theos). O Fundamento torna-se metafísico e teológico, reforçando a entificação ambígua, centrada no homem. Fala-se de Deus, mas pensa-se em Cristo. Fala-se de Cristo e pensa-se em Deus-homem.
Filosoficamente, a Idade Média torna o Fundamento metafísico-teológico dominante através da criação das Universidades, para ensino da teologia, a que estava submetida a filosofia. Seu modelo continua na Modernidade, embora tenhamos uma nova concepção de Fundamento, centralizado no homem (Antropologia), enquanto raciocinar e criticar. Originariamente, criticar diz-se em grego: krinein. Deste formou-se o substantivo krisis, o juízo que é verdadeiro porque é o acontecer da physis enquanto a-letheia, operada no logos, a linguagem da unidade. Assim pensou Heráclito. A mudança profunda se inicia com Descartes, partindo da dúvida metódica, premissa do conhecimento verdadeiro. Duvidar é raciocinar, exercitando, metodologicamente, um criticar. Dúvida, método, crítica e proposição inauguram a Modernidade, pois tudo passa a se centralizar no novo Fundamento, deslocando a verdade para o conhecimento epistêmico da razão. Ele é gestado e desenvolvido nas obras de Descartes, Leibniz, Kant. Foi, porém, Leibniz que o sintetizou na proposição: Nihil est sine ratione (Nada é sem razão). Este Fundamento é radicalmente inovador, pois diz: tudo que é somente é enquanto vigora na razão. Isto implica: o real é em sua efetividade; o possível é em sua possibilidade; o necessário é em sua necessidade. O Fundamento ou razão fundamenta o juízo enquanto proposição verdadeira. Portanto, só há verdade caso lhe possa ser dado um Fundamento. É a partir deste que uma proposição se torna verdadeira.  Não é mais o Ser que faz a conexão entre sujeito e predicado, mas o Fundamento, a razão. Esta se apresenta na proposição e legitima, desde o Fundamento, a verdade. É na proposição da razão que se percebe a verdade, pois dela dá conta e a assegura por tal cálculo. A razão deve dar conta dessa percepção, mas quem a fundamenta? É quem percebe. Porém, só há perceber se houver também um perceber-se a partir do Fundamento. E para tal é necessário que ele já esteja no homem como aquilo que lhe é íntimo, interior: a razão. Acontece então o jogo do especular, presentificado no espelho. O homem não apenas vê, mas se vê a partir do que lhe é concedido pela razão. Por esta o que é e o como é somente são verdadeiros no como se conhecer, quando se apercebe (especula) e o expressa, o representa, na pro-posição, a partir da razão. Esta é sub-jetiva, interior, enquanto é especular. O Fundamento está no su-jeito, na sua interioridade, que se torna o lugar da essência de todo fazer humano, pelo qual faz o real e nele pode interferir. O homem torna-se autor e criador. O Fundamento de tudo só pode ser o homem, mas entendido enquanto age racionalmente, tornando-se a causa racional. O raciocínio que dá conta do Fundamento, calculando (matematização), e o representa, é aquele que reflete, especula enquanto consciência. Desde então qualquer juízo ou proposição só é verdadeira quando se ex-puser a razão, dando-se conta do conhecimento matematizável, exato. Este é algo inato ao ser humano, mas agora tratava-se de saber (scire) e saber que sabe (cum-scire). Desde então todo conhecimento é conhecimento da consciência, sem a qual não há conhecimento verdadeiro. A episteme se torna ciência no sentido de consciência. Esta é necessariamente crítica (Kant). Na e pela Crítica, Kant funda o conhecimento dito transcendental, onde algo só é no como se conhece. Não basta ver, é necessário que se dê conta da razão em tudo que se conhece, só assim será crítico e verdadeiro, pois surge através de uma análise (ex-plicativa), fundamentada na consciência. Ver e se ver é o processo de conhecimento especulativo. Dizer especulativo é conhecer-se no espelho, como possibilidade de encontrar a razão, o Fundamento. Espelho diz visão iluminada. Desse modo, passa-se a afirmar algo verdadeiro desde que conhecido na luz da razão. Ela constitui o Fundamento de todo conhecimento científico epistémico moderno.
A razão ou Fundamento centraliza-se no espelho. Mas nele se descobre um abismo sem fundo (inconsciente), que funda a proposição e o Fundamento (cf. Fundar e fundamentar. CASTRO: 2011). Na proposição, enquanto conhecimento crítico-formal, temos a metafísica humanista, a metafísica do Fundamento, que somente se refere aos entes. A ciência nunca considera o Nada, o silêncio, o vazio, inacessíveis à razão. Cabe à arte fazê-lo, porque vigora no fundar e se projeta além do Fundamento, mergulhando na procura do sentido do Ser, num diálogo dialético entre fala e silêncio, raciocinar e pensar, ente e Ser.
                                   Manuel Antônio de Castro

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