29 julho 2015

Metafísica

     

O Leitor precisa conhecer este Dicionário digital, inovador. Acesse.


O ser humano, desde sempre, já está lançado no mistério da physis, o ser, a realidade. O mistério lhe causa profunda admiração e o leva a questionar. Questionar é perguntar pelo saber e não-saber. E se perguntou pelo princípio da physis. Princípio abrange, em grego, a tensão e sentido de arche e telos. Sentido diz o tender para o consumar de tudo que é. Nele já sempre estamos imersos, mas é necessário deixá-lo eclodir enquanto pensamento. Princípio é, portanto, a questão do originário do ser, que não deve ser confundido com origem. A Metafísica surgiu de duas instâncias: da dicotomia entre originário e origem; e da verdade lógica que a fundamentava. Nelas foi esquecido o sentido do ser.

O nome Metafísica é circunstancial e surgiu em referência às obras de Aristóteles. Nestas nunca aparece a palavra metafísica, mas prote philosophia, filosofia primeira, onde se pensa a questão do princípio ou arche/telos. A substituição da prote philosophia por Metafísica aconteceu de um modo estranho. Andronico de Rodes, no primeiro século a. C., fundamentado no Helenismo, que transformou o pensar em disciplinas, resolveu ordenar os escritos de Aristóteles. Quando se defrontou com aqueles que tratavam da prote philosophia não encontrou, no Helenismo, uma disciplina correspondente onde pudessem ser incluídos. Simplesmente colocou tais livros depois dos livros que tratavam da physis: ta metá ta physis, em grego. O nome da posição nada dizia sobre a temática de tais livros. Estudando-os passaram a denominar seu conteúdo metaphysica. Daí surgiu a disciplina Metafísica que fez história no Ocidente, numa interpretação fundamentada e ensinada, inicialmente, a partir das posições das Escolas Helenísticas, posteriormente da Escolástica medieval e, finalmente, da Modernidade. O que era obra de pensamento a propósito da prote philosophia foi esquecido. No seu lugar surgiu a Metafísica, manual de conhecimentos, ensinados já dentro da verdade lógica como disciplina.  

A Metafísica pensa a realidade, a physis, como ta onta, a totalidade dos entes, ou seja, o ente enquanto ente, como se este fosse o fundamento da physis, do ser. Disso resultou um ser geral abstrato e lógico-formal, ao qual nada de real corresponde. Baseado nele, a gramática interpreta o ser na proposição como verbo de ligação, sem nenhum conteúdo. Proposição diz-se em grego krisis, juízo lógico-afirmativo do que é verdadeiro ou falso. Portanto, a procura da Metafísica pelo fundamento sempre foi em relação aos entes, no sentido de que se procurava e afirmava a unidade na multiplicidade dos entes. Tal fundamento é o que está além da multiplicidade (ta onta), ou em grego, metá-physis. Era um equívoco da Metafísica, pois pensava-se o fundamento como o metá-on. Contraditoriamente, isso deu origem aos futuros humanismos, pois é o ser humano que se diferencia dos demais entes e será interpretado como o  fundamento. Humanismo e Metafísica se identificam. Além ou aquém da physis/ser há nada, pois todo on é e não-é. Isso contradiz a lógica. Coloca-se, então, para a Metafísica a questão: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” É o impensado da Metafísica humanista. Contra seus limites lógicos, Heidegger afirma: “O Nada, enquanto outro do ente, é o véu do Ser” (Heidegger, 1969, 58).  Aos seres humanos só é dado pensar o sentido do ser. Portanto, a língua da Metafísica refere-se ao ente enquanto ente, pois nunca houve uma Metafísica do nada. O ser nos advém como questão do sentido. Essencialmente, a Metafísica se compõe numa dupla decisão e cisão: ocupou-se do fundamento, instalando uma dicotomia entre fundamento e fundado, ser e ente, realidade e real, criador e criatura; identificou esse fundamento com o logos, não o de Heráclito, mas aquele dominante nas Escolas Helenísticas, do qual se originou a lógica. Nelas, a verdade e não-verdade da aletheia, onde vigorava a tensão de desvelamento e velamento da physis, conforme nos diz a sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei: A realidade desvelante é vir-a-ser no velar-se, já tinha sido substituída pela verdade da lógica sofística, base também dos futuros humanismos. Ela é reforçada quando o Cristianismo interpretou e identificou o logos com Deus, a palavra criadora e reveladora da verdade, tornando-se a verdade única, absoluta, pois lógica e divina. Os sofistas já tinham reduzido o logos a discurso, operando na proposição como verdade lógica. E desde então só é verdadeiro o que for lógico, o não-verdadeiro é ilógico. A verdade da Metafísica torna-se também dicotômica, pois saiu do âmbito do ser, ficando prisioneira do fundamento, que será identificado na cultura romana com homem. Daí terem surgido nela os Studia humanitatis, estudos fundamentados no e em torno do homem.

Da conjunção de fundamento e de verdade originou-se uma Metafísicas de duas faces: a Teológica, transcendente, e a Antropológica, imanente, dando origem à dicotomia entre realidade e verdade espiritual (Idade Média) e realidade e verdade material (Modernidade). Essencialmente, nada mudou, houve apenas a inversão do fundamento teológico para o antropológico.

Baseadas na Metafísica, as leituras interpretativas das obras de pensamento e da arte deram origem a uma língua metafísica, avessa ao questionar, que hoje domina todos as disciplinas, seja científicas, sejam crítico-artísticas. Nela opera uma sucessão de esquecimentos: o ser é substituído pelo ente, a coisa pela proposição, o princípio pelo fundamento, o sentido pelo significado, a linguagem pela língua, o verbal pelo substantivo.

A Metafísica radicalizou-se na questão do homem, originando os futuros Humanismos. O homem não é um ente entre outros entes. O que o diferencia? Já diz uma antiga sentença grega: Anthropos dzoion logon echon. Tanto a Metafísica quanto o Humanismo se fundamentam na verdade lógica. É que logon foi traduzido por: discurso e razão. Pela verdade lógica, razão se torna o fundamento, pois o homem é aquele que discursa ou raciocina. Eis aí o pleno domínio da concepção metafísica ou humanista. Na verdade da aletheia, homem é doação de quem a linguagem cuida no e pelo pensar do ser. No pensar é o ser que se doa enquanto sentido da linguagem. A compreensão do que seja o ser humano na verdade da aletheia reúne o legein de Heráclito e o noein de Parmênides, pois como afirma este: ser e pensar são um e o mesmo. Neste horizonte, redefine-se a meta-physica enquanto pensamento e arte. Metá- também significa: entre. O homem é o on meta-físico, o entre-on-e-physis: finito e não-finito.

Crítico profundo da Metafísica, Heidegger propôs o diálogo fundado no pensar e na arte. Realiza-se pelo questionamento do fundamento e da verdade lógica, bases da língua metafísica e humanista, diferenciando fundar e fundamentar. O fundar opera em três dimensões: doar, fundamentar e principiar. Abre-se assim a possibilidade de interpretar todas as obras de pensamento e arte no horizonte da linguagem, verdade, mundo e sentido do ser, dimensionando a língua metafísica pelo operar dialético do pensar poético.


                                                                  Manuel Antônio de Castro


Um comentário:

Masil Masil disse...

Obrigada, professor, por tonar essas informações acessíveis na web.