Caso
se quisesse caracterizar o Ocidente com uma única palavra, esta seria:
logos. Qualquer tradução que dela se proponha é
insuficiente. Logos, como o Tao chinês, disse Heidegger, é
intraduzível. Levar o leitor a apreender essa intraduzibilidade e a tomar
conhecimento das vias que suas traduções abriram no Ocidente é esta a difícil
tarefa. O maior pensador do logos foi Heráclito, denominado, em vista
disso, o obscuro. Só se adentra o logos pensando e escutando a
força da presença constante do silêncio, plenitude e fonte de toda fala.
Com o surgimento das Escolas Helenísticas,
do logos originou-se a lógica, tendo a pretensão de se tornar o
paradigma único da verdade (o que não for lógico será i-lógico, afirma-se).
Daí surge a dicotomia em que se fundamenta o Ocidente metafísico: o logos
dá origem à lógica e depois esta passou a determinar – pelo critério do lógico
ou verdadeiro – o que é o logos. Ou seja, tudo no Ocidente gira em torno
da questão da verdade. Falar da realidade, do ser, é sempre já estar pensando a
questão da verdade. O que verdade implica torna-se a questão, porque verdade é
ser se manifestando e jamais alguma adequação lógica, representacional. Ela é
tão misteriosa como o próprio ser, do qual sempre já estamos próximos e distantes,
porque a maior proximidade possível da verdade ainda é a não-verdade do sentido
do ser. E isso é o logos, pois o ser é princípio (arché)
e sentido (telos). Daí se originou a tradução
predominante: fundamento, em grego, hypokeimenon. O abandono,
aproximadamente desde o Helenismo, da aletheia pela lógica gerou o
esquecimento do sentido do ser e, com isso, a compreensão invertida do que os
pensadores originários diziam com logos. Nestas poucas indicações é
impossível comentar tudo isso. Fica o convite ao pensar. Eis algumas traduções:
1) Fundamento; 2) Unidade; 3) Razão; 4) Necessidade/Lei do mundo; 5) Lógica; 6)
Linguagem; 7) Palavra/Deus; 8) Língua/código; 9) Fala/discurso; 10)
Signo/semântica 11) Coletividade. Podemos reunir estas traduções em três grupos.
1º. Diz respeito ao logos quanto à questão do princípio de tudo,
dando origem às traduções: 1, 2, 3, 4; 2º. Verdade: 5, 6; 3º. Narrar ou
discursar, dependendo da ambiguidade do segundo: 7, 8, 9, 10, 11. Então,
segundo a determinação do que seja verdade, os grupos primeiro e terceiro serão
lidos de uma maneira até oposta. Porém, o que aí se decide é algo radical: o
que seja ser/realidade e ser humano. Este horizonte das traduções foi esquecido
e elas passam a bastar-se por si mesmas, como, absurdamente, se
auto-originassem. Contudo, essas duas questões não podem ser separadas, o que
acontece desde que se instituíram as disciplinas e no lugar de questão
só se fala de conhecimento disciplinar. Porém, a questão de todo pensar
originário e poético será sempre a referência de Ser e Essência do homem. Esse
“e” não é partícula gramatical. É o abismo em que desde sempre nos vemos
projetados como entre-ser. No fundo, esse “e” é o logos, daí ele
tanto se referir ao Ser quanto ao homem.
Para adentramos essas questões,
tomemos uma sentença grega e suas traduções. Estas implicam as questões, pois
traduzir é interpretar, que é a escuta do sentido do silêncio, da linguagem.
Para interpretar já devemos vigorar no Ser. A sentença define o homem: Dzoion
logon echon. A tradução latina, esquecendo o vigor do logos, propõe:
(Homem) animal rationale, animal racional. Uma outra tradução diz:
(Homem) animal que fala. As duas traduções só aparentemente são
diferentes, pois a razão causal e científica determinará o que se entende por fala
ou discurso. Não podemos reduzir dzoion a animal e logon
a racional. Dzoion é Vida. Os latinos reduziram physis a
natureza. Pela lógica, ela é composta de seres inanimados e animados. E
estes divididos em racionais e irracionais. Isso é classificação científica,
racional. Logos foi traduzido por ratio, razão. E esta se tornou
a causa, isto é, o fundamento do universo. O fundamento
teve duas versões. Pela primeira, torna-se Deus/palavra. Dominou desde a
implantação do Cristianismo até a Modernidade. Apoia-se, sobretudo, no início
do evangelho de São João (90 d. C), quando afirma, referindo-se a Cristo, filho
de Deus: “En archei ho logos”. “No princípio era a Palavra”, traduz-se.
Temos aí a ligação do primeiro grupo com o terceiro: fundamento e linguagem.
Ele escreveu no grego da Koiné, isto é, do Helenismo (300 anos a.C).
Estava aberta a possibilidade para a outra tradução: “homem, animal que fala”,
pois ele é uma criação de Deus/fundamento. Quando a Modernidade substitui a
teo-logia pela antropo-logia, o fundamento/logos torna-se razão: autor, Criador, causa. E
a linguagem passa a ser fundamentada pela ciência linguística. Como o
conhecimento científico é essencialmente funcional, a linguagem
reduziu-se às suas funções comunicativas e sociais, isto é, ao discurso. Quando
o fundamento tornou-se causa (ratio/razão), todo objeto do conhecimento
científico passou a ser estudado pelo princípio das quatro causas: material,
formal, eficiente e final, proposto por Aristóteles. É uma confusa mistura de
noções. Matéria passou a ser confundida com linguagem e conteúdo, forma com
meios, eficiente com subjetividade, final com função e meta. E é isso que é
ensinado hoje, onde o logos originário de Heráclito ficou esquecido.
É do verbo legein que
depreendemos o que é o logos. O radical indo-europeu desse verbo é lg.
A experiência inaugural a que ele remete é: pôr, depor, dispor, propor
e compor. Porém, os significados correntes são: reunir,
dizer, ler, narrar, colher e repousar. Como isto se deu no acontecer poético e
dialético? É que o doar-se do ser no pôr não é um simples justapor, como se
para fazer uma casa bastasse justapor os tijolos. No pôr do ser conduz-se o que
se põe para o pouso de seu ser, dando-lhe sentido em sua realização. Tal
processo implica, portanto, ordenamentos e diferenciações de posições.
Trata-se, em vista disso, de um acolhimento diferenciado por identidade,
estimulando a diferenciação. Na raiz de todo é e não é age o vigor de legein,
gerando posições e compondo oposições. Isto pelo poder
criador (pondo) e destruidor da linguagem (depondo). Em virtude disso, na sua
forma medial legesthai, experiencia-se o recolher-se no repouso de si
mesmo e dos outros. Recolher é acolher. Tal recolher-se à vigência do silêncio
torna-se a possibilidade de todo diálogo e dialética. É que somos
acolhidos pelo vazio, na vigência do nada criativo. Quando nos recolhemos a
nossa morada, a linguagem, é no vazio do silêncio do logos que
encontramos o que somos. Das experienciações originárias de legein, podemos
configurar três campos de significados: reunir e concentrar; assentar e
repousar; relacionar, enumerar, narrar.
Se agora voltarmos à sentença
grega, que define o homem, podemos, poeticamente, traduzi-la: Alguém de quem o logos
cuida para ser o que é.
Manuel Antônio de Castro
Um comentário:
Que maravilha!
Abraços, professor!
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