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Diz Caieiro:
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
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Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos
(Caeiro: 2004, 84)
Para o poeta, a póiesis e o pensamento consistem num despir-se do que aprendeu e deixar o inaugural acontecer. Porém, esta eclosão, este espanto e advento do extraordinário, da experienciação da poesia como pensamento poético exige, para se despir, que vá além do modo de lembrar que lhe ensinaram. Modo diz respeito ao método, aos caminhos conceituais pelos quais se circunscreve e silencia o “deixar a realidade ser realidade”. Na metafísica ocidental predomina a metodologia lógico-conceitual, e tudo o que não couber aí fica excluído. É isso o que nos “ensinam”. O pensador-poeta vai direto à questão: sem se pensar a questão do método não se descobre o originário. E como o fazer? Raspando “a tinta com que me pintaram os sentidos.” Deixar a experienciação poética de pensamento do real acontecer é não só difícil mas extremamente doloroso. Raspar na própria carne as tintas da razão e despir-se de toda a teia conceitual exige uma abertura radical, a que nem todos se pré-dispõem e se entregam. É mais fácil o pretenso distanciamento objetivo da análise. E colhem representações abstratas, conceituais e funcionais. São as tintas com que se revestem e revestem o vigor da poiesis e linguagem dos poemas. Correntes Críticas são tintas com que se desfiguram as coisas em sua simplicidade de serem coisas e não mais que coisas, sem suportes teóricos que as representem e conceituem. Não há suporte que suporte a insuportável simplicidade da coisa. Não há suporte que suporte a insustentável leveza da vida. Não há suporte que suporte a imponderável densidade da coisa, do ser.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
(Caeiro: 2004, 60)
Não se trata de um ato externo, mas de um mergulho profundo em nossa alma vestida e revestida de todo o aparato conceitual corrente, sobretudo no modo como se tratam as artes. Mais do que um aprendizado, o dos conceitos, é necessária uma aprendizagem. O aprendizado pode ser ensinado. A aprendizagem só se pode experienciar. Neste só se aprende pelo “desaprender”. Exige uma ascese e uma renúncia. A renúncia não tira, dá. É o desvelo amoroso na leitura poética da obra de arte.
CAEIRO, Alberto. In: Fernando Pessoa. S. Paulo, Cia. das Letras, 2004.
Um comentário:
"Que os deuses me concedam que, despido/ De afetos, tenha a fria liberdade/ Dos píncaros sem nada." Reis.
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