12 junho 2008

Poética: permanência e atualidade



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Transformando-se, repousa.
(Heráclito, 1991: 81, sentença 84)

Certamente não deixa de causar uma certa perplexidade e estranheza no leitor o enunciado no título deste ensaio. Diante da multiplicidade de Correntes Críticas que nasceram em diferentes épocas da Modernidade e, sobretudo, hoje, tendo em vista o predomínio dos Estudos Culturais, em diferentes versões e desdobramentos críticos, ao lado de outras Correntes Críticas, como ainda querer ressuscitar a Poética em uma Pós-modernidade que se mostra fragmentada, múltipla e dispersa, que procura praticar e afirmar as diferenças? Não só aparentemente ressuscitar a Poética, mas ainda afirmá-la como permanente e atual? Como ela se quer permanente e atual quando todas as outras, depois de um certo tempo de vigência e atendendo a determinadas teorias e conjunturas contextuais, simplesmente não mais são consideradas nem praticadas e passaram a fazer parte de um passado historiográfico? E não terão as hoje dominantes, como é o caso dos Estudos Culturais e outras, a mesma sorte? (1) Não está na hora de nos perguntarmos: Será que a Poética é uma Corrente Crítica entre outras, dentro de uma certa teoria, paradigma e suporte? Poderia ela fugir à sorte de ter de fazer parte do processo historiográfico e também passar como as outras? Aliás, tudo não passa? Pode haver permanência? Por que isso acontece? O trazer para reflexão a permanência e atualidade da Poética tem não só o intuito de descer profundamente à essência originária da Poética, mas também compreender de que instâncias provêm as diferentes Correntes Críticas que não param de surgir e de perder sua força de presença no processo do percurso histórico. Mas será que sabemos o que é essencialmente o histórico? Que diferença há entre a historiografia e a História enquanto acontecer poético? (2) Será que sabemos como e por que surgiu a questão da essência, isto é, do permanente? Questões e mais questões que convidam o leitor a refletir e a questionar, para, num diálogo criativo, melhor defrontar-se com a essência originária e profundidade do horizonte histórico e humano.
Se o leitor voltar ao início deste ensaio e ler com atenção a sentença de Heráclito, não poderá negar que aí, em duas palavras apenas, muitas são as questões suscitadas. Veja bem, leitor, estamos falando de questões e não de conceitos. No decorrer do ensaio isso ficará um pouco mais claro, esperamos. Contudo, não é nada tão fácil. O hábito, já duas vezes milenar, de querer tudo reduzir a conceitos, a essências conceituais, constitui-se numa formatação educacional e mental que não deixa as questões serem questões. A questão advém sempre como e na essência originária. Qual a diferença entre as duas essências? Isso veremos e é justamente a questão central da permanência e da atualidade.
Porém, o mito, a poesia, a filosofia, o pensamento, enfim, a Poética, nasceram das questões e como questões. É que as questões precedem as perguntas e as respostas, porque elas nos advêm nos enigmas. E nenhuma resposta, que procure delimitar e circunscrever a questão em conceitos, esgota a questão, o enigma. O enigma não tem solução, só a têm os problemas e as adivinhas. Enigma provém do grego ai'nos, e significa sentença ou narração grávida de sentido, e, em vista disso, de difícil compreensão. Por isso mesmo, no grego antigo, ai'nos se aproxima de outras palavras-chaves: mythos, lógos, 'epos. No decorrer do percurso ocidental, esta aproximação ficou subjacente, porque, enigmaticamente, o que era aproximação e proximidade se tornou oposição e até exclusão entre mythos e lógos. Do lógos se originou a filosofia e esta, para se afirmar, em suas duplicidades dicotômicas, acabou em primeiro lugar por tentar excluir o mito e, em segundo lugar, por impor seus conceitos e duplicidades à Poética. Em geral, o que se conhece por Poética, no percurso metafísico ocidental está ligado à filosofia, numa leitura metafísica e reducionista da obra de Aristóteles, e não, como deve ser, às obras poéticas. Toda proximidade é dobra e o que originariamente era dobra de mythos e lógos e aí'nos e epos, se tornou duplicidades excludentes. Portanto, é importante, para compreender a permanência e atualidade da Poética como aqui vai ser tratada, que desde a separação de mythos e lógos, no Ocidente, passou-se a falar de uma Poética dupla, enquanto filosofia que dicotomiza e duplica o real, o homem e a verdade. A outra ficou esquecida com o esquecimento do ser, mas não para as obras dos poetas originários. As grandes obras poéticas continuam sempre vigentes, isto é, permanentes e atuais.
Desde o surgimento da sofística e da filosofia, a dobra cedeu o lugar ao duplo que rege os conceitos e os gêneros. Quanto ao mythos, ao ai'nos, ao 'epos e ao lógos, ou seja, ao poético, o exemplo máximo é a obra de Sóflocles, sobretudo, Rei Édipo, que tem como fundo o Enigma com que a Esfinge desafiou Édipo. Ela, em duas perguntas, isto é, em duas questões coloca o fundo em que se move toda a história e poética do Ocidente: O que é o homem? O que é a verdade? Em torno dessas questões nos debatemos até hoje. Elas são permanentes e sempre atuais. Por isso são a essência originária da Poética. O grande problema é que das questões, dos enigmas não podemos fugir, caso contrário, elas nos engolem. Édipo só aparentemente decifrou o enigma e dele se livrou. Isso, ele o reconhece quando, no final, arranca os olhos, porque ficou, na sua travessia histórica de vida, sabendo que a resposta do enigma não é o homem, porque este tem que se defrontar com o destino, a Moira, onde a verdade, como dia e noite, faz a sua morada. Mas o que é o destino? Só se abrindo para ele e experienciando-o é que se sabe, é que cada um sabe na medida em que chega ao não-saber de todo saber, mergulhando numa profunda solidão e silêncio, fontes de toda convivência e fala. Poética: real, homem, verdade, destino, eis o âmbito de sua configuração, permanente e sempre atual. Diante da questão, se o que se faz é uma pergunta e se dá uma resposta originária, estas trazem para a experimentação e experienciação concreta a essência originária da questão da Poética.
Em permanência e atualidade temos duas questões que podem ser vistas e compreendidas no horizonte da dobra ou do duplo, isto é, num desdobramento originário e poético ou numa dicotomia metafísica e filosófica. A permanência vai nos remeter para a questão da essência e a atualidade nos defronta com a questão da memória e da história, enquanto momento presente vivo e atuante. A Poética não aparece aí como um substantivo a que poderiam ser acrescentados ou não os dois adjetivos ou predicativos: permanente e atual. Não. A Poética, enquanto o poético de toda obra poética, isto é, em sua essência originária, já é sempre permanente e atual.
Também devemos afirmar que essência e história podem ser pensadas na unidade da dobra ou afirmadas racionalmente na dicotomia do duplo. Se pensarmos a sentença de Heráclito transcrita no início deste ensaio, surpreenderemos nela a unidade da mudança e do repouso, como aquilo que permanece. Mas o que aí se compreende por mudança? E o que é o repouso de que fala a sentença? Dentro do percurso filosófico ocidental, em que se dicotomiza o real, o que é História, com suas concepções, os desdobramentos e as classificações que delas resultam, já depende de uma tomada de posição sobre o que é a essência e verdade do real e o lugar do homem em meio à totalidade dos entes, enquanto ser e conhecer, ser e pensar. Não há dúvida de que as teorias da História e as próprias concepções do que seja Poética mudam, mas só mudam e podem mudar porque o real muda. Porém, o real só muda porque essencialmente permanece. Não será esta uma afirmação que deve ser enunciada como uma questão? Sim. Os mitos e a própria poesia sempre já se moveram no interior dessa questão, ou seja, da mudança e da permanência. Para entender isso nem é preciso constatar a sucessão das horas, dos dias, das estações, dos anos, dos séculos, enfim, daquilo que os gregos, em sua língua, apropriadamente, denominaram physis, traduzida para o português, via latim, por natureza. Porém, o que se entende por natureza tem sido muito simplificado e, sobretudo, reduzida a uma dicotomia metafísico-científica, que predomina desde a Modernidade: natureza e cultura. Os Estudos Culturais trafegam nesta frágil dicotomia. Raciocinar nessa duplicidade é perder de vista a complexidade do que seja a Poética na sua referência à Physis, ao homem, à verdade e ao destino. À totalidade da physis os gregos denominaram ta onta, ou seja, a totalidade dos entes. Estes não são uma soma nem um conceito essencial: geral, universal, abstrato. A natureza não existe como conceito. Ela é sempre concreta. Mas o que é isto o concreto? Ele não se opõe ao abstrato, essência conceitual, mas é sempre a vigência do vigente, isto é, a vigência da essência originária. É um cum-crescere (um com-crescer) da dobra enquanto des-dobramento da unidade, do transformando-se, repousa, de que nos fala Heráclito. Enquanto con-creto a physis é o permanente desdobrar-se enquanto mudar, transformar-se, que sempre tende para, deseja e ama o repouso, isto é, o velar-se. Con-crescer é o crescer que se retrai permanentemente no silêncio originário do repouso, da não-ação como plenitude de movimento.
Cada um de nós, fazendo parte da physis, sendo um ente da physis, um sendo (“on” em grego) da physis, constata facilmente: O que cada um é hoje não era ontem nem será amanhã. Mas não deixa de ser o que é. Ser e tempo não são dicotômicos, um duplo, mas uma dobra onde o tempo é um desdobrar-se enquanto doar-se, presencializar-se, fazer-se presente, con-cretizar-se, pura doação, enquanto o que é, isto é, ser. O doar do tempo enquanto presente e presença do que é é a permanência e atualidade da Poética, do acontecer poético, na medida em que este é a essência da verdade, enquanto essência do ser (3). Ou como diz a sentença de Heráclito: Transformando-se: repousa. No ser o que somos e não-somos permanecemos e mudamos. Aliás, tudo é e não-é, permanece e muda, não dicotomia de essência e aparência, mas como vigência da essência originária, que não cessa de ser e aparecer no permanente originar. E “isto” provoca no ser humano uma profunda perplexidade, um insólito admirar-se (taumadzein, em grego). Ele gera a pergunta originária que até hoje não cessa de provocar permanentemente respostas. O ordinário do real é insólito, mas não banal, pois não pára um instante de mudar, desafiando a ordem do ordinário em seu limite e reconstituindo-o permanentemente a partir do não-limite: o extra-ordinário, aquilo que provoca admiração, espanto. Mas igualmente não pára de permanecer, pois, se não permanecesse, algo começaria e depois acabaria. Numa dobra misteriosa e enigmática, o ordinário, que é mudança, é extra-ordinário, que é permanência. Isso projeta de um modo radical o ser humano nas questões. As questões são os enigmas da vida. Se não os enfrentamos somos engolidos por elas, se os enfrentamos não encontramos nunca uma resposta de-finitiva (finis, em latim significa limite, o passível de medida, o estático, o formal). Essa é a dobra radical em que todo ser humano está lançado, ou numa palavra que a Modernidade racional e filosófica sempre evitou: no seu destino. Mas não a Modernidade poética, com Dom Quixote, Dom Casmurro, e outros, personagens-questões do profundo mergulho do ser humano em seu enigma de viver o mundo, o real e o que são a partir de uma interioridade abismal intransponível porque nela se defrontam com o não-conhecer e o não-ser. E não há razão ou espelho que lhe devolva a face oculta e enigmática. Pensar a Poética é pensar a essência do destino do homem, da verdade e do real, enquanto conhecer e não-conhecer, ser e não-ser.
As questões suscitam, como Poética, as perguntas da Esfinge a Édipo e a nós, e como Pensamento (filosofia) aos pensadores suscitam, naturalmente, a pergunta:
O que é “isto” o que permanece no fluxo das mudanças?
É claro que os mitos nascem também deste insólito em que se manifesta a physis. Mas eles não se constituem como perguntas. Mythos já diz o manifestar-se do real em sua essência originária, em ser o próprio extra-ordinário em seu vigor atuante, em sua concreticidade, pois o concreto é a vigência do vigente na pergunta que a questão nos põe. Todo mito é uma pergunta gerada pelas questões. Dialogar e interpretar os mitos é sempre experienciar como rito a resposta à pergunta que o mito sempre e permanentemente coloca, num jogo de vida E mote. Cada um e cada época se constituem como atualidade na medida em que experienciam no rito a pergunta do mito, enquanto este é a questão que se abre e põe como linguagem, nas respostas originárias. Ao vigor vigente como tal os gregos denominavam physis e ao acontecer dessa vigência: a-letheia ou poiesis, isto é, des-velamento, na medida em que este é a essência originária da verdade originária. O des-velamento, essência da mudança, é a verdade enquanto o poético do real, da physis. Este mudar originário é a essência originária da História, ou seja, é o próprio acontecer poético do real, da physis enquanto natureza E cultura. Por isso é que natureza e história ou cultura não se opõem nem formam um duplo, o duplo da Modernidade como Natureza e Cultura, Natureza e História. O movimento ecológico verdadeiro é a tentativa de resgate dessa unidade esquecida e a reintegração do homem na physis enquanto verdade e sentido poéticos. Em natureza E cultura há uma dobra, onde, como unidade, uma se desdobra dialética e poeticamente na outra. A cultura rácio-científica da Modernidade não pode esquecer a Poética, substituindo-a pela estética e pela crítica, e nem os mitos, pois todos os mitos, originariamente, são poéticos. Na verdade, originariamente, toda a realidade é poética, porque é mítica, e é mítica porque é poética.
À manifestação da vigência da poiesis, os gregos denominaram a-lethéia ou verdade compreendida como des-velamento. Todo mito enquanto alethéia poética é des-velamento, é verdade. Deixar o real vir à luz na clareira do seu aparecimento é o que os gregos denominaram a verdade do real, substituída, na Modernidade, pela luz subjetiva da razão e pela verdade da certeza. É na verdade como des-velamento na clareira que a physis é mudança.
Ao doar-se da physis, da realidade, no homem enquanto mito, poesia, pensamento, filosofia e o místico enquanto mistério, é o que denominamos questões. Não é o homem que tem as questões, são estas que têm e constituem o homem. Ao narrar mitos e ao escreverem-se obras poéticas, nelas e por elas as questões se tornam obras-questões-mitos do real no homem. Lançados na força da correnteza das questões, isto é, na poiesis, tais homens tomados pelo vigor do narrar se denominaram de uma maneira muito apropriada poetas. As questões historicamente se deram e se dão no homem, em todos os homens, em todas as culturas, como mitos, como narrativas poéticas. A Poética é um universal concreto que diz respeito a todas as culturas, porque diz, essencialmente, respeito ao humano do homem. E sem o humano como pensar o sentido e verdade das culturas? Só pensando o poético se podem pensar as diferenças e diferenças culturais, pois mais profunda e essencialmente do que as identidades e diferenças há o enigma do humano. Em Édipo o enigma do humano como destino continua a nos desafiar até hoje, para compreendê-lo e achar o seu sentido como o que é permanente e atual.
Mas quando o homem, movido pelo vigor da questão enquanto cura e procura do que é, a transforma em pergunta, uma tal pergunta não é qualquer pergunta, será uma pergunta a partir de e voltada para “aquilo” em que cada ser humano já está vigorando: a physis. Por isso, quando o homem pergunta, se é uma pergunta originária, pergunta a partir das questões, e tal homem foi chamado pensador originário. Neste, tomado pelo insólito diante do extra-ordinário, quando a questão se faz pergunta, esta necessariamente se dá e diz a partir do lógos. É a pergunta pelo insólito, pelo extra-ordinário: O que é “isto” o que permanece no fluxo das mudanças? O que nessa pergunta se pergunta? Olhada a pergunta de fora e naquilo que aparentemente mais chama a atenção, vemos imediatamente o real numa dupla face e até, em si, aparentemente, contraditória: o real permanece; o real muda. Mas será que na pergunta originária o pensador só está voltado para essa aparente face dupla do real, da physis? Se ficasse sua pergunta voltada apenas para essa aparente face dupla do real, não haveria uma pergunta originária e quem fizesse essa pergunta não seria um pensador. Estaria esquecendo o "isto", o que propriamente "é", ou seja, o "ser". Pensador é o ser humano que pensa e pergunta pelo “isto” da dobra e não pelo duplo em que dicotômica e epistemologicamente se vê e se pensa o real, a physis, desde que a lógica e a sofística se tornaram filosofia e lógica. Então na pergunta originária temos três pólos que constituem uma unidade. Essa unidade é o “isto”, ou seja, o “mesmo” da dobra em que se dá o real, isto é, a physis, o ser, enquanto manifestar-se e velar-se, ser e não (4). Essa questão é vista por Heráclito a partir do Ser enquanto Lógos. Mas também acontece a physis como intuição originária (senão nem se poderia perguntar e querer conhecer), como nos diz outro pensador originário, Parmênides, no fragmento III : “...pois o mesmo é pensar e ser” (5). Ao homem é dado pensar o ser porque já está jogado originariamente no não-conhecer e no não-ser. O "isto" da pergunta originária corresponde ao "mesmo" de que nos fala aqui Parmênides. É o pólo originário. A dobra, segundo e terceiro pólos, é constituída pela permanência e mudança, pelo ser E pensar, onde esse "e" remete, como um "entre", para o "isto" E o "mesmo". Pensar não é o mesmo que raciocinar. “Fazem dois”, formam um duplo. Raciocinar é conceituar. Pensar é deixar acontecer no ordinário o extra-ordinário, é deixar ver no visível o invisível, é deixar-se tomar no limite pelo não-limite, é deixar advir no saber o não-saber, é deixar realizar-se no ser o não-ser. Como dobra, não constituem uma oposição, uma dicotomia, porque vigentes no originário da physis, do ser E pensar. Quando o pensador pergunta a pergunta originária, ele busca uma resposta que, ao mesmo tempo, lhe dê o originário des-dobrado na permanência e na mudança.
Os pensadores originários, ao fazerem a pergunta, procuravam uma resposta pensando a permanência e a mudança como unidade, isto é, a pensaram e buscaram nas e com as palavras gregas arché e telos. Arché traduz-se normalmente como princípio, o “isto” que como princípio não pode deixar de estar sempre vigente, ou como o diz Platão no Fedro:
Princípio originário é sem nascimento. Do princípio originário nasce, em verdade, necessariamente tudo que nasce, enquanto que princípio originário não nasce de nada. Pois se princípio originário nascesse de algo, não haveria aí começo de existência a partir de princípio originário. Como não tem nascimento, ele é necessariamente permanente" (Platão, Fedro: 245 d).
Porém, a arché não se esgota em ser princípio, começo, início de algo. Então não haveria unidade, a arché não constituiria o “isto”. Para ser a arché, o “isto” tem de ser originário. O originário é o que não cessa de originar, ele é fonte. Se, por um lado, podemos dizer que não entramos duas vezes no mesmo rio (mudança), por outro, também devemos afirmar que o futuro do rio está na fonte (permanência) O seu sentido de ser originário é de ser permanência do que na mudança é telos, isto é, é consumação do princípio. Mudar e mudança não consistem, portanto, num transformar-se contínuo para chegar a um fim, onde se extingue, como se não tivesse sua proveniência da fonte.
Mudança (procura do telos) tem o sentido de levar à plenitude o que como princípio se faz e doa na poiesis como alethéia (verdade) E ethos (ética). Mudança diz o vigor da permanência como novo. Não podemos confundir novo com novidade. Esta não pode aparecer e parecer sem a vigência do novo. A novidade é o aparentemente novo porque não é nem aparece a partir do originário, do permanente. Este é sempre novo porque o novo é o permanente (arché) em mudança (telos), sendo, portanto sempre atual. O poético é sempre novo (telos) porque é sempre permanente (arché). Então o poético é a mudança como vigência do permanente, do atual. Esta palavra se origina do verbo latino agere, agir, que diz, em-si, o mesmo que o verbo grego: poiein: o agir originário como essência originária, o poético. Atual e atualidade nos lembram mais o presente histórico. Há aqui uma tautologia: se é presente é histórico, se é histórico é presente. É que não há presente nem histórico sem tempo originário. A História é uma doação do tempo e como doação é presente que constitui o humano do homem. O humano do homem é o tempo se dando no homem como presente, como permanência e atualidade, como o poético constituindo o “isto” do homem, isto é, o humano, a sua essência originária, o que lhe é próprio, o mesmo. Eis por que o humano só se realiza na travessia.
O que parece muito abstrato, para quem está acostumado a raciocinar através só de conceitos, pode ser apreendido e compreendido através de duas dimensões concretas, onde se pode apreender e compreender o poético enquanto permanência e mudança no sempre atual. Tais questões têm que ser vistas em sua concreticidade universal quando considerarmos: a physis E o ente, a dzoé E o bios, se dando como poética E obra poética no homem enquanto verdade. Um exemplo poético de dzoé E bios, temos na passagem do poeta pensador Guimarães Rosa, em Grande ser-tão: veredas, quando Riobaldo diz: “...Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar! ...” (Rosa, 1968: 353). Nasceu/araché que remete para physis/dzoé, ser-humano/on/bios ou seja menino que remete para telos/mundo. Mas podem ser dados mil exemplo, perfeitamente inúteis, se o leitor não aderir ao apelo do pensamento, se o leitor não deixar acontecer o insólito, o extra-ordinário, o poético. E "isso" um dia, como por um milagre, aconteceu só numa determinada época, a época dos pensadores originários, na Grécia? Não. Ele se dá em cada ser humano de qualquer cultura e de toda e qualquer época. Usamos aqui predominantemente as palavras gregas porque elas se constituíram pensamento originariamente nessa língua e é nessa língua que acontece e se dá o Ocidente.
O que aí apreender e compreender como língua e "palavra"? Devemos imediatamente afastar todo e qualquer conceito lingüístico. Do que é "palavra" já nos fala a sua formação poético-histórica na dinâmica viva da língua grega: "palavra" forma-se do prefixo grego: "pará": junto a, entre; e do verbo "ballein": lançar, jogar. Palavra diz, portanto, um lançar, um jogar no "entre" da dobra de ser e linguagem, onde o jogar já diz a ambigüidade do jogo, da essência do jogar, de ser e linguagem, humano e verdade, permanência e mudança, enfim, vida e morte, este o grande jogo de travessia e verdade.
E, assim, a palavra não é uma cópia ou decalque das coisas, mas justamente a
elaboração [acontecer poético] que contém e retém em si a abertura recolhida
[lógos/linguagem] e tudo que nela se oferece e patenteia [aletheia].
Nestes termos, o silêncio se torna o acontecimento daquele calar-se originário
da presença [Entre-ser] humana, a partir do qual o silêncio, isto é, a totalidade
do sendo [physis/ta onta], em cujo seio está a presença humana, vem à
linguagem (Heidegger, 2007: 123). (As expressões entre colchetes são do autor de ensaio).
Isso, o fato de originariamente ter acontecido na língua grega, de maneira alguma nega que também tenha acontecido, por exemplo, nas cultíssimas línguas chinesa ou japonesa e em outras. Trata-se, em verdade, de achar as palavras propícias na língua dessas e de outras culturas que dizem originária e experiencialmente o mesmo (6). Na realidade, ao afirmarmos isso já estamos introduzindo uma das questões fundamentais da Poética, que é a “Poética das obras”, porque neste sintagma se dá e acontece o real como dobra, ou seja, trata-se de ver no ser da obra o ser da arte. Para que o leitor compreenda mais profundamente as distinções essenciais que vamos fazer recomendamos a leitura de dois ensaios de Heidegger, onde isto é exposto em detalhes e de uma maneira mais completa (7). Mas nada adiantará a leitura se o leitor não for tomado pela admiração, pelo apelo do pensamento, se não se tornar também filósofo, pensador, poeta. O leitor deve estabelecer um diálogo profundo com os ensaios para depois fazer um auto-diálogo de auto-escuta do lógos. Então o leitor, todo leitor, será também um autor com o diálogo-interpretante, com a obra poética ou de pensamento.
Quando o pensador faz a pergunta originária: “O que é “isto” o que permanece no fluxo das mudanças?”, ele, como poderia parecer hoje, educados que somos para os conceitos genéricos e abstratos, não procura uma essência conceitual. Nem considera a physis de uma maneira genérica e inconseqüente, como acontece hoje quando falamos da natureza. A physis é para ele algo bem real, concreto e imediato, ela é constituída por ta onta, a totalidade dos entes, aquilo que permanentemente está sendo. Sendo diz-se em grego “on”. Se ele experiência a physis em cada “on” não o experiencia como algum “algo”, um “ente”, ou como se diz hoje: uma “unidade”, fazendo parte da natureza, como, sobretudo a partir da genética, se pensa. A concreticidade da physis se dá, presencializa em “cada on”, mas na medida em que a physis corresponde à dzoé, ou seja, à vida. Se a physis se presencializa em “cada on”, a dzoé se presencializa em “cada bios”. Quando se abre o dicionário e se vê, semanticamente, a tradução de dzoé como vida, estamos muito, mas muito longe de compreender o que é a experiência originário da dzoé para o grego, o que lhe advém como mistério do experienciar do viver nessa palavra. A tradução de
“...“dzoion” por ser-vivo e animal, é uma tradução tão impossível que chega a
bloquear qualquer experiência do mistério da realidade nas realizações da
vida. E nesta experiência os gregos sempre foram mestres acabados. É que a
vigência do mistério pertencia tão radicalmente à experiência grega da vida e
do viver que chamavam os deuses de “dzoia” (Leão, 1992: 134).
Por que a tradução de dzoé por vida já não nos dá a experiência radical do viver como o próprio extra-ordinário? Por que perdemos, na tradição metafísica, o sentido do originário, isto é, do permanente e atual. Hoje, quando se quer saber o que é vida, não se a experiencia como experiência radical e misteriosa diante da morte, mas, dentro da tradição moderna, do saber dado pelas disciplinas, nos contentamos em saber o que é a vida apelando para as definições conceituais da biologia, da filosofia, da psicologia, da sociologia etc. Esperamos delas chegar a saber o que é a vida e em que consiste viver. E no que diz respeito às obras de arte tudo se resume a vivências estéticas, algo subjetivo e evanescente em sentimentos vagos e sensações fugidias. Temos medo de nos defrontar com o mistério maravilhoso da vida porque temos medo de nos defrontar com o mistério do destino. Preferimos os atalhos fáceis e enganosos das auto-ajudas, dos radicalismos religiosos, políticos etc. É que temos enorme dificuldade de nos desvencilhar das respostas conceituais dadas por paradigmas racionais e suportes já pré-moldados e formatados. Não nos deixamos atrair e arrastar pela simplicidade do viver originário em seu mistério de ser permanente e sempre atual. Para a experienciação do viver grego:
To dzoion não é o “animal” e nem o “ser vivo” em sua acepção corrente e em
seu sentido indeterminado. Dzoé diz o que surge de dentro de si e reina no
surgir. To aeidzoon significa o “surgimento incessante”. Diz o mesmo que to
“aeiphy-on....(Heidegger, 1998: 120).
O termo grego dzoé significa, portanto, o mesmo que physis, ou seja, o surgimento incessante: aeiphyon: o que surge incessantemente, o que surgindo permanece e dura, é sempre atual (aei=sempre, phyon, do verbo phyein, de onde se forma o substantivo physis). Quando acima falamos em duas instâncias: physis e on, dzoé e bios, vemos agora que physis e dzoé dizem o mesmo. E “on” e “bios”? Tentar compreender a referência profunda entre physis e dzoé e on e bios é justamente tentar apreender o que seja não só a permanência e atualidade da Poética, mas a permanência e atualidade de cada on na physis e de cada bios na dzoé, da arte em cada obra de arte, da poética em cada obra poética. Mas igualmente como nos deixarmos tomar pela mesma experienciação grega manifesta nessas palavras, hoje,
embora à distância de mais de dois e mil e quinhentos anos, do vigor e da elo-
qüência da palavra grega. Qualquer um percebe facilmente que, aqui, nos move
mos em círculo: para se recolher a experiência originária dos gregos, temos de
compreender, em profundidade, nosso próprio viver, precisamos da experiência
originária dos gregos. E não somente a passagem da vida de nosso viver para a
experiência grega é um círculo, como cada passo desta passagem circula tam-
bém neste círculo (Leão, 1992: 133).
Enquanto método a nossa referência com a experienciação da vida dos gregos, presente nas palavras gregas, se dá num círculo de diálogo-interpretativo. Mas este se dá e acontece igualmente na referência de physis e on, de dzoé e bios, evidentemente como permanência e atualidade. E o que a Poética tem a ver com tudo isto? Ela poderia ser considerada um padrão, um paradigma, uma disciplina, uma Área de conhecimento se o próprio Platão já não nos tivesse advertido e ensinado que: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é Poiesis” (Banquete, 205 b). A poiesis é a própria referência de physis e on, de dzoé e bios. O que entendemos aí por referência é o próprio método do círculo originário enquanto diálogo-interpretativo, que referencia não só physis E on, dzoé E bios, mas também physis E dzoé, on E bios. Esse E não é qualquer conjunção aditiva, gramaticalmente classificado. Não. Na sintaxe poética do real ele indicia concretamente essas referências como sendo a própria Poética E obra poética, onde sempre o E é o próprio vigor vigente da arché no telos enquanto entre. Esse entre (8) se funda no intus, no Nous como fonte e intuição originária, concretamente realizado como diá-noia E diá-logo. Cada obra poética ou de pensamento já é, em-si, obra enquanto diálogo-interpretativo. E o vigor originário deste é o permanente e atual da Poética, na medida em que a poiesis é o próprio concretizar-se de arché no (in/entre) telos. Ou seja, o singular de cada bios, de cada on é sempre um universal concreto, pois cada um só é no vigor originário de physis E dzoé.
Como o pensador já vige nestes círculo, a pergunta que pergunta pela arché e pelo telos vigorando como o “isto” do que permanece na mudança, ele dirige a sua pergunta, naturalmente, ao “on”: ti to on? O que é “isto” o ente? Com esta pergunta originária procura-se a arché de todo ente na medida em que ele se dá e acontece e como telos em cada ente. Perguntar pela arché enquanto telos do on, é perguntar pela sua verdade. Por isso, é que o telos é a própria verdade do on, enquanto aletheia, ou seja, des-velamento. Porém, o pensador originário não pergunta o que é o ente em geral, o ente na sua universalidade abstrata, o ente como “idéia” que, como tal, precede e é aplicável a cada ente com perda da sua singularidade e diferença e do que lhe próprio. Isso já seria partir de uma posição metafísica que reduziu e transformou a pergunta originária pela arché E telos, a um deslocamento em que se perdeu o horizonte de onde surgiu a pergunta originária. Um exemplo pode ajudar a compreender esse deslocamento, que é mais que um deslocamento, é o próprio esquecimento do ser. Como? No lugar de perguntar originariamente: O que é “isto” o homem? Na metafísica, a pergunta ficou reduzida a: O que é o homem? O que se perdeu nesta pergunta? O horizonte originário? Que mudança ocorreu? Quando se pergunta pelo “isto” do homem tem-se em vista aquilo que é o próprio do homem como princípio originário de cada homem, ou seja, a arché enquanto originário do telos de cada homem. É a dzoé acontecendo originariamente em cada bios, porque o bios se funda no “isto”, no que é o próprio de cada bios, isto é, a dzoé, pois nenhum bios tem e é vida sem a dzoé, embora a dzoé, como arché E telos, não se esgote em ser o princípio originante de cada bios, assim como a fonte não se esgota em ser o que permite ao rio ser rio permanentemente, ou seja, no caso, a cada bios-ser-humano ser este bios-ser-humano. Como bios nunca será um ser-humano em geral, abstrato, será sempre este, aquele e aquele outro ser-humano, etc., sempre singular e concreto. Toda a questão originária se centraliza no “isto”, enquanto essência originária. Como esta essência originária se desvirtuou e perdeu na pergunta metafísica?
Em grego o on (sendo) é originariamente o particípio presente do verbo einai (ser). Portanto, o on é sempre verbal. A pergunta dos pensadores originários pergunta sempre pelo verbo do on. Diversas foram as respostas, mas que, evidentemente, nenhuma deu conta da questão, caso contrário deixaria de ser questão. O caso aqui a citar não pode ser outro senão Édipo diante da Esfinge. Todo pensamento poético e poesia pensante dos gregos não tem senão uma única questão: O que é “isto” o ser-humano?, seja na versão mítico-poética, seja na versão filosófica-pensante. As múltiplas respostas já indiciam o vigor do krinein como o próprio vigor da arché/telos se manifestando no questionar do homem que se questiona. Só porque já desde sempre vigora no krinein é que o homem como homem da dzoé E da physis pode questionar, isto é, exercitar o krinein. Qual é o sentido originário de krinein em grego, não na sua versão metafísica e sobretudo moderna? Krinein diz o questionar enquanto pelo perguntar se pro-cura o discernir, o distinguir, o diferenciar, pelo qual apreende o vigorar (verdade) de cada on (sendo) na vigência do einai (ser), de cada bios na vigência da dzoé, de cada obra poética na vigência da poética. É esse o sentido originário do criticar enquanto krinein. Então porque na Modernidade o criticar tomou outro sentido? O krinein como criticar se exercita como valor e validar, ou seja, só pode exercitar o julgar como valor na medida em que já se move na essência da verdade enquanto verdade da essência. Com a metafísica e sobretudo na Modernidade a verdade originária se torna verdade conceitual representativa e conceitual, isto é, rácio-subjetiva, fazendo do on verbal mero objeto, na medida em que o on/res (de onde se formou a palavra realidade), é o conjunto das representações conceituais-subjetivo-racionais (científicas), porque fundadas na verdade como certeza, passível de medida. É a matematização científica do on/res, ou seja, da realidade.
Quando o pensador grego pergunta: O que é “isto” o ser-humano?, em meio à totalidade dos entes da physis, da dzoé, ele só pode fazer essa pergunta porque já previamente vigora no vigor do krinein, ou seja, procura a verdade que acontece em cada telos da physis, da dzoé. Se muitas respostas foram dadas, de acordo com o vigor da obra de cada mito, cada poeta, cada pensador, uma (repetindo, entre outras) especialmente se consolidou no Ocidente. (Na realidade foram três, mas aqui nos referiremos especialmente a uma) (9). Pela resposta, cada on (sendo) é constituído de hypokeimenon e de symbebekota, ou seja, de uma essência originária, isto é, o que é (arché) e de sua menifestação (telos/aletheia) no como é. Estas respostas dizem respeito ao “isto”, ao que é próprio do on, do bios. Por isso, partindo sempre do sendo em sua manifestação concreta, Platão vai dizer que o “isto” de cada ente em sua originariedade consiste no eidos, na idéia. Para compreender o horizonte da resposta de Platão temos que ter sempre em mente a questão dos pensadores originários: O que permanece no fluxo das mudanças? Se com eidos Platão quisesse apenas dar conta do permanece, como depois a metafísica afirmou e ainda hoje se afirma, ele não estaria respondendo à questão originária, pois não levaria, em sua resposta, às mudanças.
Mas para Platão as “idéias” não têm o sentido moderno, não são idéias, isto é,
representações e modelos [arquétipos] que instruem os padrões mutáveis da
consciência, com que o sujeito se relaciona com o outro de si mesmo e dos ou-
tros... Assim a “idéia” não constitui apenas o real [on] propriamente dito, o
“ser por excelência”, to ‘óntos ‘ón. A “idéia” constitui o que há de verbo em
todo real , a dinâmica da realização nas vicissitudes das mudanças, nas peri-
pécias das transformações, como o clarão de um relâmpago (Leão, 1992:
152/153).
Qual é, pois, o sentido da idéia? É o perfil que as coisas oferecem à visão, que
já de antemão temos de ter em vista, quando vemos as diversas coisas, quando
pretendemos aprender e compreender isso e aquilo. ‘idéa é ser visualização
antecipadamente ... Idéia e luz nos dão a possibilidade de captar o sendo, pro-
porcionam conexão e penetração naquilo que cada coisa singular é em sua uni-
versalidade concreta (Heidegger, 2007: 167 / 168).
Como bom discípulo de seu Mestre Platão, Aristóteles irá também se ater à pergunta pelo on/sendo, respeitando o seu sentido verbal, ao “isto” enquanto arché, e proporá como sendo a ousia, o que como propriedades é o próprio de cada on/sendo. Porém, tanto Platão como Aristóteles, segundo o pensamento originário gregos, partem do ser-humano, mas o compreendem, no horizonte da sentença oracular órfica, como dzoion logon echon (10).
Todo o vigor de pensamento que perpassa os diálogos de Platão perdeu-se já na própria Grécia quando o que era questionamento no pensador se tornou platonismo na mão dos seus discípulos, isto é, doutrina que deve ser ensinada e aprendida, ou em termos modernos, uma determinada filosofia entre “outras”. Contribuiu para isto muito o Helenismo alexandrino. Correspondendo ao platonismo do Helenismo, a tradução para o latim simplificou tudo e na tradução perdeu-se o vigor das questões, porque se perdeu e esqueceu o sentido do ser. Traduziram-se as palavras e perdeu-se o seu vigor originário. Sobretudo isso foi decisivo, no que diz respeito a Platão, a tradução de eidos por simples idéia, sobretudo no sentido moderno de idéia como consciência do sujeito racional. Com a ironia de que se usa a má tradução do eidos de Platão para, na Modernidade até hoje, combater-se e julgar-se como idealista o próprio Platão. Usa-se o platonismo contra Platão. Como se deu sobretudo na tradução para o latim o esquecimento do ser? A resposta à arché como telos do on verbal, como hypokeimenon E symbebekota, foi traduzida para o latim, respectivamente, por: sub-jectum e accidens, ou seja, aquilo que sub-jaz como origem de todo acidente, qualidade, predicativo. Por isso, toda proposição é constituída de sujeito e predicativo. Mas nela fica esquecida o on/verbal, pois o verbo ser, o que é, se tornou “mero” verbo de ligação, que pode facilmente ser omitido. Nesta omissão esqueceu-se o ser. E o que aconteceu com o “isto” da pergunta originária, da essência originária? O que sub-jaz, o sub-jectum é a ousia. E como foi traduzida esta para o latim? O seu entendimento e tradução tomou dois rumos: 1º. Como sub-stantivo (e o accidens como adjetivo, qualidade). Esta tradução, como vemos, procura dar conta da proposição, do logos reduzido ao discurso, esquecendo o Lógos verbo. E por isso se tornou a tradução adotada pela gramática. 2º. Voltada a tradução para o horizonte do on, traduziu-se este de duas maneiras. a) Atendendo ao on propriamente dito, traduziu-se como res (coisa), de onde se formou, em português, a palavra realidade. b) Olhando o hypokeimenon a partir de ousia, traduziu-se como essentia, ou seja, essência ou ainda como substância. E o accidens? Como aparência. Nestas traduções o on/sendo verbal foi esquecido e, ao mesmo tempo, dicotomizado em essência e aparência. Quando se esqueceu o on/sendo, verbal, isto é, o ser, também, evidentemente, esqueceu-se o núcleo fundamental da pergunta originária que perguntava pelo “isto”. Então a pergunta: O que é “isto” o ser-humano?, reduziu-se a: O que é o ser-humano? O que mudou? Tudo. Aqui se substitui o pensamento originário pelo raciocínio metafísico. Na pergunta originária pergunta-se pela arché E telos, isto é, pela essência originária. Na pergunta metafísica, pergunta-se pela de-finição do on, de todo on sem o sendo, reduzido a um substantivo, a uma substância, a uma essência, mas onde esta se opõe agora à aparência. Esta é a essência conceitual, sobretudo moderna, porque não provém do on/sendo enquanto arché/telos, mas é a redução metafísica do on, do que é, ao substantivo, à substância, à essência, em oposição àquilo que o on/sendo é no como é de seu telos. Então o telos deixou de ser a consumação da arché e se tornou o conjunto das qualidades acidentais, que podem ser aparência e fazerem parte ou não da essência conceitual. Atendendo a estas, determina-se essencialmente o ente de acordo com os conhecimentos dos acidentes que se dá em cada disciplina. O on/sendo, além do esquecimento do ser, torna-se prisioneiro da epistemologia. A questão originária que pergunta pela essência originária transformou-se em essência conceitual, a partir e dentro do qual se passa a entender abstrata e genericamente cada ente. Por exemplo, o ser-humano. Numa visão metafísica de essência conceitual, a pergunta: O que é o ser-humano?, terá diferentes respostas de acordo com a disciplina que trata do conhecimento do ser-humano. E de acordo com a antropologia teremos uma essência, isto é, um conceito, que mudará de acordo com a psicologia, a sociologia etc. Por um lado, este conceito ou conjunto de conceitos que fundam as disciplinas, cada disciplina, são essências conceituais e não essências originárias, porque aquelas têm uma validade universal, mas que não dão conta das singularidades, pois se aplicam, por exemplo, no caso do ser-humano, a todos os seres-humanos, sob o ponto de vista antropológico, sociológico, psicológico etc. Se a essência conceitual, também denominada essência essencialista, por outro lado, dá conta de uma certa permanência, pois o conceito vale, abstratamente, para os diferentes entes aos quais se aplica, hoje se sabe, ela depende do conhecimento da época, da teoria vigente, do suporte adotado, enfim, para as obras de arte, da corrente crítica ou teoria estética adotada, mas perdem, automaticamente, no decorrer do tempo, o seu valor de serem atuais e de maneira alguma se abrem para a escuta da fala da linguagem em que vigora toda obra poética. A permanência da essência conceitual não dá nunca conta da atualidade. Daí a sucessão ininterrupta de Correntes críticas, conforme o demonstra René Wellek, em sua História da crítica moderna (Wellek, 1967: V volumes).
De que Poética estamos falando quando defendemos sua permanência E atualidade? Certamente daquela fundada na essência originária, ou seja, daquela que vigora como arché E telos na dobra de physis E on, de dzoé E bios e, no que diz respeito à arte, na dobra de poética E obra de arte, porque a arte, as obras de arte nada mais são do que a physis E o on, a dzoé E o bios em sua manifestação como verdade, ou seja, enquanto arché E telos (aletheia). Neste horizonte não podemos falar, quando nos referimos à permanência E atualidade da Poética em paradigmas, suportes, teorias, correntes críticas que se foram estabelecendo no percurso do Ocidente metafísico, isto é, do ser-humano visto e concebido metafisicamnte. Há um outro Ocidente que denominaríamos mítico-poético, isto é, do homem humano, onde o humano do homem se dá e consiste na sua manifestação mítico-poética, irredutível a qualquer conceito ou teoria científica ou filosófica. Querer ler as obras de arte em qualquer daquelas perspectivas é de antemão já optar pela essência conceitual que funda sempre qualquer uma dessas perspectivas. Daí a incompreensão delas em relação à Poética e, igualmente, da incompatibilidade desta com aquelas.
Porém, ao colocarmos a Poética neste horizonte não se trata simplesmente de referenciá-la ao humano do ser-humano, mas também de nos voltarmos para o segundo enigma que a esfinge coloca para Édipo, pois este é o personagem-questão do acontecer poético da condição humana, do humano do homem. Que questão é essa? A da verdade (11), ou seja, na dobra de arché E telos, o que agora vem para cena é o telos enquanto verdade da arché. Assim como a arché é vista enquanto dobra na essência originária, quando esta se tornou com a metafísica do on um duplo, pelo esquecimento do ser enquanto verbo e pela sua separação em essência e aparência, o telos enquanto verdade manifestativa (aletheia), também se transformou. Assim sendo, a cada essência e a cada permanência corresponde uma verdade diferente. A separação do on em essência e aparência, sujeito e predicado, fundamento e fundado, coisa e proposição, trouxe para cena a verdade como adequação, isto é, a representação correspondente de proposição e coisa (res=on=real). No platonismo e helenismo essa verdade se denominou verdade como homoiosis e correção. Já na filosofia medieval, enquanto o fundamento se tornou o criador e o fundado, a criatura, a verdade enquanto correspondência e correção se denominou adequação. Esta se dá em meio às controversas das teorias dos universais (12). A verdade metafísica vai sofrer um aprofundamento essencial e grande transformação, mas sempre dentro do duplo metafísico, na Idade Moderna. A verdade como correspondência e adequação representacionais vai, através do pensador Descartes, ser transformada numa imagem representacional de correção e certeza. Porém, de onde provém esta certeza? Aqui está a grande virada em relação a tudo que aconteceu antes da Modernidade, mas sempre dentro da linha do duplo metafísico, portanto, como uma continuação da concepção do on numa essência conceitual. Se, numa linguagem metafísica, podemos dizer que tanto a Antigüidade como a Idade Média sempre tratou do real, do ser, como ser-em-si, a grande virada metafísica moderna vai consistir no voltar-se para o ser-para-si, isto é, para o on, no ser fundado na subjetividade. Do ponto de vista desta, o on, a coisa propriamente dita se torna um objeto, pois pelo exercício da razão crítica, como Kant desdobra a posição cartesiana, a partir do exercício da razão enquanto subjetividade, não podemos falar mais do ser e do seu conhecimento, mas só do como conhecemos. A oposição entre ser e conhecer, que em Parmênides se dá na dobra de ser e pensar: “... pois o mesmo é pensar e ser” (Parmênides, frag. III: 45), com a subjetividade, que inaugura e instala a Modernidade, dá-se continuidade ao duplo metafísico. O ser fica reduzido e dependente do como se conhece, exercido pela razão crítica. Todo o real, nesta figura metafísica de verdade, fica dependente da consciência crítica.
E o que aconteceu à Poética neste percurso metafísico e poético do Ocidente? Veja bem o leitor, que nossa questão central é a permanência e atualidade da poética e não fazer uma historiografia das vicissitudes da Poética. Até à superação do Renascimento pelo Iluminismo, a obra de referência máxima em relação à Poética foi a própria obra de Aristóteles intitulada: Peri poietikes technés. Este título teve, na realidade, duas traduções. Quando se referia à própria obra de Aristóteles, foi traduzido o título simplesmente como Poética. Quando se referia às questões da poética de que Aristóteles aí tratava, deu-se a preferência à tradução do termo grego techné, com a palavra latina: ars, artis, que originou a palavra portuguesa arte. Portanto, falar de poética ou arte, é, no fundo e sempre o mesmo. Se o leitor quiser ter informações detalhadas da trajetória da poética metafísica, isto é, a Poética de Aristóteles, lida a partir da verdade metafísica, sugerimos o livro A poética ocidental – tradição e inovação (13). Com Nietzsche e depois com Heidegger, toda a metafísica passou a ser revista. Heidegger defende a tese de que o próprio Nietzsche consumou a própria metafísica, mas não deixando de acentuar que ele preparou, com seu pensamento, também a volta ao pensar dos pensadores originários. A metafísica é, essencialmente, o esquecimento do ser, ou seja, a substituição da essência originária, enquanto arché E telos como unidade ou dobra, pela essência conceitual originando o duplo numa sucessão de dicotomias pelo esquecimento do próprio ser como verbo. As traduções e compreensões das obras de Platão e de Aristóteles se fizeram dentro das dicotomias, essencialmente dentro do duplo que, na procura e compreensão da arché como fundamento, contraditoriamente, duplica sempre o real pelas representações que origina. Acima já falamos do entendimento do eidos platônico como dobra e como duplo. O duplo gera os conceitos a partir da essência conceitual e eles jamais dão conta da permanência e atualidade, porque tentam resolver e eliminar as questões, reduzindo-as ao conhecimento, pois a Modernidade funda o ser no conhecer, no cogito, como o propõe Descartes. Pelo contrário, os conceitos se sucedem num movimento historiográfico que contrapõe tradição e inovação (conceituais).
Hoje, podemos afirmar que há duas visões da obra de Aristóteles, o que significa no nosso caso, duas Poéticas: a da tradição e inovação metafísica, baseada na essência conceitual. Mas permaneceu impensada no percurso ocidental uma outra Poética, aquela de Aristóteles como pensador, que pensa a partir de e com a essência originária. A formulação destas questões acha em Aristóteles uma concentração e aprofundamento, dando prosseguimento àquilo que já fora pensado por seu mestre Platão (14). Também para o estagirita a questão é sempre a mesma em relação à physis: O que permanece no fluxo das mudanças? A resposta vai se concentrar em algumas palavras fundamentais. Mas vamos nos ater àquelas que têm relação mais direta com a questão que ora nos ocupa: a permanência e atualidade da poética. O título das anotações de Aristóteles – Peri poietikés technés - diz respeito a dois núcleos de questões: techné e poiesis. Mas estas, em seu sentido profundo, devem ser entendidas a partir das outras obras do pensador e não diretamente da Poética. Por isso é um grande equívoco traduzir a Poética sem levar em conta toda a obra do pensador, para nela colher e acolher as linhas de força de seu pensamento, sua sintaxe poético-pensante. Só neste horizonte se pode ter uma compreensão adequada e originária do que na Poética se propõe como o-a-ser-pensado em relação ao poético, enquanto o que é permanente e atual. No que diz respeito à techné, esta é largamente tratada na Física. Já poiesis tem seu âmbito definido na Ética, onde trata do sentido do agir enquanto procura de um bem, de um penhor. É a questão do agathon e do ethos. Porém, para bem compreendê-las temos de citar outras palavras fundamentais: dynamis, enérgeia, ergon e entelécheia. Qual é o grande problema em relação a estas palavras-questões: a tradução para o latim e o seu entendimento metafísico. Para Aristóteles o permanente é a dynamis, enquanto princípio de possibilidades. Quando estas possibilidades entram em processo de realização, temos a enérgeia. E o seu resultado é, enquanto sentido de plenitude ou telos, o ergon, a obra. Então dentro de nosso questionamento, o permanente, independente de momento histórico, é a dynamis. Já a atualidade, ou a dynamis em ação, é enérgeia. A vigência da dynamis e da enérgeia constituem o próprio do poético, isto é, a historicidade do humano do ser-humano como acontecer poético. A palavra atualidade provém do verbo latino agere, pelo particípio actum, de onde se formou o que está em ação, o atual, a atualidade. Portanto, confundimos com realidade o que para o pensamento grego é apenas uma de suas facetas, pois não há realidade ou atualidade sem a dynamis. Com isto, o entendimento da physis ficou reduzida e, por isso, quando falamos em realidade, o essencial fica de fora, pois esquecemos que a realidade é a dobra de physis E telos, ou seja, para Aristóteles: dynamis E enérgeia. A obra será, portanto, o ergon enquanto entelécheia: consumação da arché no telos. Nesta e com esta a physis se dá como agathon (o Bem), na dinâmica de sua verdade como aletheia/desvelamento, ou seja, o ethos (a ética/o ético). Podemos concluir que o Bem, o Ético e o Poético são um e o mesmo, pois são o atual (telos) da permanência (arché) que é a physis como dobra. Uma palavra, para Platão, sintetiza tudo, como o propõe no diálogo Fedro: o amor, enquanto philos-sofos, ou seja, o amor-sabedoria. Desta dobra e do amar também já nos fala Heráclito no frag. 123: Physis kryptestai philei: O sempre permanente atualiza-se amorosamente no velar-se.
O não compreender que Aristóteles é antes de tudo um pensador e de que não tratava simplesmente de conceitos, erro induzido pelas traduções equivocadas, mas de questões, é que levou à separação do que muda e permanece, que se inter-relacionam profunda e essencialmente já em Aristóteles. O pensador não parte de paradigmas nem os formula como suportes adequados para dar conta de e classificar as obras de arte. O pensador jamais propõe teorias-suportes como gêneros, entendidos como essências conceituais. Ele pensa as questões. Que questões? A da permanência e atualidade do Poético.
E se agora levarmos em conta o nosso momento atual com suas múltiplas Correntes Críticas? Não falemos de Aristóteles, escutemos o que na Poética é digno de ser escutado. Dialoguemos com e a partir do poético da Poética. Imaginemos que Aristóteles reviveu e hoje está revendo na atualidade suas notas Peri poietikés technés. O que ele mudaria em suas notas e o que ele não mudaria? Ou ele as conservaria tais quais as redigiu há dois mil e quatrocentos anos? Será que elas teriam um valor permanente e ainda seriam atuais? Aristóteles, que foi um dos primeiros e o mais vigoroso pensador em seu tempo das mudanças históricas, seria levado a considerar três linhas de pensamento. Pela primeira, ele tomaria conhecimento das diferentes leituras e interpretações das suas notas, em diferentes épocas e em conjunturas e contextos bem diferentes do seu. Pela segunda, Aristóteles se veria diante de e confrontado com diferentes teorias filosóficas, estéticas e artísticas, tendo como ponto de referência o que ele disse ou que se disse que ele disse. A sua querela com Platão deu origem a duas outras querelas. Na Idade Média, à querela dos universais, e, na Idade Moderna, à querela dos antigos e modernos. E é nesta que ele perceberia, talvez perplexo com o que dele se disse, que se teve a pretensão de sua Poética ser ultrapassada não só pelas idéias modernas, então nascentes, mas por todas as Estéticas posteriores, pelas Correntes Críticas e pela Teoria Literária. O que, hoje, Aristóteles acharia disso? Diante de tanta discrepância e diferença, dar-se-ia por vencido e ultrapassado, como reclamam permanentemente as estéticas e correntes críticas, bem como as vanguardas? Ou ficaria perplexo diante da obtusidade e simplificação com que se lêem as suas reflexões e propostas de reflexão no todo de sua obra? Mas certamente, o estagirita consideraria uma terceira linha de pensamento, ao se ver diante das novas, complexas e fundamentais realizações poéticas, ao longo destes dois mil e quatrocentos anos. Ele estaria diante de realizações poéticas históricas excepcionais. Não teria no seu horizonte somente o grande Sóflocles, mas também Dante, Shakespeare, Cervantes, Hölderlin, Proust, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e outros.
Certamente Aristóteles, em relação a estas novas poéticas, deveria considerar novas modalidades e dar novos e outros exemplos, mas e quanto ao permanente? Seria sua Poética ainda permanente e a partir do permanente também atual, na linha do que nos diz Heráclito, no fragmento da epígrafe (“Transformando-se, repousa”)? Permanente e atual em relação a quê? Como a história influencia este permanente e o atual de cada conjuntura e contexto? Nas entrelinhas dessas famosas notas de Aristóteles, o que entender por História? Implicitamente é o que pensamos continuamente ao longo deste ensaio. O permanente já pressupõe em si o histórico como sendo sempre o atual. Mas não há atual (telos) sem permanente (arché). Claro que então não estamos mais falando de Historiografia mas de História.
Historiograficamente, à Poética sucederam as Correntes Críticas nascidas da nova posição metafísica da Modernidade. No espaço deste ensaio é impossível traçar essa complexa transformação. Para isto escrevemos outro ensaio intitulado Poética e correntes críticas (acessível em www.travessiapoetica.blogspot.com).
A questão do permanente não é assim tão fácil de compreender e apreender. O fragmento de Heráclito que serve de epígrafe ao ensaio, nos convida a pensá-lo como repouso. Para os modelos de leituras baseadas nas teorias modernas, onde a eficácia e a funcionalidade da ação tudo determinam, fica muito difícil levar o leitor a se deixar tomar pelo repouso, a penetrar no enigma que é o repouso. Sobretudo se pensar que o repouso é aquele momento de parar de agir e ficar de “papo para o ar” numa inação repousante e inútil, onde o principal é deixar o tempo passar e não se ocupar nem pré-ocupar com nada. Será esta a essência originária do repouso de que nos fala Heráclito? Certamente não. Diante do frenesi moderno o que é então o repouso?
Pois o que é o repouso senão o contrário do movimento? Aquele, por sinal, não é nenhum contrário que exclua de si o movimento, mas que o inclua. Somente o movimentado pode repousar. O modo do repouso é de acordo com o tipo de movimento. No movimento como mera modificação de lugar de um corpo, o repouso é, de fato, somente o caso limite do movimento. Se o repouso inclui o movimento, então pode haver um repouso que é uma reunião interior do movimento, ou seja, a mais alta mobilidade, suposto que o tipo de movimento exija um tal repouso. Porém, o repouso da obra que repousa-em-si é deste tipo. Portanto, aproximamo-nos deste repouso quando conseguimos apreender, de modo uno, a mobilidade do acontecer no ser-obra (Heidegger: 2008, § 90).
Como provocação a pensar a questão do que é isto o repouso, convidamos o leitor a se embrenhar nas profundas questões em que nos lança um outro fragmento de Heráclito, onde com outras palavras fala também do repouso, o framento 123: Physis kryptestai philei: a excessividade poética do transformar-se ama repousar no velar-se. Repousar e velar-se, como a essência originária do permanente e do atual da poética, nos remetem para a tensão da ação E não-ação. O que é isto a ação E não-ação? Dela nos fala e falou um sábio chinês num poema atual de dois mil e quinhentos anos:
AÇÃO E NÃO-AÇÃO
A não-ação do sábio não é a inação.
Não é estudada. Coisa alguma a abala.
O sábio é quieto porque não se altera
Não porque ele queira ser quieto.
A água parada é como o espelho.
Você pode olhar nele e ver os pêlos em seu queixo.
Sua superfície é perfeitamente plana.
Um carpinteiro podia usá-lo
Se a água é tão clara, e sua superfície plana
Quanto mais o espírito do homem?
O coração do sábio está tranqüilo.
É o espelho do céu e da terra.
O espelho de tudo.
É vazio, é quieto, é tranqüilo, é sem-sabor
O silêncio, a não-ação: esta é a medida do céu e da terra.
Este é o perfeito Tao. Os sábios encontram aqui
Seu lugar de repouso.
Repousando, estão vazios.

Do vazio vem o não-condicionado.
Daí, o condicionado, as coisas individuais.
Assim, do vazio do sábio surge a quietude:
Da quietude, a ação. Da ação, a realização.
Da sua quietude vem sua não-ação, que é também ação
E é, portanto, sua realização.
Pois a quietude é alegria. A alegria é isenta de preocupações,
Fértil por muitos anos.
A alegria faz tudo despreocupadamente:
O silêncio e a não-ação
Eis a raiz de todas as coisas (Merton, 1999: 106)

NOTAS
(1) Conferir a título de exemplo a obra: WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo: Herder, 1967. 5 volumes. Outro exemplo é: LIMA, Luís Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2.e. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. É claro que estas duas obras citadas já estão desatualizadas. Com um senão em relação a esta última: os Estudos Culturais são em si uma proposta de ultrapassagem da própria Teoria da literatura, no sentido de conter em si a Teoria da literatura e ao mesmo tempo ser mais ampla e fundamental, pois se abre para a cultura.
(2) Conferir meu livro O acontecer poético. Rio de Janeiro: Antares, 1982. Disponível em meu blog: www.travessiapoetica.blogspot.com.
(3) Para pensar o tempo como doar-se cf. Tempo e ser. HEIDEGGER, Martin. In: Os pensadores / Martin Heidegger. São Paulo, Nova Cultural, 1979, pp. 255 a 271.
(4) Cf. O fragmento 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei: A excessividade poética ama velar-se.
(5) PARMÊNIDES, trad. de Sérgio Wrublewski. In: Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 45.
(6) Conferir a esse propósito: “De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador”. In: HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, pp. 71-120. Ver também, entre outros: MERTON, Thomás. A via de Chuang Tzu. 9. e. Petrópolis: Vozes, 1999.
(7) São eles: 1º. Que é isto – a filosofia? 2º. Identidade e diferença. In: HEIDEGGER, Martin. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Duas Cidades, 2006.
(8) Cf. a propósito do entre e seu vigor poético, meu ensaio: Interdisciplinaridade poética: o entre. In: Revista Tempo Brasileiro, 164, jan.-mar. de 2006, p. 7 a 36.
(9) Cf. especialmente a primeira parte de A origem da obra de arte. HEIDEGGER, Martin. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. Lisboa, Edições 70, 2008. Edição bilíngüe.
(10) Cf. o ensaio fundamental de Emmanuel Carneiro Leão a propósito desta sentença: “Uma leitura órfica de uma sentença grega”. In: Aprendendo a pensar II. Vozes: Petrópolis, 1992, p. 130 a 143.
(11) Como o leitor pode facilmente constatar, a questão da própria arte e, portanto, da Poética, é a questão da verdade. Formatado o leitor pelas incertas certezas da crítica e da estética, nem sempre se aponta núcleo central em que está construído todo o edifício moderno da crítica: a questão da verdade. Para exercer a crítica da consciência crítica sugerimos, no caso da verdade, os ensaios:
HEIDEGGER, Martin. “Da essência da verdade”. In: ---. Heidegger – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
--------------------------- . Ser e verdade. Petrópolis: Vozes, 2007.
Há outros ensaios de Heidegger sobre a verdade, não publicados em português.
(12) Cf. o ensaio: “Idade Média e filosofia”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Tempos de metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994, p. 41 a 53.
(13) Cf. DOLEZEL, Lubomir. A poética ocidental – tradição e inovação. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990.
(14) As propostas e uma tradução que leve em conta Aristóteles como pensador estão sendo feitas, no Brasil, por Emmanuel Carneiro Leão. Indicamos os seguintes textos:
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Aristóteles e as questões da arte”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Arte em questão: as questões da arte (Org.). Rio de Janeiro: 7letras, 2005, p. 107 a 125.
----------------------------------. “O problema da “Poética” de Aristóteles. In: ---. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 153 a 160.

BIBLIOGRAFIA
HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
--------------------------- . Ser e verdade. Petrópolis: Vozes, 2007.
---------------------------. A origem da obra de arte. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. Lisboa, Edições 70, 2008.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992.
PARMÊNIDES. In: Os pensadores originários – Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991.
HERÁCLITO. In: Os pensadores originários – Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, Vozes, 1991.
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. 9. e. Petrópolis: Vozes, 1999.
WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo, Herder, 1967, V volumes.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.

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