26 junho 2008

Poético-ecologia e a fala do índio Seatle


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Uma grande criação poético-ecológica aconteceu na já famosa, com justiça, porque altamente criativa, fala do índio Seatle. Nós a transcrevemos abaixo com um comentário de cada parágrafo que não tem outro propósito senão levar o leitor a penetrar no texto e a fazer também sua interpretação. Mais do que isso: tornar-se um defensor experiencial e permanente da Poético-ecologia. Antes de entramos na fala propriamente dita, fazemos uma pequena exposição do que entendemos por poético-ecologia.

A energia poética
Poética vem do grego Póiesis. Esta palavra diz simplesmente o agir e seu vigor pelo qual tudo se cria, se produz, se faz, se manifesta, acontece. É uma energia tão radical, tão primordial, tão inaugural, tão originária, tão enigmática que percorre todos os âmbitos possíveis em que tudo e também nós nos manifestamos e isso em todos os tempos: abrange da energia espiritual à vital, da psíquica à atômica, da corporal à ontológica. É a energia poética. Por isso nós não sabemos o que é a essência do agir, a póiesis, uma vez que ao tentar conceituá-la só o podemos fazer porque já nos achamos e somos movidos pelo vigor da essência do agir. Isso não nos impede de questionar, pois só questionando é que chegamos a ser o que já desde sempre somos enquanto o sentido do agir. Todo questionar questiona para chegar ao vigor do agir, embora sejamos impelidos a tal procura por esse mesmo vigor. Em tal procura nos advém o sentido do agir, isto é, da póiesis.

A essência e sentido do agir
O vigor do agir, a póiesis, é a essência da ecologia. Entendemos por essência não uma idéia essencialista, mas o próprio vigor do agir agindo, isto é, da póieis. A referência entre póiesis e ecologia é bem evidente. Ambas as palavras são formadas do grego. Uma tradição metafísica obscureceu o seu poder poético. De póiesis já falamos. E ecologia? Dependendo da tradução das palavras e do seu horizonte de entendimento vamos ter compreensões completamente diferentes. De início é necessário não partir para um entendimento rácio-conceitual, porque a razão – uma das sete traduções possíveis de logos – não dá conta da energia que pulsa na palavra-verbo logos. Mais do que raciocinar é necessário pensar, pois este é mais, muito mais, do que o raciocinar. Na verdade há na palavra eco-logia, se tomadas originariamente, uma tautologia (vejam como não podemos fugir do logos e nem da póiesis). Eco provém da palavra grega oikia, casa. Mas o que é uma casa? Se queremos ir além da denominação de um lugar de habitação, podemos nos lembrar de uma citação de Heidegger que já virou clichê. E a pior coisa que pode acontecer a uma palavra de pensamento é tornar-se clichê. Diz a proposição pensamento: “A Linguagem é a casa do ser.” A imagem “casa” se refere à Linguagem. Todo o alcance da imagem “casa” nos advèm em parte do que entendermos por “Linguagem”. Por outro lado, a desautomatização do conceito ou conceitos de linguagem pode ser promovida pela imagem “casa”. Parece que estamos num certo círculo. Realmente, é o círculo hermenêutico, o método que nos lança no caminho do pensamento e da poiesis. É esse mesmo caminho que nos projeta na aparente tautologia da palavra ecologia. De fato eco/casa e logia são o mesmo, uma vez que logia vem de logos e entre numerosos sentidos quer dizer também Linguagem. Por as duas palavra de eco-logia dizerem o mesmo não quer dizer que sejam a mesma coisa.

O círculo poético como caminho
Por onde começar a circular no círculo? Pelo princípio: a póiesis, pois ela se faz presente já desde sempre e sem ela não podemos nem caminhar. Mas o que procuramos nesse caminhar, isto é, qual é a nossa finalidade? Certamente não é o conceito, um produto do exercício da razão. Temos que nos abrir para a questão. Então devemos nos ex-por ao pensamento poético. Deixar o pensamento acontecer é nos apropriarmos da póiesis que nos é própria.
A provocação para um tal apropriar nos advém da ecologia, ou seja, tanto da eco/casa como da logia/linguagem. “Eco” é casa e “casa” é Linguagem. O que compreender então por “casa” sem dela dar uma definição, um conceito? No círculo hermenêutico o melhor é cada um se abrir para a escuta da Linguagem. Pois como diz Heidegger: “A linguagem fala, não o ser-humano. Este só fala quando corresponde à fala da linguagem”.
Na proposição de pensamento “A linguagem é a casa do ser”, normalmente não se cita a oração que vem em seguida. Diz: “Os poetas e pensadores lhe servem de vigia”. A vigília é a escuta amoroso-desvelante do ser. Mas quem são os “poetas”, quem são os “pensadores”? Tendemos a confundir poetas com retóricos de “formas” poéticas e pensadores com “filósofos” que falam em geral num discurso complicado e até ininteligível de aparente “profundidade”. No primeiro caso, fica-se à mercê de jogos retóricos e no segundo a um jogo racional e conceitual, numa rede de conceitos em geral inacessível. Num tal jogo o apelo da fala da linguagem não acontece e não há, portanto, caminho enquanto círculo poético..

O poeta-pensador
Todos sabemos que o espírito sopra onde quer e habita os que na simplicidade se escutam auscultando a sua fala. A simplicidade da poesia pensante acontece de muitos modos e em diferentes épocas. Não há causas explicativas, nem cânones, nem modelos. E seu vigor, sua póiesis é tão vigorosa que faz eclodir o tempo como real. É o que aconteceu numa fala famosa de escuta da linguagem proferida por um índio poeta-pensador, o Chefe Seattle. Em sua fala, póiesis, linguagem, pensamento e ecologia estão tão profundamente unidas e são tão vigorosas que não pararam de provocar escutas, convocar atitudes poético-ecológicas. É a poético-ecologia na mais alta densidade.
Escutemo-lo.

Fala do Chefe Seattle
A seguir transcrevemos a fala do Chefe Seattle. Enumeramos os parágrafos e com o que em cada um provoca procedemos a um diálogo inter-pretativo.
(No ano de 1854, o presidente dos Estados Unidos Franklin Pierce fez a uma tribo indígena a proposta de compra de grande parte de suas terras, oferecendo em contrapartida a concessão de uma outra “reserva”. Eis a resposta do pensador e poeta Chefe Seattle.)
§1 - Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
Para dialogar com a fala poético-pensante do Chefe Seattle neste primeiro parágrafo nos centralizamos em algumas palavras que se tornam núcleos de questões. Já nos apresenta, como uma introdução, as principais questões em torno das quais vai manifestar o seu pensamento poético.
Sem dúvida, a questão fundamental é o sagrado. O que é o sagrado? Nòs não sabemos, mas sabemos que ele atua, é póiesis, pois dele tudo provém e se faz presente em tudo. Se de algum modo não soubéssemos nem poderíamos perguntar. A Terra provindo do sagrado não é um bem útil que temos e de que podemos dispor para ser usado como bem de capital ou instrumental. A Terra é muito mais do que a funcional idéia científica que a classifica relacional e conceitualmente como um planeta. Não. Ela é muito mais. Hà uma seiva poética que a percorre e faz dela um grande corpo-vivo. Se, portanto, não é mais um bem-de-capital ou depósito de recursos energético-funcionais não pode nem ser vendida nem comprada. Esta é uma idéia central.
Ela é corpo. O que é um corpo? Quando assim se pergunta em que horizonte é para ser conceituado? Será que podemos conceituar seja a Terra-corpo, seja nosso corpo? Mas todo mundo sabe o que é um corpo: é o oposto da alma ou espírito. Aquele é material e este é imaterial. Esta dicotomia metafísica em nada ajuda a nos abrirmos para o pensamento poético da Linguagem. Como Linguagem e como Corpo-Linguagem o sagrado a tudo perpassa e vivifica, do “inseto que zumbe à penumbra da floresta”.
O sagrado ao se fazer Linguagem-corpo vigora na Memória e experiência de cada povo. O que é a Memória para que cada povo nela e por ela se experiencie como Memória? Quando a póiesis, como energia essencial, faz emergir o Corpo-Terra em sua vitalidade e excessividade poética, ela a conserva e reúne como Linguagem e Tempo: é a Memória. A póiesis se faz sentido como sentido de um povo na sua experienciação da Terra-corpo como Memória: é o sagrado.
§2 - Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande água, são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família. Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós.
Neste parágrafo surgem novas questões. Se antes o sagrado a tudo reúne e funda, agora aparece a Terra como a Mãe-Terra. E ela como Mãe a tudo origina. E somos, portanto, todos filhos da Mãe-Terra. E como seus filhos somos todos irmãos e a ela pertencemos: somos uma grande e única família. Se antes temos o povo como questão de pertencimento e fraternidade, agora temos a família como a que a todos congrega. Flores, picos rochosos, campinas, água, potro, ser-humano, somos todos irmãos, todos pertencentes à mesma família. É a fraternidade universal. A Terra se mostra como um Corpo que a todos origina e abriga fraternalmente. É a fraternidade que São Francisco já poietizara e cantara no “Cântido das criaturas”.
Porém, o poema do Chefe Seattle se inicia e termina com um lamento, um triste lamento, fundado na dicotomia entre Céu e Terra do Ocidente metafísico. Criando essa separação, o Ocidente metafísico, aparentemente espiritual, não se dá conta de que só opera um esquecimento, o esquecimento de que temos origem na Mãe-Terra e voltamos ao seu seio. A morte – o que é a morte? - se torna um momento de plenitude e reintegração no originário. “Somos parte da Terra e ela faz parte de nós”. Só num horizonte metafísico há separação entre matéria e espírito. O que é a matéria para que saibamos o que é o espírito? O que é o espírito para que saibamos o que é a matéria? Só nessa visão há começo e término. Quando na realidade há princípio e plenitude. A fraternidade e morte poética, fundadas na póiesis, fazem da Mãe-Terra a nossa Casa. É a Poético-ecologia. Por isso não podemos ser seres errantes entre as estrelas desterrados da Terra à procura de uma Casa que não existe porque não hiperexiste. A Linguagem-Casa é a certeza como Memória e Tempo que há essa Unidade e nela todos somos unos e filhos e irmãos.
E surge então a perplexidade poética: Sendo uma grande família pertencente à Memória imemorial da Mãe-Terra como alguém propõe que a Mãe-Terra seja vendida? A funcionalidade utilitária e técnica da razão ocidental, que a tudo transforma em objetos e instrumentos, “pede muito a nós”.
§3 - O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós. Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.
A soberba metafísica, a ciência, tornada o Grande Chefe, hoje, da Terra na figura da globalização, nos promete um “lugar onde possamos viver satisfeitos”. Será que há um outro “lugar”? O que é um “lugar”? Não podemos confundir lugar com espaço, o espaço terrestre e até sideral. Lugar não é espaço. Lugar é Casa, a Casa-Linguagem. Ela é o mundo originário, o sentido de toda póiesis. Por isso só nela encontramos a paz e a integração, o prazer e a satisfação. Não adianta nos oferecer os paraísos artificiais da estética no consumo funcional da desesperada tentativa de satisfazer os sentidos e desejos.
A oferta de sempre maiores bens e possibilidades de consumo e satisfações estéticas dos desejos pode ser considerada. Porém, não passa de uma tentação banal, ainda que aliciadora. A Terra, nossa Mãe-Terra, é “sagrada para nós”. E como vender ou comprar o sagrado? Como agirmos e morarmos e vivermos e morrermos sem o sagrado? Ainda seremos?
A água que percorre o rio e desce das montanhas e cai do Céu e cobre a Terra viaja nas veias de todos os irmãos vivos não é o H2O. É “o sangue de nossos antepassados”. A venda e a compra, a transformação funcional de tudo em recursos – naturais ou humanos – provoca uma amnésia mortal: o esquecimento do poético, o esquecimento do sagrado. Cada reflexo de luz nas águas, nas florestas, nos cumes das montanhas é a reflexão poética de acontecimentos e lembranças da vida “da aventura e fraternidade humana”. “O murmúrio das águas é a voz de todos os nossos ancestrais”. A Terra é a nossa Casa. A Casa é a nossa Linguagem e nossa Póiesis e nosso Ser. Como vender e comprar o nosso Ser?
§4 - Os rios são irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são irmãos nossos e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Os rios são misteriosos. A superfície rumorosa e fluente se funda na calma silenciosa e abismal das suas profundidades. Como veias vitais alimentam o Corpo-Terra para que esta produza frutos e nos alimente. Alimente a todos, mas lembrando e ensinando a todos que os rios não são funções de um grande sistema produtivo para originar mais capital e com este, circularmente, financiar pesquisas que põem em perigo a nossa e a sobrevivência da Mãe-Terra. Ainda que se consiga conservar a Terra como produtora e a salvo, nesta função nunca teremos de volta o sagrado.
§5 - Sabemos que o homem branco não compreende os nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Tratam sua mãe, a Terra, e seu irmão, o Céu, como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devora a terra, deixando somente um deserto.
Inebriada pelos conhecimentos técnico-científicos, a globalização metafísica não compreende a compreensão da póiesis e do pensamento. A Mãe-Terra perdeu o seu sentido e a globalização técnico-científica trata a Mãe-Terra com indiferença e o ser-humano vai-se tornando um estranho e forasteiro e alienado e despatriado dentro da própria Casa. Diuturna e noturnamente extrai bens para satisfazer a necessidade que essencialmente cada ser-humano não tem e de que não precisa para ser. Competindo sem tréguas, a Mãe-Terra tornou-se sua inimiga e prossegue numa devastação que acabará por devastar a si-mesmo, esperando-o um deserto de insatisfação mortal. E a Memória dos antepassados se esvai no roldão da desertificação em que se transforma o Corpo da Mãe-Terra. Nesta fúria funcional e instrumental a tudo transforma em coisas e objetos. O real é a Terra disposta e configurada como conjunto de objetos e objetivos. A própria Terra e seu irmão o Céu se transformam em objetos e coisas com valor de compra e venda. A Casa-Linguagem perde sua voz e colorido e aconchego de seio materno para se tornar um deserto do sem-sentido cada vez mais violento e niilificante.
§6 - Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda. Não há um lugar quieto na cidade do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.
Diante de tanto conhecimento me assalta o não-saber. É o não-saber selvagem da póiesis e do pensamento perante a arrogância do sistema racional e funcional – que a tudo conceitua – e que constitui o único real verdadeiro. A póiesis se tornou ficção, fingimento, irrealidade, devaneio, inutilidade, divertimento, gozo e prazer estético, algo acessório e banal. A não-compreensão aparentemente selvagem do saber de sabor e sabedoria não compreende tanto conhecimento mutável e descartável, ruído e agitação. Para quê? Para chegar aonde? Na agitação que dá lugar ao agir da póiesis não há mais lugar para a quietude, no horizonte da qual se escutando se ouça o suave “desabrochar de folhas na primavera ou o bater de asas de um inseto”. Porque tudo isso é inútil, no império da utilidade. Não será tudo isto porque a ação do pensamento e o pensamento da ação da póiesis não produz esse real de objetos e instrumentos? E ainda haveria para este outro real? E por que não? Por que a exclusão e exclusividade do real funcional? Mas o que resta de vida e póiesis e pensamento se um ser-humano não se acha nem acha a sua Casa onde possa “ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite”? Onde uma lagoa e sapos na noite barulhenta e iluminada da cidade? Onde o silêncio em meio ao turbilhão de ondas sonoras dos canais de televisão, rádio, celulares, internet?
§7 - O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro: o animal, a árvores, o homem, todos compartilhamos o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar-se de que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu a nossos avós seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.
O imaterial do espírito esqueceu no conhecimento da arrogância metafísica, como única detentora da verdade, o ar de que é nutrido. O espírito sopra onde quer, porque sua póiesis a tudo penetra e vivifica. Somos todos participantes do mesmo sopro vital: animais, árvores, seres-humanos. A esse sopro vital os gregos deram o nome de psique, ou seja, o inspirar e o expirar – viver no livre aberto do respirar. Ter inspiração é ser possuído pelo espírito, o espírito da Linguagem e da póiesis que a todos une como irmãos, sem gêneros, raças ou culturas. Na riqueza da sua excessividade poética a todos faz únicos e diferentes, originais e originários. Impulsionados pela inspiração poética do Sopro Inaugural temos o dever de preservar a Mãe-Terrra “intacta e sagrada como um lugar” onde todos os seres-humanos possam “saborear o vento açucarado pelas flores dos prados”.
§8 - Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de compra de nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi milhares de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecer vivos. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontecerá com o homem. Há uma ligação em tudo.
 
O agir da globalização na sua ânsia de a tudo instrumentalizar e funcionalizar não conhece outro agir e faz questão de não conhecer nem se propor a compreender. Não é esse o verdadeiro selvagem? Nem se dá conta de que raciocinar não é o mesmo que pensar. Mas será que só existe esse agir produtivo, causal, explicativo, classificatório, sistemático, acumulativo, funcional e estrutural? O que isso faz com o nosso corpo? Será ele só razão funcional e instrumental? Será que não existe outro agir ao lado desse que preserve a vida e só se aproprie dos seres vivos para permanecerem vivos, em sua autopoiese? Será que não existe um outro agir que preserve a Mãe-Terra e não faça da morte uma função lucrativa, empesteando o ar com o mau-cheiro dos lucros irrefreados e abusivos e imorais? O último preço será a própria vida? E então o que restará senão uma temível e terrível solidão do espírito, a solidão da morte em vida? Porque também não darmos lugar e hora e vez ao agir da póiesis e do pensamento? Por que não dar lugar ao agir que em vez de produzir objetos e instrumentos produz e descortina o sentido de nosso agir e de nossas vidas e de nossa Mãe-Terra? Há uma ligação em tudo: Nosso corpo autopoéico, o corpo poético da teia social, o corpo poético da Mãe-Terra, o corpo Poético do Espírito que soprando a tudo reúne e vivifica. Estes quatro Corpos são nossa ventura e aventura. Está na hora de pensar enquanto ainda há tempo para deixar o tempo poético e não apenas o produtivo acontecer para salvaguardar e realizar os quatro corpos.
 
§9 - Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a Terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à Terra acontecerá aos filhos da Terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isto sabemos: a Terra não pertence ao homem; o homem pertence à Terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a Terra recairá sobre os filhos da Terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.
 
O que ensinar no sistema educacional? O que aprender? Por acaso somos solicitados e exigidos só no aprendizado – inevitável e necessário – ou também na aprendizagem de que o solo a nossos pés é cinza de nossos avós e de todos os nossos antepassados? O que aprendemos? O que nos ensinam? A prendemos que o ser-humano pertence à Terra, que há uma ligação em tudo e com todos os tempos e lugares, que há uma memória pessoal, coletiva, do Ser, do Sopro que a tudo reúne? Por acaso nos ensinam, no desvario do acúmulo sem tréguas e sem fim dos conhecimentos pelas novas pesquisas, que há um saber inaugural que a todos une, que há uma ligação com tudo? Dependendo de nosso agir, nossos filhos e netos e netos de nossos netos – se ainda os houver – sofrerão as conseqüências dessas ações. Será que nos ensinam que “o ser-humano não tramou o tecido da vida: ele é simplesmente UM DE SEUS FIOS”?
O que nos ensinam? Quando seremos educados para a aprendizagem?
 
§10 - Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Vocês podem pensar que O possuem, como desejam possuir nossa terra; mas não é possível. Ele é um Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa e feri-la é desprezar seu Criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo que as outras tribos. Contaminem suas camas e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.
 
A insolência e auto-suficiência da metafísica como experienciação de pensamento que se quer única e exclusiva - não bastassem as dicotomias instrumentais, espirituais, funcionais, causais - também instituiu a causa das causas, o fundamento, a causa sui: uma explicação racional divina e posteriormente reduziu-a ao sujeito racional. Para além de um fundamento causal com o nome de Deus ou com o nome de razão, há inexoravelmente um “destino comum” a todos os povos e religiões. “Nosso Deus é o mesmo Deus.” Assim como o conhecimento metafísico pretende e pensa possuir a Terra também pensa e pretende ser o possuidor do seu Deus. “Mas não é possível”. Hà um só para todos. É o sagrado que se presentifica e retrai misteriosamente em todas as suas manifestações. Não há uma divindade abstrata proposta pelo conhecimento essencialista da metafísica, onde Deus se torna posse da razão metafísica. O sagrado em seu mistério não pode ser um conceito abstrato na medida em que é a compaixão vivificante de todos os seres-humanos. Ferir e desertificar a Mãe-Terra é desprezar o seu vigor criativo: o sagrado poético. O perigo do absoluto metafísico encarnado no real técnico-científico pode confrontar a todos com um fim inesperado e trágico se em todos os seres-humanos não for experienciado, como sentido último de todo o seu fazer e ser, o agir da póiesis e do pensamento. Ou será que nosso destino é convivermos finalmente com os próprios dejetos que a globalização universaliza?
 
§11 - Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe e esta Terra e, por alguma razão especial, lhes deu o domínio sobre a Terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam abatidos exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens e a visão dos morros obstruída por fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência.
 
O domínio hoje planetário da técnica confronta o ser-humano para além de todas as fronteiras e margens com a questão real de sua sobrevivência. É um destino misterioso que jamais poderá ser explicado, porque não é fundado em causas. E nenhum por que o atinge. Em meio a esse destino ocidental metafísico globalizado será que a inclusão dos marginalizados e das minorias não será pelo via do consumismo que re-alimenta o próprio sistema? Onde o estudo sério e universal do agir da póiesis e do pensamento sem retóricas vazias e formais, sem lógicas esterilizantes e abstratas? Mas aqui até uma questão mais séria se coloca: Será que a Poético-ecologia defendida pelo Chefe Seattle e todos os grandes poetas e pensadores pode ser ensinada ou não se tornará mais um meio dissimulado do sistema de ensino-aprendizado de consumo? Não será que a Poético-ecologia só pode acontecer como aprendizagem? E para esta o único caminho não é o da escuta e do diálogo? Espero que seja, caro leitor, pois no e pelo diálogo se desfaz qualquer possível dicotomia, não porque haja comunicação indiferenciante, mas, pelo contrário, porque há afirmação das diferenças. Dialogando com o pensamento poético do Chefe Seattle e com minha escuta empreenda a sua.

(In: Ecologia e Progresso. Isso é possível? São Paulo, Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1992. p. 1-5)

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