25 junho 2008

Amor: Riobaldo e Diadorim


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Ama e faz o que quiseres.
Santo Agostinho

Não há dúvida de que a questão do amor gira em torno de três perguntas essenciais:
O que é isto – o real? O que é isto – o homem? O que é isto – o amor?
Na dobra de todas elas está a morte.
Mas fica logo evidente que estas três perguntas têm um núcleo comum: o “isto”. Que é “isto” o isto? Talvez não nos demos conta de que ele aparece já desde o início na dobra de “é” e “isto”, de que a pergunta é a questão de sendo e ser se dando como questão no “isto”. Como questão, nenhuma resposta a desfará e eliminará, do mesmo modo que nenhum “é” dará conta do ser. Porém, queiramos ou não queiramos vivemos no desdobramento dessa dobra. O vigor desta é o evidente: o “isto”. Ele é decisivo, pois como tal é a questão das questões. Muito diferente seria fazer as três mesmas perguntas na forma: O que é o real? O que é o homem? O que é o amor? Nós, nas diversas e diferentes respostas dadas, que variariam de acordo com os conceitos elaborados a partir de diferentes teorias, suportes e épocas, pois o tempo já contamina e determina originariamente todas elas, não teríamos como chegar à questão que origina não só as perguntas, mas também as respostas. Só no âmbito do “isto” podemos apreender a unidade dessas três perguntas porque já desde sempre vigentes, queiram ou não os suportes e teorias, na unidade da memória.
As três questões comparecem em Rosa como Ser-tão, como “homem humano”, como Pacto. Nas três há o “isto” como essência originária, da qual emana o poder ser das três perguntas enunciadoras das questões. É a Poética da obra de Guimarães Rosa. Porém, na ordem das questões, a apreensão do que seja Ser-tão, o que seja o “homem humano” só é possível a partir da terceira: O que é isto – o Amor? E é na apreensão e compreensão do pacto que chegamos ao isto do Amor como o isto do ‘homem humano” e o isto do Ser-tão.
A essência originária se dá como vigor originário e é neste e a partir deste que podemos apreender e compreender e experienciar: o poder, o querer e o criar, pois este como o poético da Poética nada mais é do que o vigor originário, o originário da obra de arte, da arte que se dá no poder e querer do Amor. O poder do próprio do próprio do Ser-tão no próprio do próprio poder e querer de Riobaldo (do “homem humano”), que só nos advém no pacto, para todos nós leitores, e que seria, portanto e necessariamente, um pacto do, no e pelo Amor. Mas então o Amor enquanto o isto do Amor não será diferente do isto do Ser-tão e do isto do “homem humano”, reunidos enquanto poiesis, na obra de arte, na Poética, pelo Logos. Daí que o diá-logo não se reduz a uma relação inter-subjetiva nem o Amor a uma relação de um eu e de um tu, dominados por um sentimento indizível e indefinível, ou ainda tão-somente a uma relação sexual impulsiva e inconseqüente. Isso ainda não é todo o pathos do Amor, não é o isto do Amor.
É, pois, na travessia de Riobaldo que vamos encontrar a reunião con-juntural dos três istos, mas que nos advêm no narrar inaugural da obra enquanto os três “teloi” (telos é a consumação do que se é, dada em três dimensões, daí falarmos em três “teloi”). Nestes se dá a travessia e é trazendo-os para o diálogo-poético (im-plicando este: sentido, ethos e pathos) que podemos escutar e experienciar o isto enquanto vigor originário que vigora nos três istos enquanto memória.
Que o pacto reveste Riobaldo de um outro poder e de um outro querer fica evidente na escolha daqueles que agora o acompanham na Chefia: uma criança e um cego. Já o querer com que Riobaldo se defronta fica evidente com o modo de agir e tomar decisões diante do que vai acontecendo depois que Riobaldo se torna Chefe e muda de nome: ele agora é o Urutu-Branco. Nele se dá um embate entre o querer-poder de Chefe e o querer-poder maior que lhe advém do pacto, onde este não só se torna o agir do pacto do Amor com que ele é tomado a partir do pacto, mas onde tal querer-poder como poder-querer do Amor é também o poder-querer do destino, aquele querer-poder que rege e vigora no concertar. Temos, assim, em Grande ser-tão: veredas, uma profunda reflexão e experienciação sobre o isto que reúne Ser-tão, homem humano e Amor na travessia, enquanto obra de arte como diálogo poético-amoroso, que se torna travessia para o infinito.
Mas assim como há a presença nítida de duas ordens de perguntas, com resultados e conseqüências completamente diferentes, também há dois poder-querer, aprsentados na obra por duas ordens de ações e embates, aquelas regidas pelo consertar e aquelas vigorando no concertar. Ora, a questão do mal e do bem está diretamente relacionada às duas ordens de perguntas e às ações feitas e realizadas sob a regência dos dois querer-poder e poder-querer, que se concentram nos dois verbos. O mal e o bem não são prévios nem substanciais, isto é, não há um ser próprio imóvel como essência para cada um, mas o ser se dá como o que aparece e parece, de onde resulta o mal e o bem, e o que assim é na ordem do sertão também o vai ser na ordem do homem-humano. O que é pode deixar de ser, como o narrador o constata quando discute o que o move a narrar e a colocar juntos o problema do diabo e do mal e do bem, o que lhe causa profundas “melancolias”: “O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ela, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...” (Rosa, 1968: 11). Na cachoeira o Ser-tão se mostra e nesse mostrar-se se dá como parecer e aparecer no dissimular de manifestar-se velando-se. Daí a dúvida d’”essas melancolias”, remetendo o viver da vida para um “negócio muito perigoso...”. Mas “perigo” diz que o agir do homem humano já se move numa liminaridade excessiva. É desta liminaridade excessiva que surge o problema do mal e do bem, não como algo externo existente no Ser-tão sem o homem humano: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum” (Rosa, 196l8: 11). O diabo, o mal, o bem não são entes. Mas não nos iludamos, Riobaldo não dá certeza nenhuma. Nem incerteza. Não é um cético. Muito pelo contrário, ele se move no vigor do questionar, onde a verdade se faz real. Por isso, antes, afirmou: “E me inventei neste gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe?” Na dobra do questionar se faz a travessia do Ser-tão e homem humano, porque o humano do homem vigora na vigência do Amor.
A dúvida e a perplexidade perante o mal e o bem como querer e poder da vontade, como consertar, está no fato de que o ser no que lhe é próprio, isto é, enquanto o isto originário, prevalece como destino. Ou seja, a questão do bem e do mal só é possível na ordem do querer-poder da vontade, mas não no destino, que está para além e aquém do bem e do mal. Na ordem do destino não pode haver mal e bem, porque ele é regido pelo poder-querer do Amar, isto é, do concertar. Mas este se dá e presenteia como tempo da travessia, como matéria-vertente da travessia. Porém, como matéria-vertente da travessia enquanto destino exige de nós uma renúncia que não tira, dá. É numa tal renúncia que pode acontecer o pacto. A partir deste e com este o poder-querer nos advém numa renúncia de nosso aparente poder-querer, pelo deixar agir do Amor-poder-querer enquanto escuta e diálogo, onde quem fala e pode-querer é o Logos como Destino e como Amor. Vigorando no amar o Amor é um mútuo deixar ser o ser que se é, pois o Amor do amar é ser um si-mesmo o outro. O Amor do amar é um fogo que acende em labaredas o que cada um é com o outro na unidade amorosa e poética da mãe de todas as Musas, a Memória.
Se, como diz o pensador-poeta Caeiro, “amar é pensar”, o poeta-pensador dirá também que “amar é criar”, uma vez que o criar é amar enquanto diálogo na travessia poético-apropriante.
Quando agora nos voltamos para o título da obra poética de Rosa, talvez nos fique um pouco mais claro que o Grande Ser-tão nos advém nas e como veredas. Assim simplesmente enunciado, certamente ainda não nos damos conta da profunda questão que se dá na referência de Ser e Verdade em Sendo. Não podem ser simplesmente dois pólos que mantêm entre si uma referência ambígua, passível de ser desfeita porque elucidada na definição conceitual do que seja o sertão nas diferentes acepções em que pode ser tomado, reduzindo tudo a palavras-conceitos-semânticos, determinados e vistos e configurados a partir dos suportes das diferentes disciplinas, com que olhamos e reduzimos a tais visões teóricas, o que aí só se dá como questão. O mesmo se pode, exatamente, dizer de veredas. Também não adianta acrescentar a estas um novo par semântico: diálogos amorosos, se não se deixa o leitor tomar pela referência de Ser-tão e veredas, Ser e homem-humano, travessia e verdade.
Devemos, poeticamente, deixarmo-nos tomar pelo que aí está em questão. E o que está em questão na referência ser e verdade é esse E como um Entre misterioso e enigmático, que tanto mais se dá quanto mais se retrai, para nosso bem. Esse Entre é o enigmático isto que percorre, une e vigora nas três questões que já desde sempre nos atraem e desafiam: O que é isto – o Ser? O que é isto – o Homem? O que é isto – o Amor? Mas não temos aqui simplesmente uma seqüência de três perguntas, que podem ser tomadas isoladamente e às quais cada um, de acordo com sua subjetividade ou preferência por determinado suporte, pode dar as respostas.
Quando Rosa perpassa sua obra poética pela questão da possibilidade ou não do pacto, o que implicaria, num certo nível, a pré-existência ontológica do bem e do mal, não o faz como uma apelo de leitura para atrair o leitor. Não. Até porque é uma velha questão, como ele o diz em determinada passagem, numa alusão ao mito de Fausto. É que, em verdade, na discussão da possibilidade do pacto, o que está em causa é a própria matéria-vertente tanto do Ser como do homem humano. Isto significa que as duas primeiras questões: a do isto do ser e a do isto do homem humano, na sua referência concreta, convocam e assumem as dimensões da terceira: O que é isto – o Amor? Esta não é, portanto, nessa ordem numérica ou cronológica ou espacial, uma terceira. Muito pelo contrário. Ela é o lugar de referência de ser-tão e veredas, de ser e homem humano, mas vistos e experienciados a partir do isto. Então a referência só acontece no âmbito e horizonte ou do duplo poder-querer de consertar E concertar, ou da dobra de poder-querer no desdobramento de concertar e consertar.
Devemos compreender nesse duplo ou nessa dobra que a Modernidade se equivoca quando acha e afirma e procede como se o homem fosse livre porque tem vontade. Não. Só tem vontade porque é livre. E ser livre é ser o que é próprio como destino destinado. Rosa refaz em sua obra todo o itinerário não só do homem moderno, mas de todo o Ocidente metafísico, ao, genialmente, localizar a questão na dobra de concertar e consertar e não no duplo de consertar e concertar. Com a inversão da ordem, no decorrer das ações em Grande ser-tão: veredas e sua centralização decisiva no julgamento e sua efetivação no pacto, tudo muda. E então se o concertar é a própria vigência do amar, a questão do bem e do mal, como tal, não existe, caso não existisse a dobra de concertar e consertar, onde em geral predomina o duplo de consertar e concertar. É que o homem pode fazer da dobra um duplo e então a referência de ser e homem-humano vive e experiencia – por ser essencialmente livre e poder-querer in-sistir na errância inerente à liminaridade de verdade e não-verdade - a disputa referencial de concertar e consertar, de consertar e concertar, de mal e bem.
O diá-logo amoroso de escuta do Logos, como Ser/Amor, pode dar lugar a um diálogo subjetivo ou inter-subjetivo pelo domínio do consertar, na aparência do poder-querer da vontade. Quem decide isto? Isto não está ao alcance de uma decisão do homem, manifestada e conhecida em conceitos ou preferências de acordo com diferentes suportes pré-estabelecidos. Então o isto se torna destino, diante do qual só nos resta uma única resposta: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1968: 460). E sermos pro-jetados no infinito. Isto de maneira alguma afirma o consertar no lugar do concertar. Muito pelo contrário, ele será para nós sempre o “encoberto”. Ele será para nós sempre Diá-dor-im. Na referência ser e homem humano, ser-tão e veredas, há o destino como dissimular da dobra no desdobramento e como dissimular do duplo na aparência e erro. E aquele que parecia e aparece não é, e o que é não aparece nem parece, mas se dá como pseudo-ser ou como erro. Manifestar alguma coisa ainda não é mostrá-la, mas remeter para ela através de algo que se mostra. É o caso do sintoma, um mostrar-se que anuncia ou enuncia algo que não se mostra. Por isso, nos diz Emmanuel Carneiro Leão a respeito da relação entre linguagem, signos e língua:
O indício denota o que não se mostra em si mesmo, refere-se a algo que não é linguagem. Signo não diz o mostrar-se em si mesmo, mas um anunciar, um indicar uma coisa que não se mostra, nem como ela é, nem como ela não é, mediante outra que se mostra. Signo é, pois, o não mostrar-se. Mas este não do signo não se identifica com o não da linguagem, isto é, com o parecer e a aparência. Pois o que não se mostra também nunca poderá aparecer e, por conseguinte, parecer. Signos são metáforas, alegorias, sintomas, índices, indicações, embora cada um o seja à sua maneira.
Todo signo só pode indicar em razão do mostrar-se de alguma coisa. Este mostrar-se não é, em si mesmo, um signo. Todos os signos só são signos na dependência da linguagem. Quanto se diz, portanto, que a linguagem é um sistema de signos, não se define, mas se pressupõe a linguagem, e com a desvantagem de encobri-la, reduzindo-a à língua (Texto distribuído em sala de aula, em 1971).
No ensaio A origem da obra de arte, Heidegger centraliza a questão da arte na palavra alemã Ursprung. A sua tradução precisa é: salto originário. Para a referência ser-tão e veredas, ser e homem-humano, há sempre um abismo, a terceira margem, no qual e na qual nos experienciamos permanentemente suspensos. E então o viver necessariamente nos impulsiona para escolhas e decisões. Podemos – aparentemente – nos decidir por e escolher a dupla margem: a do bem ou a do mal. Mal sabemos nós que em todo duplo já vigora uma dobra e um desdobramento, mas estes, por não serem regidos pelo duplo, já vigoram esquecidos e velados no isto de ser e homem humano, de ser-tão e veredas. Na dobra e no desdobramento vigora como o isto a essência originária do entre como Amor. A decisão por este e sua escolha (ex-cum-legere) só pode acontecer no sermos atraídos e regidos pela terceira margem do rio da vida e na qual nos lançamos necessariamente num salto originário: Ursprung. No rio da vida e na certeza da morte já estamos desde que nascemos lançados, mas por quais margens nos guiamos? Esquecidos da terceira, podemos, em aparência, escolher as duas outras e, ou uma, ou outra. Tal esquecimento nos joga na aparência do aparecer ou no parecer da aparência. Mas todo duplo é um sintoma da dobra, cujo vigor de desdobramento é a terceira margem.
Quando Heidegger tenta no ensaio citado nos conduzir por entre a selva conceitual das teorias e Estéticas e suportes da arte, a partir do Ursprung até o Ursprung, do salto originário para a decisão do salto originário, não pode deixar de constatar algo que não diz respeito só a ele, mas o diz a todo leitor. Daí também Grande ser-tão: veredas ser figurando por um narrador em diálogo com o leitor, ou seja, Rosa em diálogo com cada um de nós. Em vista disso diz: “Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel. O senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda” (Rosa, 1968: 79). A alusão ao isto sendo e do sendo, e a referência do isto nas três questões é uma tarefa para ser ouvida, pensada, repensada, e redita, por cada um de nós. E continua: “Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas” (Rosa, 1968: 79).
Saber sabemos. O quê? Do grande ser-tão. De que maneira? Como questão, como o isto do ser-tão e o isto do homem humano. Como questão, como isto, sabemos e não sabemos. O ser-tão como ser-tão ninguém ainda não sabe. Mas se nada absolutamente nada soubéssemos nem poderíamos perguntar. E perguntamos. Não de fora do ser-tão como quem o pudesse, através do seu poder e querer, colocá-lo como ob-jeto do seu perguntar, através do qual formaríamos conceitos, teorias e suportes, para se tornar prisioneiro do representar em que se baseiam todos os suportes, teorias e Estéticas. Algo sabemos porque podemos perguntar, mas reduzir o real ao saber que elaboramos em nossas respostas e conceitos é reduzir o ser-tão, que ninguém ainda não sabe, a um saber que nem sabe da sua ignorância. Pois todo perguntar é uma doação das questões e não exercício de um poder e querer saber. É que o próprio do ser-tão, ao se dar como e nas questões, ao mesmo tempo que se dá, presencializa e presentifica como saber, retrai-se e vela-se como não-saber. E não deveríamos perguntar: O que é isto – o saber? Pois do ser-tão “Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas” (Rosa, 1968: 79). Soa até irônica esta afirmação, pois se há ser-tão, e há, as diversas disciplinas não se encarregam de nos dizer e saber o que ele é? É só um problema de erudição. De fato, continua a ironia, o erudito é uma ave rara. Mas não há saber que eles não saibam, uma vez que sua erudição já tem conceitos e análises demonstrativas para tudo. Não atingisse a estes também a ironia de Riobaldo. O que as raríssimas pessoas sabem não é o saber dos eruditos. Sábios eram os pensadores gregos e a experienciação do real na língua grega, que tinha muitas palavras para tentar experienciar o isto do saber: aisthesis, episteme, techné, doxa, nous, logos. Na metafísica tudo se simplificou, com a teoria e a sociologia do conhecimento, tudo reduzido a suportes epistemológicos. Porém, Aristóteles, sabiamente, disse: to on legetai pollachós. O saber do sendo se dá e diz de muitas maneiras. Saber só se sabe originariamente a partir do isto de todo saber, mas então será sabedoria só de experienciação feita, onde se sabe “só essas poucas veredas, veredazinhas” (Rosa, 1968: 79). Se vemos e sabemos, e vemos e sabemos, o que não vemos nem sabemos é muito maior, muito mais enigmático e misterioso do que a vã pretensão de nossos conceitos. Já há bastante saber em saber que somos uma doação das questões. Resta-nos escutá-las e experiênciá-las. Em meio à escuridão da noite do ser-tão, em seu silêncio de retração e velamento, não há saber de teoria ou suporte que o abarque e responda à pergunta originária da questão que pergunta pelo isto. Só nos restam veredazinhas de sabedoria como travessia do e para o homem humano: doação do Amor.
Por isso, Heidegger, ao se defrontar com o enigma do que é a arte, afirma: “Na frase: ‘Pôr-se em obra da verdade’, em que fica indeterminado, porém, determinável, quem ou o que de que modo se ‘põe’, vela-se a referência do ser e da essência humana...” § 206.
Em Grande ser-tão: veredas, essa referência se desvela para Riobaldo. Mas desvela-se velando-se misteriosa e irremediavelmente. Por isso só lhe resta o questionar como dádiva do silêncio da morte. É que a questão do desvelar e velar-se é dado e destinado a Riobaldo na e pela presencialização e presentificação de Diá-dor-im. Por isso, este é o “encoberto” (Rosa, 1968: 121). Não podemos esquecer que quem fala o tempo todo é Riobaldo e retira da memória o que pela memória lhe é dado e não e jamais como lembrança de algo que aconteceu e que aos poucos ele, pela narrativa do seu querer-poder, vai se lembrando. A memória é a mãe de todas as artes, porque é a mãe de todas as Musas. E a linguagem é a mãe do todas as línguas, fala de todo narrar. E Riobaldo vai experienciar o desvelamento do velamento e o velamento do desvelamento na e pela morte de Diadorim. Mas para este aconteceu o salto originário, ao lançar-se inapelavelmente na terceira margem, ao dar, na luta final com Hermógenes, o “salto mortal”. E Riobaldo? Fica fora da disputa, pois ainda não chegara a sua hora e vez, até porque ela já se realizara ao se vencer e deixando tomar e comandar pelo pacto, pelo Amor.
Diante de Diadorim morto e do desvelamento do velado no velar-se do desvelamento como mortal, toda a questão do Amor para Riobaldo se põe, na sua atração por Diá-dor-im, no âmbito do velamento-desvelamento (a-letheia). A verdade é a essência originária do Amor. É nele e por ele que lhe advém a questão do real e do Amor como verdade e não-verdade. Pois o amar de todo Amor é a verdade de toda não-verdade. E então a questão do pacto toma o enigmático caminho da dobra. Ambos, Riobaldo e Diadorim, são colhidos e escolhidos pelo Destino enquanto vigência do Amor. Riobaldo, atraído pelo que se vela em Diá-dor-im, sem saber, aparentemente, segue-o não como velado, mas como o desvelado. E neste desvelado e com Diadorim, quer levar a cabo o que fora inicialmente um querer-poder consertar, relacionado a e provindo de Diadorim, o vingar a morte do pai pela e com a morte de Hermógenes. Riobaldo, pela atração do afeto desde a Iniciação e pelo Amor, se une na mesma travessia amorosa por e com Diadorim. Pois fora este com a travessia do Rio que o iniciara na dor e na coragem de ser no e pelo Amor. E é movido pela travessia amorosa de ser o si-mesmo do outro, de Diadorim, que ele se decide pelo pacto. E faz o pacto. Por isso, quando Diadorim deixa o Amor por Riobaldo predominar, pede a ele para abandonarem tal querer-poder e acabarem com a perseguição a Hermógenes. Mas é aí que a “tarefa”, o “quinhão”, o destino que lhe é próprio já se apossara de Riobaldo, porque não é mais um poder-querer do consertar, mas já se fizera em Riobaldo a entrega ao pacto enquanto poder-querer do concertar enquanto do Amor. Como o destino nos é velado, ele, o destino, se vela e desvela no dissimular que acontece in-versa-mente em ambos: Riobaldo e Diadorim. Num e noutro o apelo da dobra como Amor. E, no final, para Riobaldo deve restar uma dúvida e uma certeza: Não sabe o que é isto: ser, homem humano e Amor; sabe que eles acontecem poeticamente como travessia amorosa. E isto para cada um sempre originariamente.
A morte é o véu da vida que se rasga para o desvelamento do Nada. Experiência-lo em vida é a paixão amorosa de experienciar como Amor aquilo que como Amor é Nada. É o poder-querer do concertar enquanto acontecer poético do diá-logo amoroso. “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Rosa).

Bibliografia

ROSA, João Guimarães. 6.e. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva. Lisboa, Edições 70, 2008.

Algumas idéias aqui usados são mais desenvolvidas em alguns ensaios que podem ser encontrados em www.travessiapoetica.blogspot.com, tais como:
A dobra e o duplo (2008).
Permanência e atualidade da poética (2008). Ensaio publicado na Revista Tempo Brasileiro, out.-dez., 2007.
A poética como pathos: amor (2007)
Grande Ser-Tao: diálogos amorosos (2007)

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