12 junho 2008

O corpo, a leitura e o humano

Prof. Manuel Antônio de Castro
www.travessiapoetica.com
http://travessiapoetica.blogspot.com


O que é o corpo? O corpo é um enigma, é questão, é doação divina, é o ser humano. A matéria, a mente e o espírito são questões do corpo. Porém, o corpo não é a soma nem a justaposição dessas questões. Corpo genético, sócio-familiar, poético. O corpo não se confunde com a questão do sujeito, porque este é apenas uma dimensão do que o ser humano como corpo é. E há também o inconsciente que incorpora a linguagem, fala e também é corpo. O corpo é. O ser humano como corpo se move já desde sempre no horizonte da Cura. O corpo é uma figuração da Cura. Nós não sabemos o que é a Cura, porque somos uma doação sua. A Cura é sempre Cura do que sentimos e não sentimos, do que sabemos e não sabemos, queremos e não queremos, somos e não somos.
A Cura é o enigma de todo corpo. O corpo só é corpo como questão da Cura. O ser humano é um fingir da Cura.
Cura é um mito, a imagem-questão do corpo que é ser humano. Todo mito é imagem-questão. No mito de Cura advêm as questões do ser humano como um todo.

O mito de Cura
Muitas vezes ficamos perplexos diante do que nos acontece na vida. Estamos sempre à pro-cura disto e daquilo e até, essencialmente, de nós mesmos. O que nos move na pro-cura é a Cura. Cura, do latim, assinala o Cuidado.
A Cura impulsiona todo nosso agir, que se diz em grego poiein, de onde nos vem poiesis, a essência do agir, a poesia. Esta só é linguagem quando se torna verbo-ação-poiesis. Toda poesia nos advém a partir de Cura. É essa a fala do mito “Cura”.
A fala do mito é a linguagem do sagrado, por isso nele agem e falam deuses: imagens-questões. O ser-humano (Entre-ser / Da-sein) é doação da Cura enquanto poesia e linguagem. É o que nos narra o mito Cura. Ele nos foi assinalado por Higino, escravo egípcio de César Augusto, que morreu no ano 10 da nossa era. Eis a sua saga:

Cura
Gaius Julius Hyginus

Cura cum fluvium transiret, videt cretosum lutum sustulitque cogitabunda atque coepit fingere.
Dum deliberat quid iam fecessit, Jovis intervenit. Rogat eum Cura ut det illi spiritum, et facile impetrat.
Cui cum vellet Cura nomen ex sese ipsa imponere, Jovis prohibuit suumque nomen ei dandum esse dictitat.
Dum Cura et Jovis disceptant, Tellus surrexit simul suumque nomen esse volt cui corpus praebuerit suum.
Sumpserunt Saturnum iudicem, is sic aecus iudicat: “Tu Jovis quia spiritum dedisti, in morte spiritum, tuque Tellus, quia dedisti corpus, corpus recipito, Cura enim quia prima finxit, teneat quamdiu vixerit.
Sed quae nunc de nomine eius vobis controversia est, homo vocetur, quia videtur esse factus ex humo”.

Mito de Cura ou Cuidado
Gaius Julius Hyginus
(Tradução: Prof. Dr. Carlos Tannus)
Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura.
Enquanto meditava no que já fizera, Jove interveio. Cura pede-lhe, então, que lhe infunda um espírito (ao que acabara de moldar) e facilmente o consegue.
Como Cura quisesse impor-lhe por si própria um nome, Jove proibiu-lho, insistindo em que ele deveria dar-lhe seu próprio nome.
Enquanto Cura e Jove discutem, ergue-se ao mesmo tempo a Terra, querendo dar-lhe seu próprio nome, já que lhe fornecera o corpo.
Tomaram a Saturno como juiz, e este busca ser equânime: “Tu, Jove, porque lhe deste o espírito, recebê-lo-ás após a morte. Quanto a ti, Terra, porque lhe deste o corpo, então o receberás. E Cura, porque primeiro lhe deu figura, mantê-lo-á durante todo o tempo em que ele viver.
Mas, porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem porque parece ter sido feito do húmus.”

Pelo mito enquanto imagem-questão, fica bem patente que o ser humano é um fingir/ficcionar da Cura. Embora no mito pareça que há uma separação entre o corpo e o espírito, tal não acontece. Tal separação é algo posterior ao ser fingido pela Cura. É já o ser humano dimensionado pelo TEMPO/CRONOS e pela Morte. Estas advêm já no e pelo percurso do próprio ser humano como poiesis, no sentido de que há desejos, procuras. O sujeito não é a essência do ser humano, mas este precede aquele na medida em que ele já se move no horizonte das próprias possibilidades que lhe foram doadas por Cura ao fingi-lo.
Cura e fingir constituem o fundo em que se move o ser humano no realizar-se como sujeito, mas sempre na medida do que é como Cura e fingir. Porém, estas duas questões ainda não me dão toda medida do ser humano como corpo. Nele aparecem e comparecem também: Céu e Terra. Ou seja, nosso corpo é uma configuração de diferentes dimensões resultantes da sua figuração por Cura: criação, espírito, corpo, Céu, Terra, Tempo, Morte, Linguagem, Nome. Estas são as questões do ser humano como Entre-ser da Cura.

A leitura, o corpo e as camadas da memória
A melhor metáfora para dizer o que é texto é a rede. Como rede ele se constitui de linhas, nós e buracos. E mais amplo que tudo isso o vazio e o silêncio, pois há textos escritos e orais. As palavras têm uma densidade horizontal e vertical, levando o texto a se constituir em múltiplas camadas. Ao entre-cruzamento destas camadas e vozes podemos denominar: hipertexto, intertexto e hypotexto. É importante ter bem presente que o “mundo” se constitui em múltiplos textos e obras. Mas poderíamos dizer que, à semelhança de um organismo vivo, cada texto têm também as suas células, seus membros e seu corpo, mas onde cada célula contém em si todo o corpo (obra). Em grau de complexidade crescente: palavra, oração, discurso, obra.
Hipertexto
O hipertexto é um conjunto de linhas, nós e buracos ligados por conexões constituindo uma sintaxe de muitos sentidos e significados. O que em geral caracteriza o hipertexto é o fato de se poder constituir ele mesmo de outros textos, sejam palavras, imagens, gráficos, seqüências sonoras, sejam documentos complexos que também podem ser eles mesmos hipertextos. Num exemplo simples, poderíamos dizer que uma obra onde entram múltiplas manifestações artísticas se constitui como hipertexto. Fragmentos, colagens, justaposições, citações, comentários etecetera, tudo junto, são elementos de que se constituem os hipertextos. Hoje, o largo uso das infovias e da intenet permite fazer hipertextos ricos e sofisticados. O interessante desse novo texto é a diluição da autoria e até da originalidade. Mas em termos comunicativos pode conduzir a uma grande complexidade.
Intertexto
O intertexto como tal se constitui na reunião de diferentes textos, seja diacrônica, seja soncronicamente. Ele pode tornar-se uma dimensão de um hipertexto. Os intertextos conjugam perspectivas e realizações discursivas diferentes, mas metabolizados numa nova dicção que lhe dá a originalidade. A identificação da intertextualidade exige muita leitura e conhecimentos, e pode permitir interpretações mais ricas.
Hypotexto
Em si, tanto o hipertexto como o intertexto já pressupõem a presença e vigor do hypotexto. Ele constitui as camadas da memória de que se constitui realmente cada texto. Pensando que a teia em que se tece o texto se nutre do discurso e sabendo que o discurso é a matéria do tempo feito memória, vemos que a palavra traz em si, como um pôr entre, o presentificado, o presentificante e o presentificável. A co-presença destas três dimensões do tempo na palavra abre as inúmeras possibilidades de leituras e interpretações. Na memória está todo o saber. O uso de diferentes dicionários é essencial para adentrar o hypotexto de cada texto.
Quando pensamos e constatamos que qualquer um de nós faz parte de uma tradição cultural, onde as múltiplas criações são intertextos, hipertextos e hypotextos, a idéia linear de início, meio e fim é algo absolutamente aleatório. Sendo então a cultura de um povo um intertexto, hipertexto e hypotexto, onde começa e como cada um realiza uma leitura é algo completamente imprevisível, porque depende da formação, do acesso, das conexões, das intuições, da inteligência, das motivações, das crenças etc. de cada um.
Por outro lado, isso gera uma angústia nova: a de que o exercício da subjetividade é algo mais virtual do que real, porque os passos e caminhos percorridos no intertexto, hipertexto e hypotexto já estão previstos na rede. Somos hoje uma sociedade em rede. Mas não podemos confundir a ambigüidade do texto poético, ainda que faça também parte do intertexto, hipertexto e hypotexto, com a as possibilidades e caminhos da rede. Isso seria um grande equívoco. A ambigüidade poética diz respeito à tensão rede, vazio e silêncio do real. Em verdade, se não houvesse o vazio não haveria rede. Nessa dimensão, a leitura do texto poético só se traduz numa interpretação quando a tensão e escolha se dá numa escuta, não do que os fios da rede prevêem, mas quando e tão-somente quando ela vige na tensão fios-discursos, vazio e silêncio. Por isso o estudo tradicional das obras de arte, baseados em matéria e forma, não dá conta do que a obra como obra de arte é. A matéria e a forma nada são poeticamente sem o vazio e o silêncio. A eles se prende a leitura poética, onde o móvel da leitura é a poiesis.

A palavra e o corpo – a teia da vida
Nossa idéia de corpo é muito parcial e influenciada por uma dicotomia entre espírito e matéria. Não cabe agora e aqui discutir a origem dessa dicotomia. No entanto, hoje, a ciência está comprovando a profunda ligação entre o ser humano e todo o restante da vida e da natureza. Considera-se hoje que a vida se constitui numa grande rede. Por isso, podemos apreender o corpo em cinco grandes níveis: 1º. O corpo que cada um tem; 2º. O corpo de um grupo familiar e genético (etnia); 3º. O corpo genético de todos os seres humanos; 4º. O corpo como ecossistema; 5º. O corpo planeta como biosfera. Tais corpos se interligam de uma maneira maravilhosa e misteriosa compondo a teia da vida.
Há uma tendência ocidental por influência dos conceitos em detrimento das questões pela qual julgamos que ler é sempre um exercício racional. Mas não.
O ser humano, enquanto sentido do todo que ele é, se condensa em três energias e impulsos: 1ª. física; 2ª. mental; 3ª. erótica, gerando uma tripla escuta e experienciação: 1ª. palavra lida em silêncio ou falada; 2ª. dança; 3ª. música. Nesse processo rico de leituras se dá e densifica o Logos, pois ele diz fundamentalmente reunir como linguagem. A denominação da linguagem, em português, a partir de uma parte do órgão fonador, a língua, conduz a uma compreensão equivoda da linguagem, identificando-a com algo substancial e material e só acentua o nosso lado corporal. Corpo aqui nada tem a ver com matéria ou carne. Corpo somos o que somos enquanto realização do ser como poiesis. Daí a sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura e das questões.
Descartes, que inaugura a Modernidade, separa o ser humano-corpo em duas realidades: 1ª. Res cogitans (coisa pensante, racional); 2ª. Res extensa (material, carnal). Esta divisão é a base da Modernidade, daí a dificuldade hoje em pensar o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo, o todo que cada um é. A argumentação da consciência determinando não só o ser, mas também o próprio real/corpo só seria aceitável se admitirmos a dicotomia cartesiana. Pode-se ela sustentar? O que ficou esquecido? O corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente. Sem esta ação nada pode acontecer, nem mesmo a consciência. A dicotomia levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-introspectivo ou mesmo em voz alta (rara), mas da qual se afastou fundamentalmente o corpo.
A tripla leitura de voz, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Porém, estas três leituras só são possíveis a partir da escuta do que se é. Neste ser nunca há dicotomias.

As três forças
A compreensão do corpo como matéria ou carne é por demais enganador e insuficiente. Até porque não sabemos o que é matéria o carne. Real não é o que se vê, mas o que age. Por isso o corpo é uma sintaxe poética. Nele e com ele atuam as três forças: 1ª. a física, cuja metáfora é o braço; 2ª. a mental e psíquica, desdobrada misteriosamente no pensamento; 3ª. a erótica, cuja metáfora é o coração e sua experienciação amor. A essas três forças perpassa a compreensão, daí apreensão e aprendizagem. Quando isto ocorre se manifesta o espírito, um fogo secreto e misterioso que é o próprio vigor do corpo como corpo, como ser humano. Essas três forças vivem de uma tensão permanente, que os gregos chamaram de polemós (luta, combate). Dele surge como poiesis a sintaxe e narrativa poética. Um corpo tem em si a narrativa primordial.
O ser que o corpo é abrange o uno (silêncio, vazio, nada) e a multiplicidade das diferenças. O uno se dá como compreensão e linguagem. Por isso é necessário mergulhar no entre em que toda palavra se funda como palavra. O irromper em sentido (sentimentos) e caminho é Hermes se fazendo presente na tripla força, daí ser ele verbo. O máximo da sintaxe poética mergulha e se manifesta no entre como repouso, ou seja, a sintaxe poética se dá na tensão e tende sempre à não-ação, como máximo de ação e silêncio. O corpo abrande as três forças e se torna o lugar/mundo como tal do nada excessivo em que se constitui toda a realidade. A interpretação é a eclosão do corpo como aprendizagem e sabedoria, a partir de e no entre. A leitura como escuta não consiste, pois, numa decodificação de letras, mas na integral experienciação e aprendizagem do que somos. Por isso Fernando Pessoa nos convida:

Para ser grande
sê inteiro.
Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Nada teu exagera
ou exclui.
Assim em cada lago
A lua toda brilha
Porque alta vive.

O corpo verbo e as três leituras
A dança, a música e as outras artes, enquanto verbo/Hermes, manifestam nosso corpo que é um sendoser poético.
Somos sempre um sendoser ambíguo. Esta ambigüidade radical constitui nosso corpo. Este implica três dimensões:
1º. Sendoser físico-sensitivo; 2º. Sendoser-mental-cognitivo; 3º. Sendoser emotivo-erótico. Eles se implicam. A sua distinção é meramente processual, pois a sua reunião e distinção é permitida porque somos linguagem. Porém, o seu sentido e integridade nos é dado pela essência da ação, enquanto o corpo é o sentido do ser. O corpo-sentido do que é nos advém como poiesis/artes. Os múltiplos sentidos do sendoser são os múltiplos sentidos do corpo/sendoser: homem como obra de arte.
Além disso, nosso corpo em seu gestual de vida é o tempo se manifestando como linguagem. O corpo-tempo-linguagem vigora nas três dimensões do tempo: o tempo presente é a própria ambigüidade de sentido dos gestos enquanto entre-ser, enquanto ser-do-entre. Se por um lado nosso corpo traz em si, em seu “genos” (de onde provém o código genético e o código lingüístico) todo o presentificado como memória, por outro lado, projeta-se, como expiração, num presentificável que, em si mesmo, já é memória como presentificado, porque o presente só é sendo e não sendo. Como em si, como sentido, é sempre sentido de ser. Daí vem a arte da dança: o gesto corporal que se faz sentido do ser enquanto arranca da memória do que já é o que será. Daí a aparente evanescêncica e movimento da arte da dança. Pelo contrário, ela é o modo mais concentrado de ser no sendo a presentificação do presentificável no presentificado. A dança não é qualquer movimento: é a ação poética grávida do sentido da vida. O seu ritmo e rito é a narração (epos) da alma (inspiração/expiração) como experienciação, aprendizagem e libertação para o que já desde sempre somos.
Verbo é ação. Dança é ação. Poesia (poiesis) é ação. A dança é uma leitura
poético-verbal que configura o nome do que somos.
Há uma tendência ocidental, por influência dos conceitos, em detrimento das questões, pela qual julgamos que ler é sempre um exercício racional. Mas não.
O sendoser-corpo se condensa em três energias: 1ª. física; 2ª. mental; 3ª. erótica, gerando uma tripla escuta e experienciação: 1ª. palavra lida em silêncio ou falada; 2ª. dança; 3ª. música. Nesse processo rico de leituras se dá e densifica o Logos grego, pois ele diz fundamentalmente reunir como linguagem. Esta parte do órgão fonador (língua) que denomina a reunião de sintaxe de sentido do ser como verbo, poiesis e nome só acentua o nosso lado corporal. Corpo aqui nada tem a ver com matéria ou carne. Corpo somos o que somos como realização do ser como poiesis, daí a sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura e das questões.
Descartes, que inaugura a Modernidade, separa o ser humano-corpo em duas realidades: 1ª. Res cogitans (coisa pensante, racional); 2ª. Res extensa (material, carnal). Esta divisão é a base da Modernidade, daí a dificuldade em conhecer o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo, o todo que cada um é. A argumentação da consciência determinando não só o ser, mas também o próprio real/corpo só seria aceitável se admitíssemos a dicotomia cartesiana. Mas pode-se ela sustentar? O que ficou esquecido? O corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente. Sem esta ação nada pode acontecer, nem mesmo a consciência. A dicotomia levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-introspectivo ou mesmo em voz alta (rara), mas da qual se afastou fundamentalmente o corpo. A tripla leitura de voz, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Porém, estas três leituras só são possíveis a partir das oito passagens pelas quais se manifesta o que cada um é. Neste ser nunca há dicotomias.

O corpo e a necessidade
A necessidade do livre-ser está ligada â facticidade e não a qualquer outra necessidade como outros fatos: um incidente, um acidente, algo passado, um encontro, a necessidade de comer, o fato de que o dia nasce, morre, se manifesta, enfim, qualquer fato. Estes fatos só podem ser lidos e compreendidos como fatos porque há a facticidade. A facticidade do ser-humano diz radicalmente que ele é Cura, é entre-ser, é liminaridade, é abertura ao ser, é entre-compreensão, é livre-ser para apropriar-se do que é próprio. E o que é próprio é o que somos a partir do acontecer do ser.
Há duas necessidades quando olhamos o ser-humano e os demais entes. Em relação aos entes há a necessidade de ser em relação a seu código genético, embora esta necessidade contenha uma liberdade necessária que faz com que o ente seja o ente que já é. Não há uma total determinação genética – esta mesma se move também na liberdade – nem ambiental. Mas para o ser-humano a necessidade se dá em outro nível. Se “olharmos” o corpo do ser-humano seremos tentados a ver “nele” o que disse em relação ao ente. Porém, isso é falso, porque não há o “corpo” do ser-humano como “corpo” dos entes (aparentemente sua coisalidade, a “res extensa”) e que além disso o ser-humano ainda teria a “res cogitans” (aí incluído o “imaginário e o simbólico”) ou também a denominada alma ou espírito, havendo uma dicotomia e separação entre os dois níveis. Não há. Isto fica evidente no fato da “necessidade” de comer para não morrer (também aparente porque ligado à separação) que não se limita a simplesmente “comer”, mas necessária e livremente a sempre fazer uma “arte culinária”. Não é a necessidade essa como tal que determina a “arte culinária”. È que o ser-humano é necessariamente livre, isto é, artístico e, por isso, faz sempre “arte culinária”, arte. Este “necessariamente livre” é seu projeto poético-onto-fenomenológico. O projeto se realizando é o corpo se manifestando e constituindo como ser-corpo. O poder-ser-livre acontece como ser-corpo. Eis o que diz Heidegger: “O poder-ser é aquilo em função de que o Entre-ser é sempre tal como ele é de fato. Na medida, porém, em que este ser para o próprio poder-ser acha-se determinado pela liberdade o Entre-ser também pode relacionar-se com as suas possibilidades, ele pode ser impróprio”. Ser e tempo, p. 258.
Assim como o corpo “físico” não se opõe ao “espírito” ou “mente” ou “res cogitans”, como vimos antes, também não se pode reduzir a Cura enquanto “poder-ser” à vida. No ser-humano, a vivência recebe necessariamente pela livre-necessidade de poder-ser o seu ser-sentido de vida pela experienciação no horizonte de Cura, ou seja, da livre e necessária pré-compreensão, ou ainda, entre-compreensão. Viver não é ter vivências. Estas só se tornam vivências no necessário livre apropriar-se do que é próprio que não vem somar-se, anexar-se à vivência. Toda vivência já é experienciada no livre horizonte da entre-compreensão da Cura como o horizonte do que nos é próprio, isto é, “o poder-ser é aquilo em função de que o entre-ser é sempre tal como ele é de fato” (Heidegger, Martin. Ser e tempo, p. 258): entre-ser. Ser-Corpo é a vida transfigurada e dimensionada pelo livre apropriar-se do que é próprio no horizonte da Cura como poder-ser. Mas este poder-ser livre e necessário é a póiesis. Esta póiesis não significa que ela seja diferente da póiesis inerente à physis simplesmente. É que a póiesis desse necessário livre-poder-ser constitui o ser-humano na medida em que a physis no ser-humano se doa como póiesis de linguagem e da linguagem. Se uma não se subordina à outra, pois elas se tocam levemente, como diz Heidegger no parágrafo 207 do ensaio O orignário da obra de arte, também nenhuma determina a outra, porque ambas provêm da physis. E isto é que é essencial compreender. Se eu me movo na linguagem para falar da póiesis, também só porque já sou vigente como póiesis é que posso falar. Eu creio que póiesis e linguagem convergem no silêncio, porque aí temos tanto linguagem como póiesis na sua consumação máxima. O sentido pleno é a não-ação da póiesis enquanto linguagem do silêncio, onde não-ação e silêncio não indicam ausência ou falta, mas a plenitude do repousar em-si como quietude. Isto não é a morte, mas o ser-feliz. A música tende ao silêncio como a dança tende à quietude.
Na leitura sempre acontece um aprendizado e uma aprendizagem enquanto uma tripla referência: a do duplo mundo, a da dupla finalidade e a do duplo agir da póiesis/lnguagem, ou seja, instrumental e manifestativa.
O desdobrar do acontecer referencial do aprendizado e da aprendizagem é que manifestam o ser-humano em sua corporeidade. Esta indica aqui o ser-corpo. Como acontecer e sempre como acontecer podemos apreendê-la e compreendê-la em quatro corpos. O primeiro é o ser-corpo que constitui a unidade de cada é, de cada “unidade”, de cada ente. O segundo constitui-se na medida dos diferentes corpos-unidade que compõem um povo, uma etnia, uma cultura ou, no dizer mítico, um “genos”, uma família, um clã. O terceiro surge na unidade de reunião que constitui a Mãe-terra como a grande fonte e suporte de todas as culturas e etnias. Deste terceiro corpo trata hoje a eco-logia poética. É neste sentido profundo que Hölderlin fala de “Heimat”, ou seja, da Mãe-terra como a grande “Pátria”, a “Casa” para onde sempre regressamos. Este regressar de maneira alguma diz algo cronológico ou a Mãe-terra entendida como “matéria”. Indica muito mais a finalidade que consiste num consumar a plenitude do que somos na simplicidade complexa dos três corpos, pois a cada um corresponde um habitar. A reunião destes três habitares é que denominamos eco-logia poética. Esta como tal constitui o quarto corpo que nada mais é do que a reunião dos três. É o corpo poético. Nele a póiesis/linguagem tende a seu sentido pleno na manifestação integrada do duplo mundo como memória e linguagem, tempo e póiesis.

Dança e movimento
O movimento é a grande questão para os pensadores originários e filósofos gregos. A solução de Galileu para o movimento foi achada na redução do movimento à equação matemática. Matematizar o movimento é a solução moderna e científica. A metafísica já o fizera através da substituição da QUESTÃO pelo CONCEITO. Por isso há uma profunda simbiose entre técnica e matemática. Daí o movimento preciso (esta precisão é conceitual). Nessa precisão técnica muitas vezes se resolve e conceitua o GESTO e a DANÇA como GESTOS. Contudo, essencialmente o movimento só é dança quando ele se manifesta como o sentido do agir, da ação, como a essência do agir. O real é essencialmente AÇÃO (e não e jamais os fatos, não há fato sem ação. Se não pensamos o agir não pensamos o real). É que na e pela ação poética o ser humano chega a ser o que é. Em todos os seres o chegar a ser o que é procede de uma ação interna que entra em simbiose com o que “aparentemente” é externo. Não há esta divisão, só conceitual. Contudo, cada coisa, cada ente não tem uma substância em si, estática e já dada. Cada coisa é coisa na medida em que surge na confluência com as outras coisas numa grande teia da vida. Não é que a teia lhe dê o que é, mas manifesta o seu sentido. Nisto consiste a essência do agir. À essência do agir os gregos chamaram poiesis. Esta poiesis é sempre essencialmente um agir da physis. Physis é o que surgindo e se desvelando se vela. Esta ambigüidade constitutiva e essencial da Physis é que é propriamente o real (real vem da palavra latina res=coisa).
Por isso Heidegger diz a propósito da Physis como surgir: “Podemos ainda pensar o surgir como quando o ser humano, concentrando o olhar surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o homem e com ele se reúne a fim de que o próprio ser humano se revele, como o ÂNIMO se desdobra NOS GESTOS, como sua essência persegue o desvelamento num jogo, como sua essência se manifesta na simples existência”. Heidegger, 1998. Heráclito. Rio, Relume Dumará, p. 101.
O ÂNIMO se desdobrando nos gestos é a essência da DANÇA. Fique, porém, claro que a palavra ânimo de anima, alma, traduz o termo grego physché, que quer dizer o movimento vital de inspirar e expirar: o livre viver. Dança são os gestos do movimento que nos libertam para o livre viver pela manifestação do que essencialmente somos. O gesto da dança é a procura da densidade do sentido do agir em sua manifestação. Dança é a sintaxe da physis se manifestando no ser humano em seu sentido poético. O gesto, na figuração do movimento, é uma doação do vazio e do silêncio que colhe o seu sentido na busca da plenitude do agir: o repouso. O gesto é o sentido do corpo na tensão harmônica de limite e não limite, de atração para a Terra e experienciação da liberdade no aberto da vida. A dança não é o corpo em movimento. Pelo contrário, é o corpo eclodindo na densidade do que é enquanto busca de realização plena no não-movimento do repouso. Repouso diz aí sentido pleno e não falta de ação.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo texto . Parabens !