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"Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá" (Rosa, 1968: 119).
A questão e o homem
O ser humano é lançado na vida e sabe que viver é conviver com a morte. Por isso como diz Grande sertão: veredas, num de seus Leitmotive: Viver, não é?, é muito perigoso. Viver, saber e morte são questões. Não é o ser humano que tem as questões. São estas que têm e configuram o humano do homem. Elas são maiores que o homem. Mesmo imaginando que um dia pudesse haver um computador que armazenasse, organizasse e processasse todas as ‘informações’ numa reinvenção de progressão geométrica, para além de todos os conceitos e informações reais e imaginários, resta sempre o interstício da questão. A questão é maior do que o homem. Mesmo que o homem se tornasse deus, ainda assim a questão é maior que deus, porque é maior que o homem. “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (p.18). O ser-tao é a questão, o a-ser-pensado, isto é, o a-ser-cuidado no e com o desvelo amoroso. O Homem como humano é a travessia da questão entre morte e vida. Jogado no entre da questão, só lhe resta morrer para viver. “E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério” (p.49). O mistério do Ser-Tao, a questão maior, é maior que o homem.
A questão e o diálogo
O Ser-Tao é a questão para Guimarães Rosa e a torna poética em sua obra-prima Grande sertão: veredas, ao configurar a obra num diálogo abismal entre Riobaldo e o ouvinte. O diálogo, muito mais que um recurso formal, é a única via de questionar a questão, porque no e como diálogo se dá o Ser-Tao, o Grande sertão. Mas por que abismal?
A questão: entre o Nada e o Tudo
A obra começa com um travessão. Porém, não se reduz, formalmente, à indicação da introdução do discurso direto. As formas, sem o corpo vivo da arte, são estruturas esqueléticas. Se olharmos o final da obra, veremos que há uma última palavra, única, solta entre dois pontos, valendo por si, sem necessidade de proposição e juízo, absoluta: Travessia. Mas não termina aí a obra. Destacado, em baixo, solto, único, abismal: um sinal de infinito: o tudo. E se, agora, a partir desse todo abismal voltarmos ao início do início, veremos que antes da primeira palavra, Nonada, há o travessão, um traço, um algo que surge de onde?, se antes só há o vazio de tudo, seja do branco da página, seja do enigma do que não vemos, não sabemos e nem podemos, a não ser, nada dizer. E é a partir disso, que Riobaldo, a figura-questão, principia o narrar: Nonada. Como travessia, também palavra única: isolada, majestosa, circunspecta, absoluta. Surgimos, começamos, principiamos, que palavra usar?, do Nada. Mas uma coisa é certa: estamos e somos no/nada. No: que é este no?
Esse no assinala a clareira, essa abertura dentro da qual viemos para a manifestação. Narrar é manifestar na clareira a fala do silêncio. No é muito mais do que a forma gramatical da contração da preposição em/in com o artigo definido o. No assinala na clareira, o aberto da livre manifestação, a nossa liminaridade, pois estamos sempre num limiar, a partir do qual e dentro do qual realizamos a nossa travessia. É um in poético-ontológico. De in formou-se o entre que deu origem à palavra intuição. Esta reúne o in e o verbo “tueor, que diz: olhar e guardar” (Castro, 2006: 18). Intuição diz, pois, o pathos, a disposição de desvelo para com a questão, a razão de ser e narrar de Riobaldo, isto é, o a-ser-cuidado: o Tudo, o Ser-Tao.
A questão e o narrar
Se a questão tem o homem, ela se dá no homem. Há, pois uma tensão, entre o homem como ente e o humano do homem que faz do homem um entre, aquele que sendo ente é ente aberto para o Ser-Tao. Nessa abertura que faz do homem um entre-ser, o humano consiste na demanda do ser, realizável dentro do ser como Tao. Tao é uma misteriosa palavra chinesa que, entre outros sentidos, assinala a caminhada dos caminhos nos quais e pelos quais o humano do homem vem a ser o que é no como enquanto Tao do Ser: o Ser-Tao, Veredas.
Jogados na questão do sertão, só nos resta empreender uma caminhada de apreensão e compreensão, não racional, mas enquanto travessia poético-ontológica: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder” (p.79). (Gã: nome da primeira gutural sonora do alfabeto sânscrito, correspondente ao nosso G. (Aulete, 1964: 1877) ). É evidente que a Gã é o próprio Guimarães e Grande sertão, numa junção poética de nome, arte e ser. Porém, diz Guimarães: “Que é que é um nome? Nome não dá: recebe” (p. 121). Isso fica claro na citação, pois esse ser do nome Guimarães é “que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”, isto é, movendo-se na questão enquanto questionar “querer decifrar as coisas que são importantes”. Para o leitor desta obra, fica evidente que quaisquer problemas circunstanciais, ou seja, intra-mundanos, são absolutamente secundários no que move o narrar da obra. O que inter-essa narrar está claro aí, “não é uma vida de sertanejo ... mas a matéria vertente.” O que lhe inter-essa é a “matéria vertente” enquanto entre-ser. Portanto, há o narrar e a “matéria vertente” que se narra. A palavra “matéria” neste contexto do narrar diz claramente o que está em causa, a questão que se questiona: “o querer decifrar as coisas que são importantes”. Só se pode “querer decifrar” questionando, porque todo questionar questiona porque sabe e não sabe. Já as “coisas importantes” são o que está em causa como questão, são as questões que envolvem necessariamente a nossa vida: “... é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (Rosa, 1968: 79). Não se trata de qualquer matéria, de qualquer assunto, mas da “matéria vertente”. De maneira alguma podemos entender aí vertente simplesmente como dar forma, como quem pega a madeira e dá forma a uma janela ou a linguagem e dá forma a um anúncio, a um conto etc. Já vimos que entre o nada e o tudo, inter-está a travessia, onde a obra é a própria travessia. É o que nos diz esta palavra. Tanto “vertente” como “tra-vessia” formam-se do verbo latino: vertere: “o dar corpo ao suceder”. A travessia é o entre-verter do trans-acontecer poético do viver enquanto Tao.
A configuração das questões
Toda a obra se concentra, enquanto narrar, no querer “decifrar as coisas que são importantes”. Porém, na ordem da narrativa, é importante perceber por que só na página setenta e nove da obra é que o narrador nos diz o que o move. Por que não antes, para orientar o leitor para o que, de fato, constitui a matéria vertente, isto é, a questão, o a-ser-pensado e cuidado desde o início? E esta questão ainda é mais pertinente se atentarmos para a leitura que fizemos do princípio e fim da obra. É claro que há uma lógica interna ao narrar. E ela se dá num configurar as questões numa certa correspondência e correlação. O presente ensaio consiste em tentar apreender essa configuração, as grandes questões, em torno das quais acontece o verter da matéria. Neste sentido, o que na ordem da narrativa o leva a “a querer decifrar as coisas que são importantes” surge de um questionamento em torno de Nhorinhá. Ela é a mulher da vida com a qual um dia Riobaldo fez amor. “Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo” (p.78). Oito anos depois recebe a carta dela, Riobaldo já casado: “Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais” (p.78). Porém, algo enigmático lhe acontece: “Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo o tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor” (p. 78). Foi uma relação envolvente, mas passageira, e passados oito anos, ele volta ainda mais forte. “A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda” (p. 78). Nesta passagem vão ser apresentadas três questões que se interligam e, no entre de nada e de tudo, constituem a matéria vertente de sua vida, da obra que é nossa vida: Tempo, memória, amor. São três questões entretecidas que configuram a travessia enquanto o humano do homem, daí: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes” (p. 79). Isto é que é o a-se-cuidar, mas ainda não se sabe, daí o questionar. Por isso:
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão.
Do que não sei.
Um grande sertão!
Não sei.
Ninguém ainda não sabe.
Só umas raríssimas pessoas
- e só essas poucas veredas,
Veredazinhas.
O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p. 79)
Sem dúvida nenhuma, depois do princípio e do fim da obra, esta passagem é o núcleo central de Grande sertão: veredas. Aí temos duas linhas de construção poética bem distintas. A parte em que se dirige ao leitor enquanto o estabelecimento de um diálogo. A segunda diz respeito ao quê no diálogo se dialoga: a questão do grande sertão e o quê advém no diálogo: “só essas poucas veredas, veredazinhas”. Acontece que o narrador fala do que não sabe. “Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas”.
Diálogo: a obra e o leitor
Caro leitor deste ensaio e de Grande sertão: veredas, o narrador é claríssimo e categórico: “Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”. Como ficamos nós leitores diante dessas afirmações? Elas são para nós, leitores ouvintes: “Lhe falo”. Esta passagem apenas confirma o que desde o início sustentamos: A questão, o “grande sertão” é maior que o homem. Mas também afirmamos que ela se dá no homem. Portanto, todos nós já nos movemos no grande sertão, queiramos ou não queiramos. Neste caso, não é um caso de escolha. Mas para escutá-lo é um caso de ser escolhido. E pelo que nos afirma Riobaldo, escolhidas “só umas raríssimas pessoas”. E mais. O que do grande sertão se sabe são apenas “essas poucas veredas, veredazinhas”.
Quanto a nós leitores/ouvintes só resta a perplexidade. Como saber se nos incluímos nessas “raríssimas pessoas”, se somos escolhidos, se somos destinados? Como nos abrirmos para a questão que nos tem e o destino que nos foi destinado? Na realidade é disso que trata ao longo de toda a obra. E, portanto, tudo isso é muito complexo. Aqui nos cabe apenas assinalar o que a mim, leitor/ouvinte, parece essencial. Mas pode muito bem acontecer que o leitor deste ensaio e da obra ache diferente. Isso não só pode acontecer como também é o único caminho, pois tantos serão os caminhos quantas as leituras dos leitores. Caminhos são diálogos. Mas há condições. Em tais leituras não estarão incluídas aquelas que se limitarem a falar sobre a obra. Então não há diálogo. É que para elas há uma condição prévia. E quem a diz explicitamente é o próprio narrador, quando nos adverte: “Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto” (p.79). Temos aí três aspectos fundamentais, sem os quais não nos moveremos no “grande sertao” de Grande sertão: veredas. O primeiro é claro: o ouvinte tem que ser tomado pela loucura, sair do campo puramente subjetivo, racional e analítico, para poder ouvir as doideiras que ele diz. Como são as questões que têm o homem, Riobaldo pode afirmar: “...todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas” (p.15). O que é ser doido senão o deixar-se atravessar pelas questões, para além de toda redução e delimitação convencional da normalidade? O que é ser louco senão mais do que ser guiado pela razão deixar-se tomar pela loucura sábia? Deste decorre o segundo: Tais questões enquanto “doideiras” pressupõem um ir além da razão enquanto uma abertura para a escuta. O narrador nos traça o horizonte de tal escuta: ser “homem sobrevindo, sensato, fiel como papel”. Se diz que o ouvinte deve ser doido como ser ao mesmo tempo sensato? Que sensatez doida é essa? De um lado, deve se abrir para o advento da fala, de outro, deve ser como a folha de papel, um vazio silencioso que acolhe a fala das doideiras, isto é, das questões e veredazinhas. É a obra como operar de diálogo e escuta. Mas para que isso aconteça um terceiro aspecto é fundamental: não é qualquer escuta. Não é o escutar os falatórios dos meios de comunicação e tantos outros. Só haverá escuta quando o que se escuta se “pensa e repensa, e rediz”. O que isto implica para o leitor? Para mim, para qualquer leitor, se quiser ser deveras leitor na exigência que dele faz o narrador? É o que subjaz a Grande sertão: veredas e tento pensar neste ensaio. Dissemos: Só haverá escuta quando o que se escuta se “pensa e repensa, e rediz”. Ao nos dizer isto, Riobaldo nos lança fundamentalmente no coração das questões. É para elas que temos que nos voltar e escutá-las. São elas que falam. O caminho da obra, porque é um caminho-questão, tem que ser feito por nós e só por nós. Temos que nos defrontar com as questões. A obra exige de nós o mesmo inter-esse e abertura para elas. Por isso, Riobaldo insiste neste procurar: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p.15). E o que ele espera de nós leitores? O mesmo. Mas devemos partir do que ele afirma: “Eu quase que nada não sei”. Então a questão é, para nós, leitores, como chegar a saber? A primeira condição é admitirmos os nossos limites, sabermos que as questões são maiores do que nós. Riobaldo continuamente se dirige a nós ouvintes para que o acompanhemos, mas em nenhum momento o ouvinte se pronuncia. No entanto, a obra nos interpela, solicitando nossa participação. Como ela é possível? É a segunda condição: a escuta. Para provocar esta escuta Rosa configura a obra como um contínuo e permanente diálogo. Então a escuta pressupõe o diálogo, assim como o diálogo pressupõe a escuta. Estaremos nós leitores preparados para o diálogo e para a escuta? Para dialogar e escutar não se pode falar sobre, só é possível num ouvir e falar com.
A configuração da obra como diálogo e escuta
A escolha da configuração da obra como diálogo não é algo acidental ou até uma invenção formal, seja na estruturação geral, seja no modo como quer dar forma à narrativa tendo como ponto de vista um narrador em primeira pessoa. Claro que esses aspectos formais estão na obra presentes e é impossível negá-los. Penso, porém, que de maneira alguma é a forma que explica a arte, mas, pelo contrário, a profunda concepção do que é arte é que leva Rosa a optar pelo diálogo como núcleo criativo, onde a escuta é absolutamente inerente ao ser- da-obra como ser-da-arte. Trata-se, pois, da arte enquanto a dupla questão do diálogo e da escuta. Restrinjo-me aos aspectos que considero pertinentes a Grande sertão: veredas.
O círculo da comunicação
No senso comum, dialogar é estabelecer uma comunicação entre duas pessoas. É o que fazemos cotidianamente. Mas há diferença entre comunicação e diálogo. Os referentes que entram no círculo da comunicação são os seguintes:
Um emissor, um receptor, o código, dividido em canal e mensagem. Como fundo em que os referentes se movem, o contexto. Na comunicação, o lugar principal cabe ao código. É ele que permite a ligação entre o emissor e o receptor, e que veicula as informações e conhecimentos. Tradicionalmente, o código se divide em canal e mensagem. Porém, como temos em vista uma comparação com o diálogo, vamos considerá-lo, por enquanto, como o entre emissor E receptor. É ele o lugar do aparecer e parecer. Por isso, tanto o emissor como o receptor vivem em função do código, havendo tanta mais comunicação quanto menor for a resistência de cada um em sua identidade e diferença. De tal maneira que aqui o entre, ou seja, o código, enquanto canal e mensagem, ocupa o lugar central. Não podemos negar que, seja para comunicar informações, seja para comunicar conhecimentos, esta é a conjuntura predominante na vida das pessoas. Porém, dois traços devem ser destacados: 1º. Tanto o emissor como o receptor devem anular ao máximo suas singularidades em favor da objetividade das informações e dos conhecimentos; 2º. Disso decorre que eles se põem de fora e sempre falam sobre o que se informa ou comunica. Isto é possível porque tudo está centralizado no entre enquanto código, pois a linguagem é reduzida a um meio. Mas será que o diálogo se reduz a isso?
O diálogo com o outro: a fala
Se pensarmos o diálogo mais profundamente, vamos ver que no lugar do emissor e do receptor aparecem então um eu e um tu, em suas singularidades, e, ligando-os, a palavra diálogo. Este também é um entre, mas que está para além do código, porque deve dar lugar também ao eu e ao tu enquanto singularidades. Estas também se movem no aparecer, mas onde agora há algo mais: uma fala e uma escuta, ou seja, a presença singular tanto do eu como do tu, enquanto são. Há também um entre, mas agora o código, ao ser singularizado, se torna o que propriamente chamamos diálogo. O entre do código não é o mesmo entre do diálogo. O diálogo é o código singularizado, sem perder o seu aspecto universal, porque se farão presentes tanto a fala como a escuta. Numa conjuntura dialogal, e não mais num contexto comunicativo, o eu se dirige ao tu e este escuta. Todo diálogo, para ser diálogo, implica uma fala e uma escuta. Porém, quando o tu responde, a partir da escuta, o tu se torna eu e o eu se torna tu. O diálogo permite e exige o surgimento desta diferença e identidade, tanto em relação ao eu que se torna também um tu, quanto em relação ao tu que se torna também um eu. Todo eu é o que é e o como é, ou seja, a cada eu corresponde um “isto”, que é o que lhe é próprio, sua essência enquanto identidade. Por isso, todo eu se constitui por uma delimitação interna – sua identidade - , e outra externa, o tu enquanto diferença, ou seja, o outro. Nesta conjuntura, dialogar é sempre falar com o outro. Ao contrário do círculo da comunicação, aqui não é possível falar sobre, pois no e pelo diálogo sempre há um apelo de escuta mútua. O diálogo é um entre diferente do entre do código comunicativo, porque nele se produz tanto uma fala quanto uma escuta. Numa primeira instância, Grande sertão: veredas, enquanto obra de arte, se constitui como um diálogo com o outro, pois todo ele é configurado na fala de um narrador para a escuta do ouvinte ou de cada um que lê a obra. Então a obra é o próprio diálogo. O que é o entre como diálogo? Tudo isto é muito complexo e exige mais algumas reflexões para tentarmos entender mais profundamente a obra.
O auto- diálogo: a escuta
A complexidade do diálogo começa a aparecer pelo simples fato de que, no diálogo com o outro, o tu ao responder, a partir da escuta, se torna de fato também um eu. Significa isso que o eu é também um tu, e que o tu é também um eu. Só que aqui acontece algo mais profundo, na questão das diferenças. Se todo eu é eu e tu, e todo tu é tu e eu, então acontece uma identidade e diferença, uma proximidade e distância dentro de cada um. Além da diferença constituída pelo outro, há também uma outra diferença: a interna. Esta é mais complexa. No fundo, trata-se da identidade positiva e afirmativa. O que sou não me advém pela percepção efetiva do outro, mas pelo que sou naquilo que internamente sou, ou seja, sou esta identidade que eu sou na sua dinâmica interna, afirmativa. Se o diálogo com e a escuta do outro mostram-me o que sou por uma diferença negativa, pois lançam-me nos meus limites frente ao outro, que não sou, já o auto-diálogo e a auto-escuta me lançam numa diferença positiva e negativa ao mesmo tempo ou seja, que sou eu e tu, que sou fala e escuta dentro de mim mesmo, enfim, que sou e não-sou. O eu é e não é. Este não ser é que constitui a segunda diferença, a diferença comigo mesmo, uma vez que sou e não sou. É este não-sou que instala igualmente a proximidade e distância, pela qual até posso compreender a proximidade e distância do outro. Mas como se instala dentro de mim mesmo a diferença? Sem dúvida alguma é no e como diálogo, porque é ele o entre o que sou e não sou. Esse entre como diálogo deve poder produzir ao mesmo tempo uma fala e uma escuta, uma identidade e uma diferença, uma proximidade e uma distância, uma verdade e não-verdade. O auto, o que me é próprio, me advém no diálogo, como fonte originária tanto da identidade como da diferença. Porém, é esse mesmo diálogo, enquanto entre, que também funda o diálogo com o outro, pois ele se faz presente tanto no diálogo-com-o-outro como no auto-diálogo. Contudo, quando agora examinamos os dois diálogos do ponto de vista da identidade e da diferença, da proximidade e da distância, devemos concluir que no auto-diálogo há uma maior proximidade do que no diálogo-com-o-outro. Talvez melhor: que a proximidade com o outro exige necessariamente a conquista da proximidade no auto-diálogo. Se não somos próximos de nós mesmos como poderemos ser próximos dos outros? Por outro lado, não poderemos dizer que a proximidade do outro, se for proximidade, alimenta a minha própria proximidade? Acontece que não podemos falar de proximidade sem a distância, da identidade sem a diferença, do é sem o não-é. Porém, talvez ainda não tenhamos notado que ao falarmos de proximidade E distância, de identidade E diferença, de é E não-é, o que está aí impensado é justamente esse E, que é o entre que se faz presente no círculo da comunicação (emissor E receptor), no diálogo com o outro (eu E tu), no auto-diálogo (o próprio eu que é eu E tu). Mas devemos notar imediatamente que esse entre não é algo que agora se vai acrescentar. Ele sempre se faz presente e funda cada uma das conjunturas, embora, em níveis e realizações diferentes. Esse entre é o próprio diá-logo. Quando Rosa configura a obra de arte como diá-logo em que dimensões está ele pensando o próprio do diálogo como o própria da arte? Contudo, devemos ter bem presente que nas três conjunturas o que igualmente se faz presente é sempre a questão da proximidade. O que é a proximidade? Não será a proximidade a fala e escuta do que somos enquanto diálogo? Não será ela o acontecer do apropriar-se do que nos é próprio? Como fala e escuta, e acontecer do apropriar-se se dão no e como diálogo, na e como obra de arte?
Diá-logo
Como nos afirma Rosa: “O que é para ser – são as palavras!” (p.39), então devemos perguntar à palavra diálogo o que nela é e vem a ser. Ela se forma do prefixo grego: dia- e do radical –logo, de logos, linguagem.
O logos
A palavra logos em grego se forma do verbo legein, que apresenta dois sentidos interligados e complementares: reunir e dizer. Estes se fazem presentes especialmente na palavra diálogo. O logos no âmbito da língua, da arte e do pensamentos gregos é de uma riqueza e profundidade de sentidos quase inesgotável. É senso comum o fato de que o logos é intraduzível. Penso que se, em língua portuguesa, quiséssemos achar uma palavra que tivesse a mesma profundidade e amplitude de sentidos, essa palavra seria, sem dúvida nenhuma, sertão, como é configurada em Grande sertão: veredas. Talvez por isso mesmo a obra seja configurada como diá-logo. E na p. 79, Rosa, partindo do logos, nos diz: “Lhe falo do sertão”. Porém, esta fala nos provoca e convida à escuta. Do quê? “Do que não sei. Um grande sertão”. Rosa só pode falar do sertão a partir do próprio sertão e não de fora, por isso é uma fala cujo sentido e alcance só pode advir na escuta. Uma escuta não só de quem o ouve, mas, em primeiro lugar, ela acontece nele, pois fala do que não sabe. “Ninguém ainda não sabe”. Mas dessa escuta referindo-se ao próprio logos, já nos falou Heráclito no frag. 50: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio corresponder concordando que tudo é um”. Então aqui temos: 1º. O Nonada (Um); 2º. O Infinito (Tudo); 3º. O Logos (o vigor do diálogo como o entre de toda fala e escuta). Então a possibilidade do círculo da comunicação, do diálogo com o outro e do auto-diálogo, enquanto modalidades do diálogo, têm sua origem e fundamento no logos de que nos fala Heráclito. É o logos que se irradia como fonte originária para o código, para o emissor e o receptor, para o eu e para o tu, este enquanto o outro e enquanto o inerente ao próprio eu. Tanto a fala como a escuta, ao fundarem-se no logos, têm neste como silêncio e como o nada de tudo que é e não-é a sua fonte originária. O silêncio, o logos, a linguagem, é a mãe de todas as línguas.
O dia-
Dia- é um prefixo grego que congrega dois sentidos fundamentais: através de e entre. Subjaz a estes dois sentidos um terceiro, inevitavelmente: dois. O através de, de imediato, é entendido como um meio, uma ligação e uma relação entre dois. Porém, para entendermos esse meio, essa relação, teremos que saber o quê na relação se relaciona. É para onde nos aponta o segundo sentido: o entre. Este manifesta mais claramente a relação, o meio. Entre pressupõe sempre dois, senão não será entre. E então o alcance do sentido desse entre será ambíguo: tendo em vista os dois é que saberemos o alcance do entre e até a possibilidade de relação, mas, ao mesmo tempo, o alcance do sentido dos dois dependerá do alcance do sentido do entre. O que parece muito abstrato fica evidente quando retomamos as três modalidades de diálogo. No círculo da comunicação, o entre fica reduzido ao código, no âmbito do qual é entendido. No diálogo com o outro, onde se dá o Eu e Tu, esse “e” é o entre eu e tu. Entre é sempre entre dois, mas ao mesmo tempo que diferencia o eu do tu, ele também é o através de pelo qual se faz a ligação, a relação. Então esse entre é enigmático: relaciona identificando e diferenciando, ou seja, traz em si o poder de, ao mesmo tempo, identificar, diferenciar e reunir. De onde lhe vem esse poder? Se olhamos o segundo diálogo, o auto-diálogo, lá aparece de novo esse entre: o eu E o tu que cada um é e não-é. Se antes o entre tinha o poder de identificar, diferenciar e reunir externamente, agora também identifica, diferencia e reúne, mas internamente. Portanto, é o mesmo entre, sendo, contudo, diferente. De onde lhe vem essa força, esse vigor? Como tal, não podemos dizer que é ele com sua atuação que funda a identidade e diferença dos entes. De onde então lhe advém esse poder de atuar reunindo? Não há a menor dúvida que lhe vem do logos, que é a linguagem. Pois o verbo de onde se origina o logos significa não só dizer, enquanto manifesta o que é e não-é, mas também reunir. No logos e pelo logos os entes, enquanto diálogo, chegam ao ser e permanecem reunidos nele. Numa primeira dimensão o pacto, enquanto diálogo, nos deve lançar e reunir no logos.
Mas pelo fragmento 50 de Heráclito, esse reunir enquanto corresponder ao logos é ainda uma primeira instância, porque ela só se realiza quando nos lança na sabedoria do tudo é um. E é neste âmbito que se dá o pacto em Grande sertão: veredas, claro, não excluindo a dimensão anterior. Como isto se dá? Para entender a profundidade da configuração de Grande sertão: veredas como diálogo e pacto, enquanto algo indissolúvel, tentamos corresponder ao apelo de pensamento do pensador Heráclito, ouvindo o que nos diz no fragmento 123: “A nascividade excessiva apropria-se no nada excessivo” (Physis kryptestai philei). O diálogo enquanto dizer e reunir de identidade e diferença no um e no tudo, nos aparece agora como philei. Ao tudo corresponde a physis, ao um o kryptestai, mas certamente agora no plano do Ser E do Nada, onde se move Grande sertão: veredas. Como vimos, o philei diz, numa tradução simples, ama. A questão é saber o que entender por amar. O sentido originário de philei diz o apropriar-se do que é próprio. Se o diálogo funda a identidade do que somos e não somos, o amar, no dialogar, nos conduz ao apropriarmo-nos do que nos é próprio: o ser. Mas este é o sentido mais profundo do pacto. Rosa ao configurar a obra como diálogo já a pensa a partir do pacto, mas este, e a obra, só encontra o sentido mais profundo ao se realizar como amor. Em última instância é do amor que tudo irradia. Por isso, o diálogo, o pacto, a obra de arte têm seu sentido último no amar. Grande sertão: veredas é todo ele atravessado pela questão que a todas as outras reúne: o amor. E é neste horizonte que este ensaio se propõe também como diálogo, onde dialogar é deixar acontecer o apropriar-se do que é próprio enquanto deixar-se atravessar pelo amor.
O narrar e o sagrado
O encaminhamento das questões em Grande sertão: veredas não estão em ordem linear nem poderia, porque não há uma ordem linear. Todas elas se implicam mutuamente. O esforço deste ensaio – atendendo ao apelo de diálogo e escuta em que consiste a obra – está em expor para o leitor, até onde é possível, o encadeamento, o mais claro possível, dessas questões. Como partimos do pressuposto de que ele fala a partir do logos, enquanto apropriar-se sendo, pois é o motivo que o move, ele o faz desde a primeira palavra da obra, mas só pouco depois, ele se detém explicitamente no que o leva a narrar a narração, que terá a duração de três dias. Por que três dias? O número três é o número do sagrado por excelência. Isso significa que será uma narração do, no e pelo sagrado. Dirigindo-se ao ouvinte, eis a sua justificativa:
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito ... viver é negócio muito perigoso ... (p.11).
A vida vivida e a vida experienciada
A vida vivida é vida inerente ao código genético enquanto o quê é no como é. Porém, no ser humano é impossível separar o que propriamente é só genético e o que é histórico. Contudo, dentro da vida vivida genético-historicamente há também uma vida experienciada. Riobaldo não nos faz uma autobiografia, mas nos narra a narração do inaugurável que lhe aconteceu enquanto destino.
Riobaldo é uma personagem-questão. Como ficção é personagem de questões e não quer representar nada nem ninguém, muito menos fingir a realidade fazendo mera ficção. Enquanto figura que fala, age e pensa é a poiesis se fazendo questão. Nessa passagem central dentro da obra poética, vemos claramente que estamos diante da questão do duplo Riobaldo, que é a duplicidade de qualquer leitor. Um duplo não paralelo, mas poeticamente circular (de ser o que é e não é no concreto do aparecer). É o que fica claro no primeiro período acima. Há um primeiro Riobaldo que vive a vida no seu fazer e agir: “De primeiro, eu fazia e mexia ...”. É a vida vivida como sertanejo, nas suas andanças de jagunço pelo sertão. O como é só enquanto aparecer. Na vida sendo vivida ainda não se tinha aberto para os “prazos”, porque a vida imediata o tomava completamente. Mas já estavam inscritos nele. Porque Riobaldo é um homem destinado, como veremos. No dia a dia de que ninguém pode fugir, pois nos movemos no âmbito dos entes, embora sejamos entre-ser, era como um peixe vivo no “moquém”. O que é “moquém”? É uma grelha de varas que serve para assar ou secar o peixe ou a carne. Certamente, o moquém é aqui uma imagem-questão do viver o trivial onde a vida se vai dissecando sem chegar a viver as suas possibilidades de plenitude enquanto cultivo da abertura para o ser, do humano do homem enquanto travessia. Por isso, ele logo acrescenta: “ ... quem mói no asp’ro não fantaseia”. É um agir inerente ao código genético como o agir e viver de qualquer ser vivente, onde as ações se sucedem em pro-curas e empenhos de bens que não são o bem. É um viver no cotidiano e prosaico “asp’ro” para superar as necessidades, os “pequenos dessossegos”. A vida apenas vivida manifesta “o que é” “no como é”, sem ainda se dar travessia. Para esta ocorrer é necessário tomar posse dos “prazos”. O que são os “prazos”? Prazo é um tempo determinado; espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa. Esse sentido dicionarizado não consegue apreender aqui toda a sua força poética, pois trata-se de uma imagem-questão. Que questão essencial nos traz essa imagem? Todos nós nascemos com um “prazo”, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. O “entre” Nada e Tudo, no dizer de Riobaldo. Nesse entre-tempo de Tempo e ser, alguma coisa deve ser realizada. O quê? O destino como travessia. Para tal não basta viver é preciso algo mais, é necessário fazer da vida vivida uma vida experienciada. Nisso consiste o destino como travessia. O que é a experienciação? Ela ainda não se dava porque como diz ... pensar não pensava. Não basta viver, é necessário pensar. Mas o que é o pensar? Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de eros. Um viver enquanto pensar, como diz Riobaldo “... é negócio muito perigoso”. Eros e Thanatos são a possibilidade de experienciação de todas as nossas experienciações. Experienciar a morte como morte no viver, enquanto eros/amor, é a possibilidade de fazer a travessia e cumprir os prazos, o destino. No arrocho das aporias do cotidiano, como ele diz que vivia: “Vivi puxando difícil de difícel”, não sobra tempo para “fantasiar”. Nessas condições, ainda não eclodiu o poder que é próprio do ser humano: o poder fantasiar. O sentido atual de fantasiar é tanto imaginar como vestir uma fantasia. Porém, a palavra vem do grego phantasia. É um substantivo formado do verbo phaino, que significa manifestar, daí também a palavra fenômeno. Fantasiar é poder manifestar o quê? Fantasiar diz imaginar e vestir uma fantasia. Os dois sentidos não se excluem, integram-se. Revestir-se de uma fantasia como imaginar (isto é, apropriar-se do que é próprio) é realizar a travessia enquanto destino.
Como isto ocorre? Como há aparentemente dois Riobaldos, facetas de um terceiro, um, também há duas vidas: a vivida e a experienciada, unidas para levá-lo à plenitude no e pelo pacto. A vivida é inerente ao que em nós é genético e histórico. Já a experienciada é inerente ao genos como Moira. Porém, esta não consiste simplesmente em viver, mas em apropriar-se do que é próprio enquanto travessia. E o que nos é próprio? O que nos é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na vida experienciada não é o ente o sujeito. Não. Ela consiste em deixar-se ser tomado pela morte como sentido e vigor do viver, enquanto eros, então surge a unidade. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida, mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre eros e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde a medida de eros é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por um outro agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o manifestar numa realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do “entre”, enquanto o “mesmo’.
Aos dois Riobaldos corresponde uma mediação, de dupla medida. A dupla medida é inerente a nosso ser ambíguo, como ser-do-entre. Ultrapassado o horizonte dos “pequenos dessossegos, estou de range rêde”. O que a imagem-questão rede nos quer provocar a pensar? Na rede acontece a quietude do silêncio do pensar. Mas, no ranger, o pensar se faz um ir e vir, remetendo-nos, enquanto pensar, para um questionar, um diferenciar e um dialogar. O que é pensar?
Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa, portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em silêncio (Leão, 1999: 246).
Pensar é também aplicar um curativo e, neste sentido, cuidar com o cuidado amoroso. No “range rede”, pensando, ele cuida. Do quê? Do a-ser-cuidado, das questões que o têm. Riobaldo se entre-tece como pensamento no silêncio da quietude da rede do ranger, do viver a vida perigosa. E o que ele entretece ao se entretecer? Diz: “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Especular vem do verbo latino speculare, que diz pensar no sentido de re-fletir, enquanto se abrir para a abertura e deixar advir a luz. Por isso, o verbo deu origem à palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha como imagem, onde o espelho não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação enquanto lugar da luz pela qual algo se torna visível. É a clareira. Por outro lado, devemos dizer que os quatro se im-plicam. O que no especular ele re-flete pelo advento da luz na abertura da clareira? Refletir é alguém deixar emergir na abertura a luz da reflexão enquanto medida, onde a luz da reflexão é a própria medida, na medida em que se procura a medida do que é próprio e se dá na abertura. Medida aí não é jamais paradigma nem qualquer luz. “Iluminar é mais do que só clarear, mais do que só liberar. Num pensamento que medita o sentido e numa reunião acolhedora, iluminar é conduzir algo para o livre, conceder vigência” (Heidegger, 2002: 244). Então a luz da reflexão só aparentemente é um exercício de quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto quem reflete a partir da luz que se dá na abertura enquanto reflexão quanto o que se procura na reflexão: a luz enquanto a medida. No especular o que advém é o eidos/idéia, mas quem a doa é a luz enquanto a medida do especular, o que media o especulador na busca do que é em sua reflexão a partir de e na abertura. Especular é um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida advinda na abertura. Por isso, a medida é o não-ser do ser enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se especula a partir da abertura. Em Grande sertão: veredas a abertura será o lugar do pacto, a entre-cruzilhada das Veredas Mortas, que depois se tornam Veredas Altas. Especular é sempre se experienciar na ambigüidade do entre, o espelho. Especular é dialogar em seu sentido profundo.
O diabo como questão e o ser-da- arte
Riobaldo especula “idéia”. Que idéia ele especula? Isto é, qual será a idéia que será o Leitmotiv de seu especular? A idéia é uma questão. Então para ele especular idéia é perguntar questionando: “O diabo existe e não existe? (p.11). O que Riobaldo nos quer fazer pensar? Que questão aí se manifesta? Examinemos com cuidado. Nós temos aí propriamente três questões inter-relacionadas, partindo de uma que lhes dá princípio: O que é o diabo? 1ª. O diabo existe?; 2ª. O diabo não existe?; 3ª. O diabo existe e não existe? Dependendo da resposta à questão originária é que podemos encaminhar as respostas às três. A ambigüidade e complexidade da originária é que torna igualmente ambíguas as respostas às outras. A complexidade da questão matriz está no fato de que a ela estão correlacionadas outras questões essenciais, sendo a principal o pacto. Mas tentar responder o que é o pacto é questionar o que no pacto se pactua. E tentar saber o que no pacto se pactua é perguntar quem intervém no pacto, quem são os pactários, e saber a partir do que ou de quem os pactários podem pactuar. É isto que vai sendo distinguido e diferenciado ao longo de Grande sertão: veredas. Tudo isso constitui, no fundo, a sua matéria vertente, como diz numa passagem essencial. Rosa é um pensador, e dos mais profundos. Por isso, todas essas questões giram em torno de três, que constituem o a-se-pensar e o a-se-cuidar como fundo de todas as grandes obras dos grandes pensadores e poetas. A obra de Rosa é uma profunda poesia-pensante e se alça ao mais alto nível de pensamento-poético. Sua obra pensa e repensa as profundas referências de ente, entre-ser e ser, enquanto caminho das três vias-veredas. É no vigor e como vigor destas referências que se coloca a questão do dia-bo. O prefixo da palavra é também dia-, o mesmo de diá-logo, no qual e a partir do qual todo Grande sertão: veredas está configurado. Assim sendo, tudo o que dissemos até agora e que ainda diremos já estará, de alguma maneira, encaminhando uma tentativa de compreensão do enigma que é o dia-bo. Encaminhar esta compreensão de Grande sertão: veredas é já trazer à reflexão um esforço de compreensão do que é o ser-da-obra de arte pela compreensão do ser-da-arte.
O narrar inaugural
Logo depois que Riobaldo faz esta pergunta complexa em torno do diabo, vem uma afirmação, e não mais pergunta, compacta e estranha: “Dou o dito” (p.11). Que dar é esse e que dito se diz? Qual a referência entre dar e dizer? Tentar compreender o “Dou o dito” deve partir, necessariamente, de algo inequívoco: Quem nos fala e narra é o Riobaldo pactário. Numa compreensão imediata e simples, ele só dá o que lhe deram: “o dito”. Que dar e dito são estes? E o que isso tem a ver com o diabo e com o pacto?, pois na ordem da narrativa, tais palavras seguem imediatamente a essas questões.
Vejamos: “Dou” vem do verbo latino dare, que significa em primeiro lugar: dar, estando ligado ao sagrado. É um dar consagrado e consagrante. Essencialmente no dare está a doação, o presente, a oferenda da divindade aos homens e dos homens à divindade. Uma tal doação do sagrado aos homens é que diz, em latim originário, o verbo dare/dictare. Esta doação do sagrado apresenta duas facetas interligadas essencialmente: o doar como ação de sentido. O sentido é a linguagem. Mas não podemos simplesmente reduzir o dare/dictare à linguagem, pois esta está profunda e misteriosamente ligada ao dar enquanto ação. Esta ação, a poiesis, é o vigor do sagrado na voz dos deuses. E é nesse sentido que vai ser em Rosa entendido o contar e narrar, ou seja, como ele diz: “Dou o dito”. Este vem do verbo dictare que é um doar enquanto ação de sentido como linguagem aos seres humanos. O doar, como ação de sentido, implica não apenas um narrar inaugural (doação dos deuses aos augures, aos pactários). Ele concentra essencialmente o próprio manifestar-se (ação poética) da verdade (sentido) do ser no ente. O narrar é originariamente um deixar manifestar, um deixar trazer para fora. Quem deixa? Aquele que é possuído pela luz do sagrado enquanto pactário. O deixar vai nos enviar para a dimensão do agir como uma doação que compete a nós receber por ação do sagrado. Uma tal doação do sagrado, que compete a nós receber como sentido do que se manifesta e desvela enquanto linguagem, é: poiesis, ou seja, o manifestar que é a essência do agir, porque nela o sentido do ser se dá. Poiesis é o sentido do agir enquanto sentido do ser, o pleno agir enquanto repouso em si, inerente ao operar da obra. Poiesis, enquanto essência do agir com sentido (linguagem), diz respeito a toda e qualquer criar. A essência do ser humano provém da essência do agir na medida em que este é dizer inaugural, daí o sentido poético-ontológico da arte e não meramente estético, retórico ou ideológico. Porém, o vigor e o aberto da poiesis, como linguagem, se dão também e essencialmente como narrar inaugural. Este é a fala dos deuses que é recebida pelos augures/poetas. O narrar inaugural funda o nomear. O dizer, o narrar inaugural e o nomear se fundam na poiesis, enquanto ação de manifestação (poiesis) e sentido (linguagem). Tudo isto é comportado pelo dizer do sagrado.
A poética do sagrado
Então o que Riobaldo vai nos narrar de modo algum é qualquer narrar. Ele dá como algo consagrado o que lhe foi dado pelo próprio sagrado. Daí quando acontece o pacto: “As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabe é no brilho da noite. Aragem do sagrado” (p. 319). Isto prova que o sagrado percorre de princípio ao fim a obra. Então o seu fazer poético, a sua poética é uma poética do sagrado. A Poética do Sagrado, em que se funda Grande sertão: veredas, diz respeito originariamente às diferentes experienciações de pensamento: míticas, artísticas, religiosas, filosóficas, místicas, metafísicas. Estas são o estofo de Grande sertão: veredas. A Poética diz essencialmente respeito ao sagrado como vigor de todo agir (poiesis), em que a realidade se manifesta em mundo e verdade. Já o pensar é deixar-se ser tomado pelo vigor do sagrado, é deixar acontecer no ordinário o extraordinário, é deixar ver no visível o invisível, é deixar advir no saber o não-saber, é deixar realizar-se no ser o não-ser. O sagrado é o que há de mais originário e misterioso naquilo que, de uma maneira muito pobre, nomeamos, seja realidade, seja mundo, seja imanência, seja transcendência, seja diferença, seja identidade, seja Ser, seja Nada, seja Deus, seja, enfim, Divindade. A essência do sagrado é a poiesis, é o próprio vigor de todo criar, é a ação. Por isso, ela vige tanto no kaos como no kosmos primordiais, tanto no eclodir como no velar-se, tanto em eros como em thanatos. Criar poeticamente é manifestar a presentificação do sagrado como a memória de todas as memórias (criações), porque a memória como memória é o cuidado do uno. Cuidar do uno é salvaguardar no ente o ser. Como? Deixando-se possuir pelo pacto do sagrado. É o grande acontecer de Grande sertão: veredas.
A memória (uno) como amor
Se ao dizer: “Dou o dito” (p.11), na densa passagem, acima comentada, Rosa já nos assinala a proveniência da sua narrativa e de tudo o que nela acontecerá, em termos da obra como um todo, somente nas páginas 78 e 79 é que ele irá estabelecer o horizonte das questões em que ele entretecerá a poética de Grande sertão: veredas. Na página 78, a carta de Nhorinhá, como as madeleines de Proust, o mergulha nas seguintes questões: Amor, tempo e memória. Estas questões o levam a querer, em sua narrativa de auto-diálogo, “...decifrar as coisas que são importantes ... a matéria vertente ... entender do medo e da coragem ... dar corpo ao suceder” (p.79). Jogados no entre nada e tudo, temos que dar corpo ao suceder. Dar corpo é experienciar a referência sempre enigmática das questões de entre-ser. Mas a questão das questões, da qual todas as demais brotam, é: o grande sertão. Quando se pergunta a um leitor comum qual é o enredo de Grande sertão: veredas, certamente irá responder que é um romance que trata de um possível pacto que o jagunço Riobaldo fez com o diabo e da sua paixão por outro jagunço, Diadorim ou Reinaldo, que no final quando morre, se descobre, é mulher disfarçada de homem. No enredo já aparecem as duas grandes questões que perpassam a obra. Mas aquelas questões em que o pacto e o amor, aparentemente homossexual, estão inseridas, essas não são tão evidentes. No entanto, é à luz delas que podemos dimensionar e tentar compreender tanto o pacto como esse amor, porque é o pacto do amor: a memória do uno.
O destino
“Então era mesmo meu rumo – aceitei – o destinar” (p.57). Tudo o que acontece em Grande sertão: veredas tem como horizonte o destino. O destino é maior que o homem. Realizar o humano do homem consiste, para Rosa, em responder e corresponder à fala do destino. Este Leitmotiv a todo momento volta, pois a questão é maior que o homem. Ele é manifestado em diferentes situações e até com diferentes palavras: rumo, acaso, aviso. Mas devemos imediatamente nos desfazer da idéia vulgar de destino. Muito mais do que algo externo, ele vigora como uma fala que fala dentro de cada um. O destino é o dizer do sagrado o diá- do logos. Mas este diá- não tem o vigor em si, ele o recebe do logos enquanto philei. Por isso vai estar ligado ao diabo: “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ...” (p.11). Se, por um lado, o destino tem sua força de manifestação, como diabo, em Satanaz, na tensão de ser e não-ser, de outro, o mesmo destino vai estar ligado a Lúcifer, ou seja, ao conduzir à luz, enquanto a manifestação do sagrado, enquanto este é amor que reúne. Por isso, o momento mais importante do destino, em Grande sertão: veredas, se dará com a realização do pacto. Contudo, o destino é ambíguo e se concretiza no pathos, ou seja, na paixão arrebatadora, onde convive concretamente o profundo prazer e alegria e a profunda dor e medo. Por isso, assumir o destino é deixar o pathos acontecer enquanto coragem. Como não depende de nós sermos possuídos pelo pathos, mas é ele que nos tem arrebata., para realizar o destino é necessário a coragem. O destino, vivificado no pathos, que é mais interior a nós do que nós somos interiores a nós mesmos, concede também a coragem que leva a superar o medo da dor inerente ao pathos, enquanto o que se tem que ser e não se sabe. Então o destino se dá como ser, aparecer, não-ser: diabo, dor e medo. Vigorando no destino, somos impelidos ao pacto. É a adveniência e manifestação do sagrado como amor. Um tal pacto é sempre um pathein mathein: pois é o próprio destino como coragem, na qual se dá a prova pela experienciação do sofrimento que dá origem à sabedoria (Chantraine, 1974: 861). É neste horizonte do destino que se pode apreender o persistente Leitmotiv de Grande sertão: veredas: “Viver é muito perigoso”. Experienciar o destino é, na misteriosa excessividade poética da Physis, apropriar-se do que é próprio (philei), enquanto o velar-se (kryptestai) do nada excessivo.
A iniciação e o pacto
Todos somos destinados e pactários, em diferentes níveis. Cada um tem o seu quinhão, a parte da partilha dentro da excessividade poética do real. Possuídos pela questão do destino, não sabemos o que nos foi destinado. Vivemos como cegos buscando a luz que já temos. Mas os avisos nos são dados. Quem tem ouvidos para a escuta do silêncio e olhos para o ver do que se mostrando se retrai e vela? Riobaldo é a imagem-questão do destino, do assinalado. Por isso, na economia da narração, logo depois de nos conclamar à escuta do grande sertão (p.79), começa a nos iniciar na (sua) iniciação que culminará no pacto.
O rio e a travessia
O encontro com o Menino, Rosa escreve com maiúscula, pois se trata da questão da passagem da infância para a travessia da vida, no porto do Rio de Janeiro, e a travessia do rio S. Francisco destacam-se, sem dúvida, no todo da obra. Que é um rito iniciático é evidente. Numa ordem não cronológica, mas poético-ontológica, aí se dá o princípio e o início do “isto” que constitui como tal o que no narrar se narra. E é este “isto” que agora nos interessa, restringindo-nos aos aspectos que lhe são essenciais.
Hoje, as festas dos quinze anos perderam seu sentido sagrado. Neste caso, a sua presença se faz pelo aspecto religioso. Em torno dos catorze anos, Riobaldo recolhia dinheiro para cumprimento de uma promessa da mãe. E observa: “Outro meu tempo, então, o que é que não havia de ser?” (p. 80). Onde acontece esse seu outro tempo? Num porto de um rio afluente do S. Francisco. O nome? Rio-de-Janeiro. O nome Janeiro se origina do personagem-questão mitológico: Janus. É um deus de duas cabeças ligado ao tempo enquanto sucessão da vida: uma que olha para trás e outra para a frente, ou seja, indica o tempo de passagem entre passado e futuro, entre fim e começo. E de repente se dá o encontro com o Menino. E logo se dá o Pathos: empatia, simpatia e paixão. Por quê? Porque “... fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga” (p. 81). Embora jovens, ali acontecia algo originário: a conversinha “adulta e antiga”. O Menino, Diadorim, irrompe na vida de Riobaldo como a grande força iniciadora e transformadora, a própria força do destino. E é neste horizonte que deve ser entendida a personagem-questão Diadorim. Pois, como diz Riobaldo: “Eu estava indo a meu esmo” (p.81). É que o Menino o convida para passear de canoa e Riobaldo sabe que algo está para acontecer, pois diz: “Sentei lá dentro, de pinto em ovo” (p. 81), iniciando-se no futuro nascer no e com o pacto. E, em viagem, o Menino abre seus olhos para que mire e veja a manifestação da vida em seu esplendor. Chegados ao São Francisco, Diadorim ordena ao canoeiro: “Atravessa” (p.83), pois é ele que comanda toda a iniciação da travessia. Ele aparece como esta força que impele Riobaldo para a travessia. É a força do dia-dor(im), tendo em vista o medo do desconhecido em que se constitui o destino, daí dor. É a força do pathos que, destinalmente, vigora dentro de Riobaldo, naquilo que para ele implicará: dor. Ele se constituirá para Riobaldo numa contínua ascese de renúncia para fazer a travessia da vida enquanto ascensão para o acontecer da divindade do dia e da luz, como veremos. Diadorim não é essa outra luz, participa de outra divindade: “Via os olhos dele, produziam uma luz” (p.83). Os olhos de Diadorim “... pegavam um escurecimento duro” (p.84). Por quê? Impulsionado por ele, Riobaldo é jogado na travessia, mas sente medo. Não se trata de um medo meramente físico ou psicológico. É o medo da travessia da vida para a outra margem: “Longe, longe, com que prazo se ir até lá?” (p.83). E o Menino o ensina: “Carece ter coragem” (p.83). Isso não impede que Riobaldo, em meio à travessia, concretamente, não tenha medo, mas agüenta o olhar do Menino e este encontra motivo para aumentar a sua coragem. Os olhos dele “... foram ficando bons, retomando o brilho” (p.84). E têm o primeiro contato, quando o Menino pôs a sua mão na dele. O pathos acontece e Diadorim afirma: “Você também é animoso” (p.84). Diadorim é a personagem-questão da própria força vital originária. É a presentificação da força zoogônica sagrada. Daí nele/a acontecer uma luz diferente. Esta insistência de Rosa na luz diferente dos olhos de Diadorim não quer nos levar a pensar as energias pulsantes da vida nos elementos em que elas se dão? Elas estão bem presentes no rito de iniciação: é a natureza enquanto terra e água (aqui seria melhor usar o termo grego Physis, a nascividade, a excessividade poética). Quando Diadorim afirma a Riobaldo que também ele é “animoso”, o apreende e compreende como sendo também portador da força zoogônica sagrada. Nesse instante acontece em Riobaldo a iniciação, pois diz: “Amanheci minha aurora” (p.84). Em seguida há a prova da coragem de Diadorim. E ao final ele afirma: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente... “ (p.86). Dia-dor-im é um mediador, um enviado do pai que, no parecer não mostra o que é porque é o vigor do que parecendo não é. Diadorim é o encoberto, é “(a)letheia”. Só a Riobaldo revela seu nome, pois no bando é conhecido como Reinaldo: “Que é que é um nome? Nome não dá. Recebe. Da razão desse encoberto...” (p.121). Nele já está inscrita a “lethe”. Se olharmos Diadorim a partir do auto-diálogo, veremos que ele é a força zoogônica originária e sagrada que funda o ser e não ser de cada um de nós, e na obra e como obra de arte, em Riobaldo. Por isso, este pode dizer: “E eu não tinha medo mais” (p.86). Acabou a iniciação. Mas há ainda dois aspectos importantes a destacar. Riobaldo pede a nós leitores, ao ouvinte, que escute desarmado de preconceitos e que escute mais do que está dizendo. Isso não se pode entender num âmbito racional psicológico ou físico. Por quê? “O sério é isto ... -: eu não sentida nada. Só uma transformação, pesável ”. Ele foi tomado pelo poético-sagrado e não é o resultado de algo racional ou imaginário. Independe do sujeito em que a iniciação aconteceu. Foi o pathos sagrado. Este pede de nós, leitores, uma escuta do silêncio: “Muita coisa importante falta nome” (p.86).
Para terminar esta parte importantíssima, devo ainda notar que o rito se passa em dois lugares diferentes, embora inter-ligados: A travessia se dá na água e a prova se dá na terra. Por isso o sertão conjugará sempre água e terra. Sabemos que a água sempre esteve ligada à origem da vida e sabemos também da importância dela nos ritos de purificação e batismo. O rio e o lugar onde acontece a prova, um “... lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral” constituem o aberto da clareira onde melhor pode acontecer a luz da manifestação do sagrado. A subida a um lugar alto para receber a luz do sagrado é freqüente. Esta clareira prenuncia o segundo grande momento no destino de Riobaldo: o acontecer do pacto. Ele se dará num lugar que, dependendo do tempo, receberá também dois nomes: Veredas Mortas e Veredas Altas. “Um sitiante ... explicou que ... se chamava ... não era Veredas-Mortas, mas Veredas Altas” (p. 455). Por quê? A paisagem “geográfica” da obra é transfigurada pelo poder poético. O próprio Rosa o diz: “Nome não dá. Recebe” (p. 121). Mais que os nomes são as palavras: “O que é pra ser - são as palavras!” (p.39).
O sagrado: o bem e o mal
No fundo, ao narrar como vida experienciada a vida vivida, é que ele vai-se dando conta da presença determinante do destino. Por isso, logo depois do encontro, se pergunta: “Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino?” O questionar aqui é tão radical, que o que ele quer saber, a questão do destino “... nem o compadre meu Quelemém não me ensina” (p.86). Esta referência a este personagem-questão é significativo, porque ele ocupa um lugar especial, no que diz respeito ao aspecto religioso. Então o emprego da palavra “compadre” é importante porque indica o segundo pai depois do biológico, isto é, é o outro pai que surge no rito de iniciação e batismo. Ele é que, propriamente, é o responsável pela educação e segurança do filho no aspecto religioso. Certamente o nome Quelemém está ligado à corruptela popular do nome Clemente. Nele e por ele o sagrado exerce a sua clemência, pois a questão que acompanha as indagações de Riobaldo está ligada à culpa. Na obra, porém, esta questão está ligada à questão do destino. Ocorre que Riobaldo vai apreender a manifestação do destino ligada ao sagrado, daí ser para ele tal manifestação a grande questão, porque ela se faz presente na vida das pessoas como mal e bem, daí a ligação com o diabo. Mas acontece que não há uma ligação direta entre culpa e mal, conforme ele narra através de numerosos exemplos. Coincidem na opinião de que se deve caminhar para a iluminação como manifestação máxima do que se é na alegria e como amor. Para Riobaldo, a explicação da sucessão do mal, pela qual uns devem pagar por outros como processo de purificação e iluminação, tem um porém: “Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também” (p.14). Eu creio que o grande pensamento que percorre a obra – no que diz respeito à questão do bem e do mal - não pode ser vista de um ponto de vista moral, como é costume, mas do ponto de vista poético-ontológico, ou seja, é a questão ética. Por isso vai estar ligada ao destino e à travessia. A questão ética, muito mais do que uma questão de saber, é uma questão de sabedoria e esta se dá na tensão de ente, ser e não-ser, na medida em que o ente tem que ser apreendido a partir de uma escuta e abertura para a adveniência do sagrado, daí a iniciação e o pacto. Mas isto não pode ser decidido com a razão. Exige o deixar-se ser atravessado pelo sagrado. Há aí uma tensão entre o ser escolhido pelo destino e o se abrir para a escuta e atuação do destino.
A questão do humano
Agora, como e por que isso se dá, não dá para saber. Por isso acrescenta à afirmação acima transcrita sobre Quelemém: “Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (p.14). Esta posição é reforçada pela passagem nuclear, já comentada e até repetida, pois se presta a diferentes enfoques, da página 79: “Lhe falo do sertão ... Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”. Esta repetição é necessária, porque a questão é maior que o homem. É importante que o leitor compreenda que a busca de Rosa é entender algo muito simples e radical: não se trata de grande especulação teológica ao insistir tanto na questão do diabo e do pacto. Não se trata de achar nenhum fundamento último e transcendente. Muito menos se trata de querer imitar o mito de Fausto ou qualquer outro autor. Se influências há, e há pois o que rege a vida é uma memória imemorial fundada no sagrado, seja ctônico-telúrica, seja urânico-diurna, elas são absolutamente transfiguradas no questionar, diferenciar e dialogar com as questões de um modo geral em Grande sertão: veredas, mas, sobretudo, com aquela que é a diretriz que subjaz a todas as outras: o humano do homem. O que é o humano? Ninguém ainda não sabe, só umas raríssimas pessoas e só essas veredas, veredazinhas. Nas veredazinhas é que nos advém o que o humano é a partir de dentro e no ser-tao. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (p.52) O Nada e o Tudo não são questões. Questão é o humano do homem que está e é No-Nada, isto é, é e está entre o Nada E o Tudo (sinal de infinito no final). Por isso, o humano SE dá na Travessia, nas veredazinhas. E estas se dão na vigência do diabo, é o que responde Riobaldo, quando Diadorim lhe pergunta: “Você sabe do seu destino, Riobaldo? ... Se nanja, sei não. O demônio sabe...” (p.150). Por isso, o destino como destino não é questão, mas, sim, o sermos destinados e a sua manifestação na nossa travessia como realização – porque não sabemos o por quê de sermos escolhidos e nem o que ele ao nos escolher quer conosco como tal. Mas há uma verdade: “Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima” (p. 74), para as “Veredas Altas” (p.455). Daí a dúvida e reiteração da questão do diabo e do destino. O destino, todos temos de uma maneira ou de outra um destino, não se torna questão para todos. E isto é que é o estranho. Por isso, talvez, Rosa se refira às raríssimas pessoas. O mais interessante é que ele convida insistentemente, num apelo de diálogo fundamental, para que o ouvinte e nós leitores, como ouvintes, nos deixemos também atravessar pelas questões.
Da iniciação ao pacto
O cronológico
Não se trata em Grande sertão: veredas de uma auto-biografia, onde tudo é regido por lembranças cronológicas. A historiografia, sobretudo das formas literárias, parte de uma interpretação linear do tempo onde se agrupam em seqüência a sucessão de fatos ou formas. É uma visão superficial do tempo e da obra de arte que não se abre para a dinâmica do tempo originário se dando e retraindo como época. Para compreender o tempo poético-originário, temos que nos abrir para o vigorar da memória. É o que nos diz Rosa. “Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive ... hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe” (p.78). Que horas antigas são essas senão a memória poética? Em outra passagem, vai nos dizer: “Agora: tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso” (p.134).
Quando se lê a obra como um todo e se – tendo a obra toda digitada – começássemos a recortar as diferentes passagens pondo-as na ordem cronológica dos acontecimentos, certamente iríamos constatar algo muito simples: tomando o ritual da iniciação de Riobaldo e Diadorim no rio como ponto de partida e depois fôssemos acoplando os demais fatos, veríamos que a obra está dividida em três grandes momentos. O primeiro momento. Este começa com o rito de iniciação e vai até o momento em que Zé Bebelo perde o rumo não só da condução do bando como também o da luta contra Ricardão e Hermógenes. Nessa primeira parte, dá-se a história de Riobaldo, o que lhe aconteceu depois que a mãe morreu, como foi estudar, em seguida tornou-se professor de Zé Bebelo, a sua entrada e participação nos diferentes bandos de jagunços, a prisão e julgamento de Zé Bebelo. Este julgamento é um marco divisório entre a lei antiga e a lei nova. Ricardão e Hermógenes não aceitam o julgamento e ficam com a lei antiga, e, em conseqüência disso, matam Joca Ramiro. Segundo momento. E então se inicia uma segunda parte: a perseguição implacável aos assassinos. As chefias se sucedem e nenhuma consegue acabar com Hermógenes. Nem Zé Bebelo. Por quê? Devemos entender que para vencer Hermógenes, como personagem-questão, é necessário o pacto, e não apenas fica no nível dos homens. E então Rosa, numa sutileza extraordinária, com a mudança de apenas uma letra num verbo, nos coloca diante do sentido profundo do pacto. Diz: “Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado” (p.16). O leitor que preste atenção aos dois verbos, sabe imediatamente que significam coisas completamente diferentes, embora soem iguais. No contexto da obra, já se localiza aí a diferença radical do agir desses chefes – “Esses homens” – e de Riobaldo. E a diferença está não só no significado dos verbos, mas também no sentido de outras duas palavras: “Querer” e “principiar”. O consertar, enquanto transformar e mudar, baseia-se no querer e poder deles. Já o concertar não depende da vontade de quem concerta. Para concertar é necessário abrir mão do querer e ser tomado pelas musas. Só assim há o concertar concertado. Mas para isso deve haver o pacto, como veremos. Então a questão do consertar ou concertar depende de por onde “principiar”, isto é, pelo poder humano (consertar) ou pelo poder sagrado (concertar). Devemos entender que nesta sutil mudança está a essência do pacto. Como entre-ser, o ser humano já vigora no poder do pensamento poético. Porém, não devemos confundir pensar com raciocinar nem poesia com retórica. Todos os chefes que precedem Riobaldo são dominados pelo poder do querer do homem e têm como única tarefa vencer Hermógenes. Não conseguem. E o máximo desta racionalidade se consubstancia em Zé Bebelo, pois dele diz Riobaldo: “Ah, mesmo só inteligência, só, era que era aquele homem [Zé Bebelo]” (p.327) Zé Bebelo, vencido e julgado por Joca Ramiro, se exilou. Ao saber da traição de Hermógenes, volta e toma a chefia dos jagunços e a tarefa de acabar com Hermógenes. Não consegue, porque ele se guiava apenas pela razão: Ele é o personagem-questão onde a razão e seu poder se fazem presentes de uma maneira plena. Raciocina, mas não pensa. E o que lhe acontece? Nunca consegue travar a luta com Hermógenes, é uma questão no plano do sagrado e da arte, e não simplesmente uma personagem literária enquanto símbolo do mal. A arte não é feita de símbolos, mas de vida e morte movida pelo pathos de eros. Zé Bebelo acaba perdendo o rumo e vai parar num lugar chamado Coruja. O terceiro momento. Ali vai acontecer o pacto. Com este se inicia a terceira e última parte da obra e nela há uma característica singular. Todo o narrar se dá numa seqüência praticamente linear. Isto é mais que claro. Do ponto de vista narrativo, o que acontece antes do pacto fica à mercê da vontade humana e dá-se necessariamente às apalpadelas, numa procura confusa e difícil, porque são ações só guiadas pelo poder da razão. Depois do pacto, não. Porque desde esse momento, Riobaldo não é o que com sua vontade e poder toma as iniciativas e decisões. Ele sabe que um poder maior o guia. Por isso, ele nunca planeja as viagens. Elas vão acontecendo num acontecer destinado. E a prova de que não se serve mais da vontade humana e da razão está em algo muito simples e sintomático. Enquanto os outros chefes sempre tinham outros sub-chefes experimentados e valentes, quem são eles agora para Riobaldo? Quem fica à sua direita e à sua esquerda? Um menino e um cego. O menino é o in-fante, mas por isso mesmo o aberto para o silêncio da linguagem como possibilidade de criação inaugural. E o cego? O que não vê, porque nele acontece um outro ver, além da luz da aparência e da luz da razão. Do auxílio deste ver, Riobaldo, o pactário, não precisa. Por outro lado, o cego, desde a figura-questão Édipo, como figura-questão do homem, torna-se a encarnação da sabedoria. De Borromeu diz Riobaldo: “Ele gostava de conversar, mas também preparava no silêncio” (p.339). É claro que não precisa ser cego para ter esta sabedoria, ela pode advir, como adveio para Riobaldo, no pacto. É o ver poético-sagrado. Há ainda um outro ver, enigmático e também sagrado, o de Dia-Dor-im: o ver ligado às musas telúrico-ctônicas, à mãe-terra. Depois do pacto, Riobaldo se torna o Chefe. Se o leitor acompanhar com cuidado e atenção o que vai acontecendo, verá que o itinerário de Riobaldo será da escuridão para a luz, mas sem dicotomia nem separação. Sem anular as diferenças, Riobaldo é síntese, como entre-ser, do urânico e do telúrico, de Zé Bebelo e de Diadorim. Por isso, neste per-curso e senda da verdade, Diadorim “desiste” da vingança do Pai e se entrega e integra a Riobaldo, que assume a causa: ”Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir” (p.404). Mas por quê? Diadorim o diz: “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia ...” (p.403). O saber que integra e diferencia advém a Riobaldo no e pelo pacto. Os primeiros deslocamentos ainda se dão dentro da noite, até que de repente passa só a se movimentar de dia. Como Riobaldo não é mais guiado pela razão, suas ações são fora do usual enquanto ordinário, porque, na verdade, agora está se guiando e movendo no e pelo extra-ordinário. A travessia fácil do liso do Sussuarão é uma prova. São as conseqüências do pacto.
O pacto
. Aqui o ouvinte-leitor é chamado para uma abertura essencial. Se, educado e formatado na idéia moderna profana e secular das manifestações do sagrado como algo supersticioso, nada entenderá do que aqui nos é solicitado a pensarmos. Três preconceitos iluministas e metafísicos devem ser questionados: a) Que o sagrado se reduz a um religioso ritualizado e vazio, a crenças prévias ao acontecer do sagrado; b) Que os mitos são formas mais antigas de superstições religiosas; c) Que a arte nada tem a ver com o sagrado e se reduz ao belo estético, ao estudo das formas e às classificações das obras em gêneros, a meios ideológicos de engajamento, a representações de identidades culturais. Pacto, quanto ao significado semântico, qualquer dicionário nos dirá que é um contrato entre duas ou mais pessoas ou até entre nações. O pacto de que trata Grande sertão: veredas nada tem a ver com tudo isso. Nele predomina o sagrado, como está sendo entendido neste ensaio, pois a obra inteira se move no mítico-poético:
O verbo correspondente ao substantivo mito é mytheomai, que significa abrir, desocultar pela palavra, falar ou dizer que pronuncia e revela o que advém no som e no sentido. E o verbo relativo ao nome mistério é myein ou myeisthai, com a significação de fechar. A raiz my- pronuncia-se com y longo, figurando no latim mutus e no sânscrito mukas (=mudo, silente). O mito do desvelamento do ser é suspenso do mistério do velamento do não-ser. Poetar ou pensar originariamente quer dizer suscitar orficamente a excessividade do silêncio (Souza, 2002: 30)
Os pactários
De um lado temos Riobaldo. E do outro? Com quem ele dialoga? Toda a complexidade que assume o pacto na obra vem da dificuldade de responder a esta pergunta. Em princípio e segundo a tradição, o pacto se faz com o diabo. Mas como nos afirma reiteradamente o narrador, ele não compareceu com sua figura e nada foi assinado. Isso suscita dúvidas não só quanto à existência dele mas também quanto à própria possibilidade da existência do pacto. Porém, algo aconteceu. Em vista disso é que Riobaldo coloca como o outro pactário três possibilidades: 1ª. O diabo, por quem ele chama nas Veredas-Mortas; 2ª. “Deus ou o demo” (p.318); 3ª. “Deus e o Demo!” (p.318). Porém, a segunda possibilidade, apresenta uma variante com um pequeno detalhe, depois de apresentada esta terceira. Diz: “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” (p.319). Note o leitor que na primeira versão da segunda possibilidade a palavra “demo” está com minúscula e, no contexto, se liga à questão do pacto enquanto tradição, pois diz logo depois da alternância: “ – sofri um velho pensar” (p.318). Na segunda versão, a palavra “Demo” vem com maiúscula e, então, a questão não é algo que recebeu da tradição, mas é a questão em que Rosa se debate porque o possui, isto é, é dela que trata em Grande sertão: veredas. Aqui, ela se torna originária e inaugural. De nós, leitores, pede também o inaugurável.
O que o leva ao pacto
Riobaldo é um destinado e é do fundo deste destino que vai amadurecendo a hora e a vez do pacto. O destino é no como é. Como se deu? Já vimos acima que, sob o comando de Zé Bebelo, fugindo do cerco dos hermógenes, foram, perdidos nos caminhos do sertão, parar na Coruja. Era o lugar e hora do pacto. Lá ficam parados muito tempo, porque Zé Bebelo está desencaminhado e perdido, e não sabe o que fazer. Eles adoecem. E então o jagunço Sidurino diz que para não piorarem e enfraquecerem era preciso “... um vero tiroteio... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...” (p.307). Primeiro, Riobaldo aprova, mas depois sente uma dúvida, como que picado por uma “cobra bibra”, isto é, uma víbora, cobra venenosa que designa também pessoa má, de má índole. Cai em si e percebe o paradoxo em que vive o homem, pois ali estavam os jagunços, amigos, se ajudando uns aos outros e, de repente, o poder fazer o mal, gratuitamente, a pessoas inocentes. Daí: “O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo do homem humano” (p.307). Esta consciência do mal o faz pensar: “- parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo” (p.307); “... confiança eu mais não depositava, em ninguém” (p.308). Ele imagina que poderia ter outra sina e não ser atirador, sendo um habitante pacífico, sujeito à instância dessa jagunçagem ... cometer ruindades. E o paradoxo: como podiam agora ser seus amigos? É a questão desconcertante do mal, ligado ao humano do homem, uma questão que envolve a todos nós em nosso agir e decidir. Por isso, diz: “Não gosto de esquecer de coisa nenhuma” (p.308). E este é o primeiro motivo do querer o pacto. E não é pouco. Mas, como criador, não toma uma resolução ideológica de ser formatador de mentes e corações. Diz: “... pensei, eu sem querer disse alto: - “ ... Só o demo...” . Diadorim escuta e observa: “O inimigo é o Hermógenes” (p.308). E depois de algumas considerações sobre Hermógenes, conclui: “Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim” (p.310). É o novo julgamento, mas baseado na lei que se funda no vigor do pacto. O pacto inaugura a nova lei enquanto busca da justiça e o apelo desta leva ao pacto. Mas outro aspecto, de repente, em meio a esse processo, surge dentro de Riobaldo, que é a contra-face e o motivo mais profundo. A justiça só é justiça se fundada no amor. Riobaldo começa a falar de Otacília. Ela aparece então na narrativa como a “a esquecida formosura” (p.310). E há nessa passagem um sutil e astucioso pensamento em favor do pacto, da decisão pelo pacto, mas agora não tendo como motivação Diadorim e Hermógenes, mas o amor. Como veremos, no mais profundo do profundo de Riobaldo, o que o leva ao pacto é o amor. Mas que amor? Aqui, argumenta com motivos ético-sociais. Se continuasse “mero” jagunço, o pai de Otacília não consentiria no casamento dela com um jagunço sem honradez. Nesta linha de raciocínio, o fazer o pacto implica também um poder alcançar o amor de Otacília, isto é, “a esquecida formosura” (p.310).
Estes dois motivos não são separados: Para enfrentar a questão do mal se dispõe para o pacto, mas na medida em que este é impulsionado pelo Bem (justiça e ética) e pelo Belo (amor) enquanto obra de arte. O pacto é arte porque é obra de amor.
A clareira, a arte e a verdade
O que é a clareira? É o entre de ser e não-ser, é uma doação da floresta, é o livre aberto no qual entre-experienciamos cotidianamente nosso projeto de ser o não-ser. É nosso permanente entre-limiar de abertura para o ser e de afirmação de nossa identidade e diferença. É o entre-lugar de nosso ser conosco mesmo e com os outros, enquanto auto-diálogo e hétero-diálogo com o outro. Por isso, ela será o lugar do pacto. Em Grande sertão: veredas não aparece explicitamente a palavra clareira. Como veremos, Riobaldo a diz de outra maneira. Mas a abertura da clareira como o livre aberto de manifestação do humano subsiste e persiste no pensamento do poeta-pensador Rosa. Ela aparece, com as características que lhe são inerentes, no conto de Sagarana “São Marcos”. A importância da clareira está não só no fato de que é o lugar de manifestação do sagrado, mas também no fato de que tal epifania é o real se dando em sua verdade. Não há verdade sem clareira. A essência do ser-da-obra de arte, do ser-da-arte consiste em manifestar a verdade do sagrado, isto é, da realidade. O pacto que nela acontece é o pacto da verdade da realidade. Nela e por ela a realidade se torna mundo. A verdade é o mundo se manifestando enquanto arte. É que a verdade, realizando o humano do homem, o realiza como mundo. O homem não se reduz a uma “unidade” biológica. Até só podemos falar em “unidade” biológica porque ela já se dá dentro do humano do homem enquanto mundo. Por isso, Rosa pode afirmar, depois de ajudar uma mulher a dar à luz: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” (p.353).
A chegada à clareira
Depois da fuga ao cerco dos hermógenes na fazenda dos Tucanos, perdidos e sem rumo, no sertão, chegam a um lugar de que não sabiam o nome. Quem lho diz é um homem que tira mel de um cortiço. O lugar se chama: Coruja. E é “... um retiro taperado” (p.303). Numa passagem significativa diz Riobaldo: ”O que é para ser são as palavras” (p. 39). Estes duas palavras: Coruja e retiro são plenas de sentidos. E por que é alguém que tira mel que enuncia e anuncia os lugares? Preste o leitor atenção.
Coruja todos sabem que é a ave que presentifica a filosofia. E o que esse nome recebe é muito. Não se pode considerar a filosofia a atividade lógico-racional a que foi reduzida absurdamente. No Fedro, diz Platão que o nome de sábio só se pode dar aos deuses, a nós homens só nos cabe o de amigos da sabedoria, ou seja, filo-sofia. Corujas é o lugar da filosofia porque nele acontece e acontecerá o pacto, a sabedoria, que advém quando o ser humano é apossado pelo taumadzein: o ser tomado pelo pathos, pelo entusiasmo, pelo logos de todo diá-logo. Nisso consiste o pacto de pensadores e poetas. Já retiro diz um lugar ermo, próprio para a meditação, para a preparação da manifestação do sagrado. Todas as grandes figuras religiosas, de poesia e de pensamento em algum momento se exilam para um retiro. É nesse momento que se dá o auto-diálogo enquanto uma auto-reflexão, um mergulho profundo no ser do que é e no nada do que não-é. Como mostrei no início deste ensaio, toda a obra nos fala desse auto-diálogo. Toda ela converge para o lugar e momento do pacto.
Chegam e mais uma vez o destino se vai manifestar. Diz Riobaldo: “E ali, redizendo o que foi o meu primeiro pressentimento, eu ponho: que era por minha sina o lugar demarcado...” (p.303). O lugar do pacto, como retiro, não pode ser nada exuberante, luxuoso, feérico. Muito pelo contrário, cabe-lhe a simplicidade, a austeridade e uma certa tristeza contida: “E aquele situado lugar não desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma agüinha chorada, demais” (p.303). Na arte não há símbolos: tudo é uma disputa de terra e mundo. Por isso, os buritis e os bois co-participam integralmente do que no pacto acontece. Diz: “Até os buritis, mesmo, estavam presos. O que é que buriti diz? É: - Eu sei E não sei...Que é que boi diz: - Me ensina o que eu sabia... (p.303). É do e no ordinário, numa integração de tudo, que irrompe o extra-ordinário, integrando o vegetal, o animal e o homem, ou seja, a terra/physis enquanto zoogônico. Aristóteles nos relata o acontecer do pacto de Heráclito. Pensador famoso, tornou-se objeto de curiosidade. E uns turistas resolvem visitá-lo em seu retiro. Envolvidos pela expectativa deslumbrante de ver um pensador pensando o extra-oridinário, ao serem recebidos no lugar discreto e franciscanamente despojado, admirados, se retraem, pois Heráclito, como qualquer mortal, estando com frio, se aquecia na lareira. Do fundo de sua sabedoria os compreende. E lhes acena com o apelo do extraordinário no ordinário: - Entrem! Aqui também mora o extraordinário.
À distância de meia-légua havia uma outra vereda. “Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão...” (p.303). Juntas formavam as Veredas-Mortas. E se abre a clareira: “No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se vida uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no temor de certos pontos” (p.304). Já presentes no rito da iniciação, para Rosa, a clareira reúne os três elementos essenciais nos quais se dá e acontece o humano do homem: água, terra e ar. O fogo é o que falta e que a estes reunirá, como veremos, dando-se, então, o pacto. Mas será o fogo da presentificação do extra-ordinário no ordinário e não algo feérico e deslumbrante. Até será deslumbrante, mas como o entre do auto-diálogo. Eis a sutileza com que ele nos diz da presença aí do fogo: “Eu creio no temor de certos pontos. Tem, onde o senhor encosta a palma-da-mão em terra, e sua mão treme pra trás ou é a terra que treme se abaixando. A gente joga um punhado dela nas costas – e ela esquenta... ele cheira a outroras... Uma encruzilhada... Aí mire e veja: as Veredas Mortas... Ali eu tive limite certo” (p.304). Antes de vermos a questão que a encruzilhada nos traz, algo importante no texto transcrito. A escrita permite a Rosa encorpar as palavras de sentidos que de outra maneira seria mais difícil de manifestar. O leitor que preste atenção nas transcrições acima verá que aparecem duas vezes o nome do lugar: Veredas-Mortas e Veredas Mortas. O primeiro denomina o lugar geográfico, já o segundo traz muitos possíveis sentidos, pois é o próprio do poético. O amigo leitor pense, dialogue.
A clareira e a encruzilhada
O caminho auto-poético da travessia de vida e morte não é um caminho que de fora se abre e como perspectiva podemos expor, falando sobre. Riobaldo nos diz: O cerrado se abre numa clareira e no meio, no entre, com todo o seu mistério, pois por sermos Entre-ser sabemos e não sabemos o que somos, procuramos, entre-sendo, aprofundarmo-nos no entre, no meio. É a en-cruzilhada. É o estarmos no en-in-entre da cruz. Dele difluem e para ele confluem os caminhos, as veredas da vida E da morte. É o caminho auto-poético a travessia. Ele não é um caminho que de fora se abre e como perspectiva podemos expor, falando sobre:“O sertão não tem janelas nem portas” (p.374). Por isso diz Riobaldo: “Uma encruzilhada... Aí mire e veja”. Aí, no entre, em, dentro, não se pode mirar apenas como quem contempla de fora, é necessário mais, é preciso ver. Ver o que se ofertando no aberto e iluminado da clareira ao mesmo tempo se retrai. Sobre ele não se pode falar, só dia-logar, falar com, enquanto co-responder, ou seja, jogarmo-nos e abrirmo-nos para o diá/entre do logos. Dialogar é escutar e nos abrirmos para a en-cruzilhada. Fora da encruzilhada não há arte, porque não há as veredas do diálogo.
Pacto: diálogo e obra de arte
Encruzilhada, como lugar do pacto, não é um mero cruzamento transversal de dois caminhos, de duas veredas. As duas veredas indicam aí os caminhos do dia e da noite e constituem uma con-cruz onde vai acontecer o en/entre, o pacto. A con-cruz da encruzilhada se deve ver a partir do en- no qual se reúnem as dimensões horizontais e verticais. A encruzilhada dos caminhos do dia e da noite nos remete à disputa da divergência convergente e da convergência divergente dessas duas manifestações cosmogônicas do sagrado. O pacto significa exatamente isso. É uma palavra formada do particípio do verbo pangere. Nele convergem quatro sentidos complementares e fundamentais. 1º. Pelo primeiro algo se fixa, enterra, planta, ou seja, algo se estabelece sólida e profundamente; 2º. Este sentido passou não só da relação do homem com a terra como um pacto de vida, mas aos homens entre si como pacto de vida, paz e con-córdia. Porém, no caso presente, diz muito mais um pacto consigo mesmo como auto-diálogo do que é e não é. É o pacto do auto-diálogo, porque se trata de um pacto onde se pactua a doação do ser e do não ser pelo sagrado. Por isso, o que se negocia é a alma, ou seja, o que nos é próprio. Então o pacto é o pacto pelo que é próprio, pelo apropriar-se. E segundo Heráclito no fragmento 123, isso é amar. Num tal pacto, vender é o mesmo que comprar de quem pode vender a possibilidade de apropriar-se. Daí a resposta de compadre meu Quelemém à pergunta: “ - O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” : “ – Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais ...” (p.460). 3º. O misterioso no real é que o mistério para ele mesmo se apropriar tem que se fazer mito, eclodir no aberto da palavra. Então não há pacto se não houver o dito inaugural do sagrado: é o narrar. Daí o produzir, o compor a obra de arte, seja escrevendo, seja falando. Pelo auto-diálogo, ao se narrar narrando, surge a obra de arte como diálogo. E que só pode ser obra de arte se nela vigorar o logos do diá-, a palavra inaugural, a voz do silêncio que nos provoca e convoca à escuta. Sabemos pelo final de Grande sertão: veredas que a narração não foi narrada só uma vez, mas duas, pois Riobaldo diz: “Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência – calma de que minha dor passasse...” (p. 460). Portanto, antes de narrar ao ouvinte da cidade que o visita na fazenda, ele já narrara a mesma narração a compadre meu Quelemém. Qual a diferença? Quem sabe? Poderíamos falar em dois diálogos com o outro? Creio que não. Compadre meu Quelemém é Riobaldo mesmo dialogando consigo. A palavra com-padre diz o ser responsável e pai ao mesmo tempo. Ele é o pai que surge com o rito da iniciação e acompanha sua travessia, torna-se o espelho e a fala da paciência, isto é, daquele que o escutando no vigorar do silêncio o deixa escutar-se a partir da fala do silêncio. Quelemém, como padrinho, é o co-responsável pela co-respondência ao apelo do logos, no diá-logo do auto-diálogo, ou seja, pelo narrar enquanto travessia, porque ser poeta é ser pactário, para fazer da vida uma obra de arte. Eles não são dois, daí a presença sempre do possessivo: meu. Porém, quando na fazenda recebe o ouvinte e faz uma nova narração em três dias, aí certamente temos um diálogo com o outro. O outro que é o visitante, na realidade, somos nós leitores. Se o compadre responde e faz reflexões, ao longo da obra, em nenhum momento o ouvinte-leitor fala. É, pois, um diálogo com o outro que, no fundo, é uma provocação e convocação para o auto-diálogo. É o que o tempo todo estou tentando, não falando sobre, mas falando com. Com quem? Comigo mesmo. Realmente, só podemos falar a partir da escuta do que somos e não somos. Mas para isso é necessário, na travessia, fazer as três vias de Parmênides, senão nos tornamos, como mortais, “... os bicéfalos (dikranoi), justamente porque eles não se apercebem da necessidade conjunta dos três cursos e percursos do mesmo decurso do caminho que se viaja de si para si mesmo rumo ao que é (éon), ao que não é (mè éon) e ao que aparece como sendo muito mais do que parece (éonta-dokounta) (Souza, 2001: 27). A travessia é de nós para nós mesmos. É o que denomino auto-diálogo. 4º. Dos três sentidos surge da raiz do diálogo um quarto: o con-certar. No início da narração, Riobaldo faz uma diferença entre ele e os demais chefes que o precederam, em relação ao mundo, assinalando-a com a oposição entre dois verbos: consertar e concertar. Já comentamos. Mas aqui, na hora do pacto, é o momento adequado para ver como o concertar decorre do pacto, isto é, do próprio narrar e construir a obra de arte. Por detrás do verbo concertar há inicialmente uma dis-puta no sentido de um diálogo. E segundo o Aulete (Aulete, 1964: 884): um pactuar, no sentido de ajustar, levando à harmonia, ao soar harmonicamente, por exemplo vivo, num concerto musical. O pacto, no fundo, é um conduzir à harmonia dos contrários, seja interiormente, seja exteriormente. Preservar as diferenças nas identidades eis o concertar o mundo, eis o fazer arte. “A existência é uma operação poética, uma obra de arte, um projeto instituidor de sentido ... Ser poeta verdadeiramente equivale a transformar-se no artista de sua própria vida ... Existir quer dizer exsurgir do não-ser para o ser” (Souza, 2001: 24).
A hora do pacto
Relembrando o rito de iniciação, dá-se a disputa de medo e coragem. Mas algo, como fruto da decisão fundada na cor-agem, deve acompanhar algo fundamental, porque no fundo o pacto é o pacto de amor enquanto pacto do apropriar-se do próprio, o que é amar. Deve haver alegria. “Somente com alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações” (p.316). Decide-se pelo pacto. Vai para as Veredas-Mortas. “Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos” (p. 317). Na concruz a encruzilhada, o lugar do encontro das duas divindades nele. Por isso, quando indaga de onde poderia vir o dia-bo, o pactante, diz: “E de um lugar – tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno” (p.317). No pacto não há somente um vir, muito mais, há um reformar. Mas este causa medo. Porém, buscando coragem diz: “... eu não me tinha licença de não me ser...” (p.318). E depurando-se nesse momento decisivo de tudo que fosse circunstancial, por um processo de esquecimento, só o que, no fundo e unicamente o move, se torna firme e presente: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!” (p. 318). Temos aqui no momento crucial o início e o fim da obra, como já mostramos no começo do ensaio. E como travessia o “ficar sendo!”. Rosa reitera e mostra que o pacto é, no fundo, o auto-diálogo no e pelo qual se é e não é no sendo. Contudo, este é e não é exige o pacto justamente para o não-ser eclodir no ser, ou seja, para a divindade telúrica da noite do caos e a divindade urânica do dia acontecer como pacto, no qual há a identidade das diferenças e a diferença das identidades. Há uma convergência divergente sem dicotomias de espécie alguma. No pacto da en-cruzilhada há a con-cruz dos três caminhos assinalados por Parmênides. Tais caminhos se dão na travessia, pois: “Aonde se vai sempre se volta ao donde se parte (frag. 5) (Souza, 2001: 26). “Quem se inicia no conhecimento hierofanicamente revelado tem de assumir a vigília ontológica que o capacite a considerar, não apenas um, mas, sim, os três caminhos (hódoi) da iniciação gnosio[onto]lógica: 1º. A senda do ser; 2º. A vereda do nada; 3º. A via da aparência” (Souza, 2001: 26).
Na concruz da encruzilhada, à meia-noite, quando a noite declina e o dia recomeça, espera. Revestido da “ mais-força, de maior-coragem ... do profundo mesmo da gente”, espera. E nada, visto pelo lado externo, sucedia. Mas, tomado pelo entre da encruzilhada, deixa-se tomar pelo vigor do pacto: “Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu” (p. 319). Então invoca e provoca a vinda da divindade urânica do dia, pois não chama o diabo, mas: “Lúcifer! Lúcifer!...” (p.319). Quem é Lúcifer?
A tripla chamada
O pacto se dá em três momentos progressivos, pois há uma tripla chamada. Na primeira ele convoca apenas Lúcifer. Embora Riobaldo diga: “Não. Nada” (p. 319). Assim mesmo destacados, em termos absolutos, acrescenta logo algo: “O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos ...” (p.319). A Noite, divindade do caos primordial, do Nada, fala, tem o vozeio de um ser-só. Há nela uma unidade e que “principia feito grilos ... E termina num queixume ... de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono” (p. 319). Como quando dormimos, dentro de nós, há a unidade da voz da noite adormecida, mas real, numa vida pulsante e diferente. A Noite como divindade e linguagem fala, embora subjaza no véu do sono. Então ele torna a convocar: “- Lúcifer! Satanaz! ...” (p.319). O que agora mudou é que são chamadas as duas divindades: Lúcifer e Satanaz. E desse duplo chamado resulta o quê? “Só outro silêncio” (p. 319). Não é só mais o silêncio da noite no véu do sono. Agora é outro silêncio que nos entre-possui, como o próprio Riobaldo diz: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (p.319). O pacto está se realizando, porque ele está sendo tomado pela questão, pelo silêncio que é mais do que qualquer fala e, mais, é a possibilidade não só de qualquer fala, mas também de qualquer escuta. No entre-ser de ente e ser, transbordamos para o ser, isto é, nos movemos no ser de tudo que é, no não-ser. Se Lúcifer é, como o nome diz, o portador da luz, Satanaz assinala na mitologia do Novo Testamento, o seu oposto. Mas no pacto trata-se mesmo da disputa de opostos, senão não há pacto, mas dicotomia e anulação. A disputa de opostos é o diálogo. Mas agora é o diálogo como auto-diálogo onde quem fala é o silêncio ou segundo o fragmento 50 de Heráclito: o logos. E não mais um eu ou um tu, não mais o que sou e o que não sou. [Frag. 50: Auscultando não a mim, mas ao logos, é sábio co-responder: tudo um]. E vem a terceira invocação e convocação: “ – Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!” (p.319). O que muda em relação à segunda? Se na primeira invocação temos o que é, na segunda, o que não é, mas parece ser, na terceira, tanto a primeira como a segunda se dão como provindo do que há de mais profundo em cada um. No sentido comum Infernos indica lugar sub-terrâneo em que habitam as almas dos mortos. Não é exatamente nesse sentido que Rosa o está empregando aqui. Ele indica mais. Primeiro, notemos que Infernos não se refere apenas a Satanaz, a vírgula que os separa indica que tanto Lúcifer como Satanaz são dos seus Infernos; segundo, não indica aí lugar dos mortos, porque ele está vivo e, mais, precede a palavra o pronome possessivo “meus”. Não indica aí um lugar no qual ele esteja localizado; terceiro, se escutarmos a palavra no que ela diz, ouviremos o quê? In-ferno se forma do pré-verbal in, em, entre, interior, e do verbo fero, de onde se forma –fernus como local do entre, do interior, do que há de mais profundo em nós, do que está para além de Lúcifer E de Satanaz, embora um E outro lhe co-pertençam. É o interior do interior para o qual não há palavra. Por isso, o pacto se dá na en-cruzilhada, no entre, no interior da convergência e divergência das duas veredas, a de Lúcifer E a de Satanaz. Nela comparecem: céu e terra, imortais e mortais. Sertão. Como entre-ser somos no ser-do-entre, esse E/EM/DIÁ abismal, que Heidegger na conferência “Zeit UND Sein” (Tempo E ser) chama de “neutrale tantum” (simplesmente neutro) (Heidegger, 2000: 47). Notemos ainda que o nome Lúcifer também se compõe com o verbo fero, ou seja, aquela divindade portadora da luz. O pacto nos conduz, como auto-diálogo, ao que há de mais profundo em nós, ao entre, ao simplesmente neutro, o que simplesmente não é um nem é outro: não é Lúcifer nem é Satanaz, não é o céu nem a terra, embora nos constituam, porque provimos e somos de um E de outro. Deste simplesmente neutro é impossível falar, pois nos diz Parmênides: “O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala” (Parmênides, 1991: 45).
O pacto: a fonte do rio
O rito do pacto terminou. E como o mito aconteceu? Acontecendo. “Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai – desde o início se faz presente o rio, mas agora não é ele que entra no rio, mas o rio que entra nele. “A fonte não é o passado, mas o futuro do rio que se viaja de si para si mesmo, cavalgando a sua própria foz” (Souza, 2001: 31) – Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo – Asas aqui trazem o ar onde elas se movem livremente no aberto da clareira. Porém, tais asas lembram o cavalo alado Pégaso, o cavalo alado da poesia. Por isso, depois que voltar para o acampamento, quando Seu Habão retorna, o cavalo estranha Riobaldo e, diante disto, ele oferece o belo e imponente cavalo a Riobaldo. E este lhe dá o nome do poeta Siruiz, que um dia viu quando ele, ainda jovem, se encontrou pela primeira vez com o bando de Joca Ramiro. Este tema foi desenvolvido em minha dissertação de mestrado (Castro, 1976) – Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca – Foi o que procurei trazer à reflexão e diálogo com a citação acima de Parmênides – Cabem é no brilho da noite – Nesta única oração ele sintetiza a complexidade do pacto, pois aí comparecem as divindades das duas veredas. Por isso, segue – Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (p.319). Todo este ensaio, que se propõe como diálogo, partiu do sagrado. E eis que ele aparece na conclusão da manifestação do pacto, o que fundamenta nosso diálogo com Grande sertão: veredas do qual o que digo não quer ser mais do que uma escuta, solicitada pela própria obra. Mas muitos devem ser os diálogos como auto-diálogos enquanto pactos: “Absolutas estrelas”. Por que absolutas? Por que estrelas? Por que absolutas estrelas? Penso que devemos entender a introdução da palavra absolutas ligada diretamente às palavras anteriores: Aragem sagrada. A presença, como aragem, do sagrado é que possibilita o enunciar poeticamente as estrelas como absolutas. Como não ligar aqui aragem à força manifestadora do Espírito (Nous), o sagrado? Quanto a “Absolutas estrelas” devemos observar: Em princípio, absoluto é o que é independente de todo ser e acidente, ou seja, sai do âmbito do ente, pois o sagrado é o absolutamente indizível, impensável. A questão é maior que o homem. Poderíamos dizer que é o não-ser de Parmênides. Aliás, é melhor não dizer nem por comparação, porque não pode haver comparação. Talvez o melhor caminho, sem dúvida, dentro dos três caminhos de Parmênides, a que já nos referimos, e dentro da en-cruzilhada da con-cruz, seja nos concentrarmos na palavra estrelas. Na e a partir da clareira da noite olhamos e vemos as estrelas. Ao longe, muito longe, elas brilham como pontos de luz argêntea na profundeza inatingível do uni-verso. No entanto, cada uma tem luz própria e brilha a partir de si, de dentro de si, do mais profundo de si, em plenitude de realização. Notemos que a luz é a manifestação do que ela é, porque o que ela é é mais do que a luz. A luz só pode brilhar no livre aberto do dia e da noite. Plenitude e integração, sem perda das diferenças, porque vigorando no sagrado podem ser absolutas estrelas. É o pacto. É Riobaldo. É a fonte do rio. É a arte. É o sagrado. Somos nós, quando tivermos a cor-agem de nos tornarmos pactários.
À narração da eclosão do sagrado, seguem-se três parágrafos importantíssimos, onde cada palavra tem sua origem no originário da memória do sagrado enquanto narração inaugural. Por isso, como encerramento, no terceiro parágrafo diz: “Ao que digo, não digo?” (p.320). É um momento solene de encerrar a narração do pacto. Se o leitor tiver a curiosidade de reler a passagem onde ele diz ao ouvinte/leitor o porquê do que lhe vai narrar, encontrará, o mesmo dizer: “Dou o dito” (p.11). Já comentamos essa passagem. O importante a assinalar é que a recorrência acontece no momento decisivo: o pacto como acontecer poético-apropriante.
Lúcifer e Apolo: a arte e o mel
Naturalmente, deveria encerrar aqui meu diálogo com o pacto enquanto o seu acontecer. Porém, há um pequeno detalhe que ilumina todo o rito do pacto. Transtornado em todo o seu ser, não vai logo embora. A noite se torna para ele como “... um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir...” (p.320). E depois ele se concentra no que acontece com seu corpo, um profundo frio por dentro e por fora enquanto solidão que jamais na vida assim sentira. E aí se volta para a Terra, se une à Terra: “Abracei com uma árvore, um pé de breu-branco” (p.320). O leitor já deve ter percebido aí o paradoxo: se é breu como pode ser branco? Se é branco como pode ser breu? A Terra é esse mistério paradoxal. E mais. À eclosão do branco em meio ao breu da Terra, algo vem ainda mais admirável. Levanta-se e sente fome. E então a memória do originário: “Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes” (p.320). Mel, água, seco, verde. Num pequeno período ele retoma o rito de iniciação. Mas agora tudo se concentra no mel. Abelhas e mel, o que isto têm a ver com o pacto? Já no momento de chegada ao Coruja, quem lhe diz o nome é: “Um homem, que com a machadinha na mão e sua cabaça a tiracol tratava de desmelar cortiço num pau do mato...” (p.303). Na chegada ao Coruja, lugar do pacto, e na sua conclusão, as abelhas e o mel. O início no fim e o fim no início. O que abelhas e mel têm a ver com o pacto? Há dois aspectos complementares a considerar. O deus protetor das abelhas e das colméias é Aristeu, que é uma personificação de Apolo. Apolo é o deus Sol, estrela absoluta. Mas mais do que simplesmente deus sol, ele encarna o Dia, ou seja, a divindade urânica-celeste que comparece no pacto como uma das veredas. Por isso mesmo, Apolo/Aristeu estão ligados com o dom da profecia, com as musas e, então, com as artes. E as abelhas? Na tradição mítica, também as abelhas, como não podia deixar de ser, estão ligadas à profecia, o que é o próprio da obra de arte, pois a arte realiza o realizável, enquanto verdade manifestativa. E pela doçura do mel que produzem estão vinculadas às Musas: a doçura e harmonia que as artes produzem. Mas esta doçura do mel das abelhas tem outra dimensão que acompanha o pacto: o amor.
O contexto mítico grego em que estão inseridas as abelhas indica, portanto, duas direções de pesquisa: o campo das relações sexuais e sua condição social (casamento legal, concubinato, relações extra-conjugais, abstiência etc.) e o campo da morte e seu mistério, comemorado no festival da Tesmofória” (Araújo, 1992: 34).
Talvez o leitor não se dê conta o suficiente de que Apolo, Aristeu e Abelhas perfazem não só uma dimensão radical do pacto, como uma das veredas da concruz da encruzilhada, mas que esse fundo acompanha todo a obra e que, lida nesse horizonte complexo, muitos dos seus aspectos e dimensões podem ser pensados e repensados em correlações e correspondências inaugurais. Em vez de tentarmos encaixar a riqueza originária da obra nesses conceitos metafísicos dicotômicos, somos interpelados para uma abertura de escuta e diálogo com, mas a partir do pacto enquanto uma descida abismal aos nossos Infernos. Ou como nos diz Riobaldo: “Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como que já estivesse rendido do avesso, de meus íntimos esvaziado” (p.319). No e com o pacto ele já faz a travessia do Liso do Suassuarão. Por isso, tudo o que depois vem nada mais são do que conseqüências de explicitação do que no e com o pacto acontece. Convido o leitor a acompanhar com pensamento dialogal essas explicitações, relendo o que acontece quando depois do pacto, Riobaldo se torna Chefe.
A sabedoria e o amor
Mas, para terminar, ainda gostaria de destacar duas explicitações que nos falam da essência do pacto, ligados a Apolo, Aristeu e às Abelhas. No caminho encontram um velho em meio ao sertão, pobre e vivendo com os mínimos recursos. Com a velhice algo pode vir que nenhuma riqueza compra e está presente ao longo da obra: a sabedoria. Em diversos momentos diz o narrador: Aprendi com os antigos. “Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito valor. Comigo conversou” (p. 393). O velho o aconselha a ir a um lugar um pouco distante, onde estava enterrado um tesouro. Riobaldo pensa e acaba por se perguntar: Por que ele, velho, sendo tão pobre, não foi lá desenterrá-lo? Mais: “Por que é que se dá conselho aos outros?” (p.393). Ao longo da obra vem sempre este embate com os outros que, de fora, querem orientar e dar caminho que só pode ser buscado dentro de nós. “Ele entendia de meus dissabores? Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo... E possuía era meu caminho, nos peitos de meu cavalo. Siruiz. Aleluia. Só” (p.394). O diálogo continua. Riobaldo resolve perguntar: “Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...” ... e respondeu bem: - “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: - ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo” ... Respondeu, apontando com o dedo para o meu peito... [coração] Dele o dito, eu não decifrava” (p. 394). Não há como decifrá-lo, só fazendo a travessia. Cada um a sua.
O Verde-Alecrim: a ilha dos amores
Só depois é que ele vai entender de que tesouro o velho falava. “Porque: o tesouro do velho era minha razão” (p.394). Que razão? O que o move e o afeta: o amor. Se ele tivesse seguido o conselho do velho e fosse procurar o tesouro, no caminho ficava o lugar “onde assistia Nhorinhá, lugar ditoso” (p. 394). Então sua vida mudava, pois iria “casar feliz com Nhorinhá, como o belo do azul; vir aquém-de” (p.394). Por que aquém-de? Porque não cumpriria seu destino, o de experienciar a arte como amor e o amor como arte, onde se dá o pacto de: Diadorim, Nhorinhá e Otacília. Pois o amor é a convergência divergente e a divergência convergente dos contrários, das duas divindades, no percurso das três vias: Diadorim, Nhorinhá e Otacília.
Se, atento à escuta de seu destino, não segue os conselhos de outro, no pacto da travessia do amor algo o espera: Uma parada na “ilha dos amores”, o Verde-Alecrim. Claro que a chegada ao povoado, de sete casas e uma casa grande, pertencente a duas mulheres-damas, lembra o famoso episódio de Os Lusíadas em alguns detalhes. A semelhança com a ilha é evidente: “ ... ficava em aprazível fundo, no centro de uma serra enrodilhada ... Cheguei e logo achei que lugar tal devia era de ter nome de Paraíso” (p. 397). E quer que seus homens, todos, recebam o “justo quinhão” (p. 397). “A pois, me ia, e elas ficavam as flores naquele povoadozinho, como se para mim, ficassem na beira dum mar” (p. 400). Penso que, porém, para além de Rosa querer aproximar o povoado com uma ilha, a idéia de mar está muito mais ligada aos elementos primordiais, sempre presentes: terra e água. E claro, o ar com a luz. Mas ele fala de uma dupla luz, manifestada nas duas damas, donas da casa. Uma é Ageala (Hortência), “ ... porque o corpo dela era tão branquinho formoso, como frio para de madrugada [lua] se abraçar...” (p. 398). E a outra era Maria-da-luz, morena, cabelos pretos. “E os olhos água-mel, com verdolências ...” (p. 398). Fica evidente aqui a proximidade dela com a Água e o Aristeu/Sol (olhos água-mel), e a Terra (o verde). Como não podia deixar de ser, Rosa vai comparar as duas com Nhorinhá e, para surpresa, diz: “... não davam nem para lavar os pés dela” (p. 397). Então nos perguntamos, o que há de essencial nesse evento-questão? Ele tematiza aqui o amor do ponto de vista do dar. Quando Riobaldo entra para fazer amor com as duas, o jagunço Felisberto fica de sentinela. A certo momento ele tosse e ouvindo-o as duas pedem que ele o deixe entrar e tomar café também com eles. Consente e depois de ter entrado e comido e bebido, Maria-da-luz pede mais: Que Riobaldo o deixe fazer amor com ela. Ele reage, pois, se tal acontecesse, seria ele, o Chefe que teria de ficar de sentinela. Diz não. E surge nas palavras de Maria-da-luz a questão do amor como dar. “ – Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo tu tem?” (p.399). Se bem observarmos, o doar e repartir estão ligados à mulher Maria-da-luz. Nela se fazem presentes os elementos primordiais da physis, e é de seu próprio doar vida, alegria, prazer, pois nela se concentra a nascividade poético-amorosa, junto com o Sol. Então o doar da mulher não é um doar dela. Ela doa o que lhe foi doado pelo sagrado, assim como o narrador nos dá o dito, a arte, que também lhe foi dada pelo sagrado. Que é o ato amoroso senão um pacto?, um mútuo ser possuído pela paixão.
Há ainda uma outra questão ligada ao Felisberto. Ele tem uma bala de cobre na cabeça, que não pode ser tirada. E não se sabe o porquê, às vezes ele fica todo esverdeado, ou seja, a questão da morte para ele está muito presente e viva. Próximo da morte, mas feliz no nome, Riobaldo acha uma solução que atende aos dois lados: Felizberto deixa o bando e fica morando com elas. O amor como doar é uma das dimensões para o homem ser feliz. Esta tensão entre o amor E a morte, concentrado no evento-questão de Felisberto, marca uma diferença fundamental do episódio da Ilha dos Amores. Pois a recompensa lá, o quinhão de cada um, acontece já na volta para casa, depois da missão cumprida com sucesso. Aqui vai ser o inverso. A estadia no Verde-Alecrim precede a batalha final, onde morrerão Hermógenes e Diadorim, encerrando a Odisséia de Riobaldo. Uma odisséia do amor pelas veredas do Grande Ser Tao. Diálogos Amorosos.
BIBLIOGRAFIA
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ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 6.e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968. Doravante, em todas as citações desta obra virá apenas a página, colocada entre parênteses.
SOUSA, Ronaldes de Melo e. A criatividade da memória. In: SANTOS, Francisco Venceslau dos (org.). Historicidade da memória. Rio de Janeiro, Caetés, 2001/2002.
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