14 março 2008

Crônica poética do tempo



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(Apresentação de livro de Idalina da Silva Azevedo Tempo físico)

“O pensamento é que lê o escondido” p. 168
“Toda obra de arte inventa o vazio” p. 185
“Não se entendem os mistérios. Se vive, e pronto” p. 227


Idalina Azevedo da Silva é uma assinalada. E os sinais que ela traz são de pura e fina poesia. Apreciá-los só degustando-os. Para tanto é necessário deixar o tempo ser o próprio alimento, um alimento poético. Numa degustação rápida de leitura, o leitor se vê envolvido com o curso e o percurso de Maria, sua infância e adolescência, sua fase adulta e finalmente a experienciação mais palpável de que é uma peregrina no tempo, pelo advento da morte de muitos daqueles que constituíram seu mundo. Se ficasse aí não haveria muita novidade, pelo contrário isso se torna o previsível para cada um de nós. Porém, aí não passamos ainda do tempo cronológico. Mas há outros. E estes estão nos interstícios da sua obra, convidando e provocando os leitores mais exigentes, que queiram um alimento mais substancial. Então é necessário estarem atentos aos sinais. É que no Tempo físico a vida vivida se tornou uma profunda experienciação de vida. E é essa experienciação que ela quer dividir com os leitores atentos. Como a própria Maria, a personagente, nos diz: “O pensamento é que lê o escondido”. Pensar é deixar acontecer no ordinário o extraordinário. Procurar ler esse escondido e extraordinário que há nela foi a tarefa que se deu. Mas para isso é necessário se abrir para o pensamento e é a ele que Maria procura ler ao nos contar a sua estória, pois ela quer compartilhar esse escondido, esse extraordinário.
Compartilhar é a palavra-chave, pois não se trata de uma narrativa memorialística, como num primeiro momento possa parecer. Já bem jovem toma consciência de que pulsa nela o viço de escritora. E então o destino lhe assinala o seu quinhão. Leitora voraz de ficção toma contato com obras de Kafka. E a realidade deixa de ter seu aparente curso normal e lógico. Há o escondido. O que é? É aí que sua crônica poética mostra todo o seu poder criativo. Se Kafka desde jovem a abriu para as faces ocultas da realidade, ela terá um outro encontro marcado pelo destino, ver essas mesmas faces ocultas pela provocação da poesia inaugural de Hölderlin. Idalina irá estudar alemão na Alemanha e depois irá conviver longamente com a obra de Hölderlin, de que resultará sua tese de doutorado. Desta convivência com obras de arte densas e fundamentais não resultou nenhuma cópia repetidora esmaecida. Pulsou vivo em seu ser o desafio de ser arte, de fazer da vida uma obra de arte. Toda obra de arte inventa o vazio, diz Maria. Inventar o vazio, haverá maior desafio para cada um de nós, leitores? Mas não se trata de uma existencialista fora do tempo. Pelo contrário, ela mergulha fundo nesse vazio, para dele surgir a plenificação da vida. É o que Maia também nos diz: “Não se entendem os mistérios: se vide, e pronto”. Atravessada pelo mistério do sagrado é que vamos poder percorrer a vida de Maria. É o seu destino. Ela se sabe assinalada pelo sagrado e deste sua vida será a manifestação. E então vamos ter uma Maria de muitos nomes, com muitas personagentes. Depende do momento e do lugar. Dona Fada será o seu espelho e outras. Se o leitor quiser saber qual é o grande tema desta crônica poética eu diria que consiste no tentar mostrar os fios escondidos do sagrado tecendo não só a vida de cada um, mas também da história. E então aparece uma personagente – Maria - múltipla, aberta, pura doação e amor aos familiares, aos amigos, aos seres humanos, a todos sem distinção ou credo político ou religioso, pois “no amor não há diferenças étnicas”. Este traço fundamental não é uma idéia abstrata. Ele se faz presente na narrativa em dois mundos que aos poucos se vão completando e fundindo. É o mundo da família e o mundo social. Para o primeiro seu espelho será a mãe e para o segundo será seu pai, um humanista impulsionado pela utopia de um comunismo aberto e fraterno. Eles se encarnam nela e faz deles a sua arte, o seu modo de ser. É seu modo de inventar o vazio, essa possibilidade de todas as nossas possibilidades. Mas ó vivendo-o e fazendo da vida uma festa. Esses dois núcleos iniciais e locais vão sofrendo uma expansão e transformação, mas jamais serão abandonados. Primeiro, ao fazer o curso superior na capital do estado. Depois viajando para a Europa. E então sua família são os seres humanos e seu mundo é o mundo, porque mais importante do que as diferenças culturais são a doação e o amor. Sua presença, seja nas mais situações mais adversas, será sempre um gesto de bondade, uma palavra de iluminação.
Maria sabe que no escondido da vida há sempre muitas Marias como uma única e sempre presente: a mãe-mulher. Fugindo de todos os “ismos”, como quem sabe de só de experiência feita que a vida é a própria mãe-mulher, ela se torna uma mulher libertária da própria mulher. Eis uma nova faceta desta crônica poética. Deve o leitor, porém, não deixar passar despercebida uma faceta essencial e aparentemente banal e secundária. A profunda ligação de Maria com a Terra. De um lado ela acompanha sempre com atenção e entusiasmo as mudanças das estações, a dança da Terra. De outro, sabedora dessa nossa profunda ligação com nossa mãe originária, fonte de toda vida, ela se deixa completamente envolver pela arte culinária. Nela e por ela experiência a vida em seu sabor e saber. Nela se dá a confluência de mundo e terra. Então o tempo mais do que puramente biográfico e cronológico é poético, é Tempo físico.

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