14 março 2008

A noite e a face oculta de Vinicius de Moraes


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(Apresentação de "A poética da noite em Vinicius de Moraes", de Elenice Groetaers de Moraes)
O convívio dialogal com a obra poética de Vinicius de Moraes levou Elenice Groetaers de Moraes a surpreender e a apreender uma face oculta da sua obra. É o que ela agora apresenta aos leitores em seu livro A poética da noite em Vinicius de Moraes.
Causa estranheza num mundo de tantas falas, ruídos, cantos e lugares onde acontecem as agitações do dia e da noite, com todos os seus apelos de tudo vivenciar, intensa e ininterruptamente, numa sucessão contínua e desenfreada de consumo e envolvimentos; causa estranheza, acentuamos, que Elenice Groetaers, diante de tudo isso, tenha escolhido o tema Noite. Que apelo poderá ela encontrar em seus possíveis leitores? O que, dentro dela, a impulsionou, num sentido contrário a tudo que hoje nos faz apelo e convida às vivências exteriores, a escolher a noite, com seu silêncio, com sua solidão e quietude, justamente o contrário de tudo que hoje se vive? Evita-se a noite envolvente, pois teme-se um triste ou desencantado encontro conosco mesmo? Sobre a noite se silencia por nos fazer deparar com o vazio de tudo e poder nos jogar, inapelavelmente, na proximidade da morte?
No entanto, é esse o tema escolhido. Isso só foi possível porque Elenice não experiencia a noite nesse pavor que traz, para os que vivem o dia dos agitos e fulgurações, um temível pavor das possibilidades da noite. Mas a noite tem possibilidades desconhecidas. Elas esperam quietas, solícitas e acolhedoras os que as procuram, oferecendo muito mais vida e riqueza interior para os que têm coragem de experienciar a noite.
A Noite!
O que de misterioso ela traz em si? Por que é tão forte o seu apelo? Só já quem convive com a noite e ouve-lhe a voz silenciosa é que pode dedicar-se à noite e proporcionar aos leitores riquezas escondidas, mas reais e vivificadoras. Porque Elenice faz da noite uma experiência de vida é que ela tem algo a dizer aos leitores. Por isso, ela nos oferece uma noite luminosa. Seu brilho não é para ser captado pelos olhos solares, mas por corpos sensíveis ao que habitando dentro tem mais luz. Porém, ela só brilhará se o leitor fizer a leitura numa postura aberta e dialogal.
Será, na verdade, um triplo diálogo. O leitor encontrará na prosa leve e sensível da autora uma fala consciente e provocadora. São muitas as facetas que ela visualiza e ilumina. E descobrimos na leitura dialogal de sua fala muitas possibilidades de crescimento. O leitor não encontrará dificuldade de conversar com seu texto. Numa expressão singularmente simples, procura incessantemente a clareza, a fluência e o tom convincente, sem pedantismos terminológicos ou reflexões rebuscadas. É fluir de voz veludosa num mimetismo, difícil de realizar, do que a própria noite é: singular, aconchegante, acolhedora. E de tal maneira presente e plena que a noite se torna uma amiga desejada.
Se é estranha a escolha da noite, mais estranho é ainda o autor com quem ela dialoga: com a obra de Vinicius de Moraes. O leitor, ao ver o título desta obra de Groetaers, pode até levar um susto e suscitar, ao mesmo tempo, muita curiosidade. Tudo que se diz e veicula a respeito de Vinicius, o “mito” que em torno dele os meios de comunicação criaram é o de um homem não da noite. Muito pelo contrário, é o homem das noitadas, da boemia, das bebidas, das muitas mulheres e de muita música. Um homem inquieto, em permanente mutação criativa, em diferentes linguagens artísticas: poemas, canções, crônicas, peças de teatro, cinema. Impulsionado pelo apelo criativo, abre-se para todas as novas possibilidades que seu tempo lhe oferece. Vinicius – na imagem que os meios de comunicação criaram dele – é a própria agitação da noite brilhante, musical, num permanente viver noite a dentro. Contudo, nada nos dizem da experienciação da noite como Noite em sua vida. Como agora Elenice quer – não negar – mas dizer que há um outro Vinicius?
Então acontece o segundo diálogo. Sem polemizar com essa imagem pública do autor, ela, paciente e noturnamente, surpreende, num profundo diálogo com a rica obra do poeta, essa faceta esquecida e ignorada do grande público, mas que está presente e é profunda e de uma importância capital, no todo da sua obra. Depois deste paciente e percuciente trabalho de Groetaers, ninguém mais vai poder ignorar essa faceta importante da obra de Vinicius, mostrando, com isso, como ele é complexo e rico nas suas realizações artísticas. O leitor não vai, porém, neste trabalho dialogal e atento à fala da obra, tomar conhecimento de um assinalar esse tema na sua obra. Só porque a autora é tomada pela noite em seu mistério é que pode se indagar o que também leva Vinicius a se deixar tomar tão fortemente pelo tema Noite em sua obra e vida. E é então que o presente trabalho se densifica.
Quem é que hoje se preocupa com o sentido? Talvez mais pessoas do que a gente imagina e os meios de comunicação, no seu frêmito comunicacional, nos querem fazer supor. A prova é o próprio Vinicius e sua obra, porque o que importa é a obra. A biografia de um criador múltiplo, como é o poeta, é sua obra poética. É ela que fica e nos convida permanentemente ao diálogo pela leitura. Por que o diálogo é tão importante na nossa vida? Diríamos que é importante porque a noite é importante, uma vez que ela é a diferença. A diferença é a nossa condição de afirmação, de conquista do que somos. Por isso, dialogamos, não para concordar, anulando a singularidade inaugural e única de cada um, mas para, no encontra das diferenças, apreendermos a riqueza de nossas possibilidades. E isso é tão verdadeiro que o tema Noite é um dos mais antigos e até dos mais recorrentes nas artes. E mais, é um tema fundador. Nessa perspectiva, o trabalho de Elenice traz uma riqueza muito grande para o conhecimento de nossas origens. Ela vai buscar tais origens, naturalmente, nos mitos. Este contato com os mitos, no caso, voltados para a noite, deve provocar no leitor um certo espanto saudável. O mítico está vivo e atuante. Nos mitos temos um encontro marcado com nossas questões, aquelas que nos acompanham desde que nascemos e solicitam permanentemente um posicionamento para que nossa vida tenha sentido.
O mito faz pensar, como a vida faz pensar, como a noite na obra de Vinicius faz pensar. E então o leitor se vê solicitado a desenvolver um terceiro diálogo. Sentirá o desejo de ir direto à obra do autor, porque sente a necessidade de dialogar consigo mesmo e passar a morar na noite. É que da noite não nos vem o medo nem a proximidade da morte, mas uma possibilidade de que, tornando a vida mais recolhida e povoada pelas falas do que em nós ainda é noite, da noite se faça a luz que ilumina a cada um. É que da Noite, como nos narra o Mito, nasceu Eros e, com ele, o Céu e a Terra. E se, impulsionados por Eros, buscamos a luz do dia e a vida da terra, também na noite e pela noite sentimos o apelo de sentido de tudo isso, ao nos voltarmos para nossas origens: a noite mítica inaugural e primordial. E então espera-se que esta faceta da obra do poeta, tão esquecida e ignorada, possa levar o leitor, ao mesmo tempo, a compreender melhor a aparente vida tumultuada e exterior de Vinicius, porque em tudo isso pulsava muito mais não apenas algo exterior e passageiro, mas uma profunda procura do que nele e em nós há de mais importante: a Noite, Mãe de Eros. E Eros é a energia poética da riqueza e beleza da vida.
A grande contribuição do presente estudo não está apenas, como poderia parecer a uma visão mais imediata, em trazer para cena e destaque, tornando-se novidade, uma faceta da obra de Vinicius, ignorada até por especialistas de sua obra. Isso não é tão difícil de acontecer, porque a obra múltipla do poeta se tece e entretece com os fios de variados e ricos temas e questões. Não. A articulação segura de Groetaers pode suscitar em nós o apelo para o diálogo pela leitura nas três instâncias e dimensões. Cabe ao leitor ir diretamente para a obra do poeta e experienciá-las.

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