14 março 2008

A via-sacra do poético-sagrado



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(Apresentação do livro de poemas de Helena Parente Cunha: Caminhos de quando e além)

Há sempre o perigo de a apresentação ter a pretensão de dar conta, no apresentado, do que poeticamente se faz presente na obra. Mas o que se presenteia poeticamente não pode ser apresentado, apenas experienciado pela abertura para a escuta do vigor da fala da poesia na obra.
A apresentação deve recolher-se à simplicidade de ser uma entre muitas possíveis e desejáveis escutas, tornando-se uma convocação para a disposição de ausculta do que em Caminhos de quando e além vigora como fala do silêncio. Escutar a voz do silêncio da obra eis o desafio, que uma apresentação não pode nem pretende substituir. O intuito da presente apresentação é esse e nenhum outro.
É evidente que são os poemas que fazem o poeta, assim como é a poesia que faz tanto o poeta como os poemas. Helena Parente Cunha é poeta porque nela acontece um deixar-se tomar profundo pela fala da poesia. Os gregos chamaram um tal deixar-se tomar de entusiasmo. Mais recentemente, entre nós, G. Rosa denominou-o: pacto, o pacto sacro-amoroso. Não pense o leitor que tudo se resolve num simples transe. Como então as coisas seriam fáceis! Não são. Elas sempre são ambíguas, sorrateiras, dissimuladas, denegadoras. Transitam na proximidade. Querem o assédio e amam a proximidade, tanto mais se presenteando quanto mais se ausentam. Experienciando tal paradoxo é que chegamos a ser o que somos, dolorosamente. Dessa disputa poética vive a fala poética de Helena Parente Cunha. E nisso e por isso ela é poeta. À escuta dessa disputa poética nos provocam os poemas que só aparentemente são dela, porque ela só aparece e fala para deixar a poesia parecer e falar.
Nessa caminhada poético-angustiante e paradoxal de proximidade e distância se escreve e inscreve a via sacra das 48 Estações de Caminhos de quando e além. Seu itinerário poético é angustiante porque, de um lado, se vê e sente profundamente assediada pela volúpia das palavras, de que surge uma sombra de culpa, porque então palavra não é o uso retórico do bem e bom falar, nisso consistindo a possível culpa, de outro, sabe que a palavra é o poder fazer aparecer e manifestar da própria poesia. Palavra é o apelo apaixonado do que inconscientemente ou não nos atrai. Palavra é paixão culposa, porque não há como corresponder a não ser respondendo nas falas das escutas aproximantes dos poemas. Então falamos para nos escutar, não a nós, mas ao que em nós se faz fala de proximidade aliciante, envolvente, silenciosa. Tão forte é esta fala que em muitas das Estações é a própria poesia que se dirige a nós, numa abertura profunda de se deixar atravessar pela poesia e de nos levar a experiênciá-la também na sua presença vigorosa, que supere nossa resistência voluntariosa. Preste o leitor atenção. Se há culpa também há o arrependimento e nesse jogo ambíguo se faz o longo caminho em direção ao sagrado. Não é um arrependimento falaz e falacioso. São paragens e passagens de auto-escuta e auto-diálogo num lento e doloroso progredir. Mas progredir em direção a onde e a quê? No quando de tempo e espaço, em todos os tempos e espaços, um dirigir-se ao além. Então a poesia se torna destino. E ao longo das Estações poesia e destino se entretecem como escrita de caminhada em direção ao encontro marcado. Nisso o destino é a força ao mesmo tempo poética e de auto-realização enquanto descoberta e completude do e no sagrado. É uma pro-cura e descoberta angustiante da vida no que a vida tem de sobrevida e subvida, com idas e vindas, titubeios e desvios, errâncias e aparências, prazeres fáceis e passageiros, tristezas e alegrias.
Isso gera uma grande perplexidade que se vai refletir, naturalmente, na configuração de cada Estação e da obra como um todo.
Uma condição fundamental – entre outras -, para o leitor de poesia, é deter-se nas palavras e deixá-las ir atuando e crescendo dentro de nós, para nos conduzirem para o que em nós é latente. Nesse sentido, o título já traz as grandes linhas temáticas que configuram a obra. Claro, com múltiplos e possíveis desdobramentos interpretativos. Caminhos são as vias e os desvios que acontecem no tempo, daí o “quando”. Mas, certamente, a palavra mais importante é “além”. Que “além” é este? Qualquer resposta vai depender das experienciações que surgirem, para o leitor, dos caminhos que na obra se caminham. Estes são um apelo poético que depende da escuta que cada um faz de uma sina e de um destino. Porém, eles se dão no tempo. Que tempo? Esta é a questão central prévia desta obra, que irá preparar o que nela se propõe como “além”.
No encaminhamento da questão do tempo é que, na configuração da obra, aparecem múltiplas dificuldades para o leitor que estiver acostumado só com a linearidade temporal. O tempo que preside a feitura da obra interpreto-o como memória. Para que o leitor acompanhe minha leitura é necessário uma pequena reflexão, não sobre, mas num diálogo com a memória. Memória é mais do que lembrança e esquecimento. Ela é o cuidado do uno, o uno para o qual a Estação 48 aponta. Contudo, o uno não é um resultado final. É o começo levado à plenitude. A foz do rio no encontro com o mar traz em si e no seu percurso, permanentemente, a fonte. O futuro do rio, nas suas caminhadas – primeira questão da obra – já está no passado da fonte. Se pensarmos o percurso do rio como a unidade de três contínuos e unidos momentos do tempo: o presente enquanto tensão de passado e futuro, então a memória é a memória poética desses três momentos. O que Helena fez? Deixou-se tomar pela memória poética e os três momentos temporais comparecem simultaneamente, não como lembranças de um passado evocado narrativamente, mas concreta e vivencialmente presentes na determinação das caminhadas dos caminhos. De algum modo o “além” já pode ser lido no horizonte da memória poética. O leitor, aberto para estas possibilidades, que exigem uma desautomatização no seu modo de ler e ser, passará a dialogar mais densamente com a fala de cada poema. A simultaneidade acontece nos versos de uma Estação e é relativa a diferentes aspectos da realidade:

Decretos em pergaminhos desenrolam mensagens de quando.
Rolos de papiro e papel couché, telas de videoclipe...
(Estação 2)

As mensagens, enquanto o destino cifrado, não estão só em papiros e pergaminhos, num antigo tempo linear. Não. Elas continuam presentes do mesmo modo para nós, hoje, agora, no “papel couché”, nas “telas de videoclipe...”. Para o leitor uma reflexão sobre o destino é fundamental, pois é uma das pilastras em que se funda a obra. Mas o seu entendimento é complexo e amplo. Talvez o destino se confunda, na obra, com a própria memória poética.

Meus comandos estão gravados nos pergaminhos, nos papiros,
Nas pedras das cavernas, nas inscrições rupestres,
Nas telas dos computadores e nas infovias que levam mensagens
E imagens instantâneas para o planeta.
(Estação 6)

Como vemos o destino não é algo antigo e mitológico. Por isso, o “começo” de que nos fala o Prólogo

Agora é o começo,
de que começo é agora?

não é algo historiográfico ou cultural. É o “começo” enquanto memória poética. Na poesia se encontra a senha para o desvelamento do destino? Cabe a cada leitor ler e estar atento para essa questão.
A mesma simultaneidade, evocando outras ressonâncias, se dá na presença de Princesa, Infante, príncipe, Rei, mitos (“carreguei noite e dia a pedra que rolava na encosta” (Estação 6), guerreiros etc. Essas referências não querem ser, assim penso, representações, mas sintomas do que permanece. A memória poética é um traço forte e fundamental que se faz presente em cada Estação e determinante das Estações entre si. Daí uma obsessiva reiteração de certas imagens em diferentes Estações. É uma reiteração que não é falta de estilo ou inspiração, mas a proposta de um desafio poético: numa Estação ressoarem todas as demais e todas constituírem uma Estação, porque a referência pronominal de um eu, um tu, um nós, é, no fundo, a referência ao humano. Porém, para entender isto só deixando a palavra poética enquanto memória poética se presentificar como fonte e foz, começo e fim. Cabe ao leitor experienciar. É uma questão e as questões é que nos têm. Sobre elas não dá para falar. Só falando e pensando com elas e a partir delas.
Neste apelo, surge uma outra dificuldade para a leitura que se quer sempre dialogal: a obra propõe-se como um grande diálogo com outras obras e textos. Mais diretamente com o Cancioneiro de Fernando Pessoa. Não se trata apenas da intertextualidade, onde aparecem as referências a outras obras. Como memória poética, há também uma hipotextualidade, onde quem fala é sempre o mesmo. Isto não quer dizer que diga sempre as mesmas coisas, porque à fala deve corresponder uma escuta. O importante é perceber que há sempre o apelo do mesmo. Que mesmo é este? Para Helena, enquanto “Caminhos do quando” nos manifesta o “além”.

Ainda não sabes nem sabeis quem é o rei que te e vos enviou?
(Estação 47).

Eu, você, leitor todos nós devemos constatar:

A caminhada é caminho de muitos degraus e subidas e idas
e paradas e recuadas e descidas e mais subidas e enfim o fim do trajeto
em ser a chegada do retorno à casa do pai.
(Estação 47).
E conclui:

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 47)

O diálogo hiper e hipotextual não pode ser visto como algo que de fora vem determinar o que cada um é no como é de sua caminhada. Há o destino – uma diretriz fundamental e presente da obra que não é a determinação passiva e prévia do que cada um é. O destino onipresente na obra é muito mais uma provocação de escuta. Mas para haver escuta temos que identificar as vozes. Este poder identifica as vozes é que é o destino. Há pessoas que nunca escutam o que escutamos. Que vozes falam como destino? Como saber? Só cada um sabe, quando se decide pela auto-escuta.
O que é auto-escuta? Ela é um dos traços mais fortes e complexos na constituição da obra. É a outra faceta da memória poética. Nela não há apenas uma mera referência simultânea a presente e passado, projetando um futuro. A referência é radicalmente refundida a partir da auto-escuta. Quando falamos em diálogo devemos distinguir o diálogo com o outro (hétero-diálogo) e o diálogo consigo mesmo (auto-diálogo). Partem do mesmo, a linguagem, mas são diferentes. Em todo diálogo trata-se sempre de fala e escuta. Há sempre um eu e um tu como afirmação de uma identidade e uma diferença. Esta diferença é dupla: no tu que são os outros e no tu de cada eu (porque, cada um de nós é, ao mesmo tempo, eu e tu, isto é, sou e não-sou). Quando na Estação 47 se dá a união de anima e animus, de Princesa e Infante, acontece finalmente o auto-diálogo, onde em união dialogal eu e tu se apropriam do que é próprio, configurado na união como doação do mesmo.
Para tentar compreender isto melhor é fundamental estar atento à percepção e experienciação do auto-diálogo como a união do eu e do tu, de Princesa e Infante. Isso pressupõe que a união só acontece porque a precede uma diferença. Ao longo das Estações, os dois diálogos (auto e hétero), na suas múltiplas facetas e diferentes experienciações acontecem ao mesmo tempo, quer dizer, de uma maneira simultânea e sucessiva. Isto dá uma densidade inaugural à obra, mas a torna extremamente difícil, porque exige uma longa e paciente caminhada de encontro com o outro e do encontro consigo mesmo, como escuta da fala do mesmo. Este mesmo é o “além”? Vai depender da escuta das falas que em cada um falam:

Na alquimia da imponderável transmutação,
Onde Rei e Rainha se espelham,
Unem-se dois na unidade do elo ele e ela.
(Estação 48)

O mesmo, o “além”, reúne não apenas eu e tu, Princesa e Infante, masculino e feminino, Rei e Rainha, mas o humano do homem. Então nessa Princesa e nesse Infante, estamos eu, você leitor, poeta, enfim, todos nós. E não apenas nós, hoje, vivos. Não. Na obra enquanto memória poética é o humano do homem que comparece, o humano da aventura, desventura e ventura humana. Se o leitor auscultar em todas as falas e nas nomeações pronominais essa procura do humano, o longo poema se manifesta numa simultaneidade de diferenças pessoais, culturais, temporais, históricas. Implicitamente, o humano se constitui nos multifacetados diálogos, porque estes são a poesia se fazendo memória poética. Nesta perspectiva, o humano é o poético da memória que cada um realiza na sua caminhada e destino. E, como memória poética, são os diálogos, enquanto obra de arte, que nos conduzem, em nossas caminhadas, ao próprio, isto é, ao mesmo, de animus e anima, de diferença e identidade, de proximidade e distância, de verdade e não-verdade, de sou e não-sou. O humano se torna obra-de-arte porque se deixa atravessar e possuir no e pelo diálogo. Cada um chegado à “unidade do elo ele e ela” (Estação 48), de sou e não-sou

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 48)

A “folha em branco do livro” é o “além”?
As múltiplas dificuldades que surgem na leitura se tornam para o leitor um desafio de, fazendo uma leitura de dentro de si, acordando o que está adormecido, percorrer a sua via sacra enquanto demanda do sagrado, do “além”.
A obra como um todo se constitui um grande círculo, onde o começo é o fim e o fim é o começo, unindo o Prólogo e a última Estação:

Agora é o começo,
de que começo é agora?
(Prólogo)

Alfa eÔmega recomeçam o incessante começar
Que não tem começo nem fim.
(Estação 48)

Imagine o leitor em grande vitral circular onde do centro partem quarenta e oito raios: são as Estações. Estas, na unidade do círculo, se entre-irradiam, compondo um vivo, poético e abismal vitral. Temos aí a sucessividade e simultaneidade, o mesmo no círculo do Alfa e no do Ômega. No entre-circular estão os Caminhos de quando e além. Lançados nesse “entre”, temos que cumprir nossos destinos. É um destino que se dá no entre enquanto caminhada de travessia.

Enquanto escreves, dormes, enquanto dormes, caminhas,
enquanto caminhas, vives e revives mortes e martírios,
idas e vindas de vidas idas e esquecidas.
(Estação 35)

Mas em cada um acontece o círculo:

Buscais tesouros imersos em alguma Atlântida ignorada,
quando tudo gira ao redor de vossa coluna vertebral
e no quadrado de vossos olhos e mãos.
(Estação 26)

A forma nada diz se o silêncio não fingir a figura e ditar a voz. É neste entre silêncio e fala que se dá a obra.

Entre o sono e o sonho / entre mim e o que em mim /
é o quem eu me suponho, / corre um rio sem fim.
(Estação 32, 38)

Por isso, a obra opera a partir do entre enquanto diálogo e espelho:

Na alquimia da imponderável transmutação,
onde Rei e Rainha se espelham...
(Estação 48)

Mas esse “Rei e Rainha” são o animus e a anima, a identidade e a diferença. Por isso, o realizar os diálogos é proceder ao espelhar-se pelo qual chegamos à unidade do mesmo. Ao lado da questão do destino, talvez a questão do espelho seja igualmente a mais permanente e profunda. Mas esta questão não é só desta obra, mas da poética de Helena Parente Cunha. Lembre-se apenas sua obra Mulher no espelho. O espelho não é algo ao lado da mulher, é um entre que caminha tanto mais para ela quanto mais adentra o homem, ou nas palavras de Helena, tanto mais é anima quanto mais é animus. É a permanente diferença procurando a identidade. Nesse sentido, a leitura atenta das Estações nos mostraria um mergulhar poético-abismal de busca de luz do que na mulher é mulher, pois Helena é uma sensível escuta do que nela é mulher. Não mulher gênero, algo genérico. Mas o humano da mulher, porque toda mulher é mulher do e no humano. E o humano é humano enquanto demanda do poético-sagrado. E trazer “isso” para a linguagem, para a poesia é o grande desafio de sua poética. Não será esta a via sacra desta obra nas 48 Estações? Não será “esta” a sua via sacra, a demanda do sagrado enquanto poesia e da poesia enquanto o humano do homem, o “além”?

Manuel Antônio de Castro
Manuel Antônio de Castro

Há sempre o perigo de a apresentação ter a pretensão de dar conta, no apresentado, do que poeticamente se faz presente na obra. Mas o que se presenteia poeticamente não pode ser apresentado, apenas experienciado pela abertura para a escuta do vigor da fala da poesia na obra.
A apresentação deve recolher-se à simplicidade de ser uma entre muitas possíveis e desejáveis escutas, tornando-se uma convocação para a disposição de ausculta do que em Caminhos de quando e além vigora como fala do silêncio. Escutar a voz do silêncio da obra eis o desafio, que uma apresentação não pode nem pretende substituir. O intuito da presente apresentação é esse e nenhum outro.
É evidente que são os poemas que fazem o poeta, assim como é a poesia que faz tanto o poeta como os poemas. Helena Parente Cunha é poeta porque nela acontece um deixar-se tomar profundo pela fala da poesia. Os gregos chamaram um tal deixar-se tomar de entusiasmo. Mais recentemente, entre nós, G. Rosa denominou-o: pacto, o pacto sacro-amoroso. Não pense o leitor que tudo se resolve num simples transe. Como então as coisas seriam fáceis! Não são. Elas sempre são ambíguas, sorrateiras, dissimuladas, denegadoras. Transitam na proximidade. Querem o assédio e amam a proximidade, tanto mais se presenteando quanto mais se ausentam. Experienciando tal paradoxo é que chegamos a ser o que somos, dolorosamente. Dessa disputa poética vive a fala poética de Helena Parente Cunha. E nisso e por isso ela é poeta. À escuta dessa disputa poética nos provocam os poemas que só aparentemente são dela, porque ela só aparece e fala para deixar a poesia parecer e falar.
Nessa caminhada poético-angustiante e paradoxal de proximidade e distância se escreve e inscreve a via sacra das 48 Estações de Caminhos de quando e além. Seu itinerário poético é angustiante porque, de um lado, se vê e sente profundamente assediada pela volúpia das palavras, de que surge uma sombra de culpa, porque então palavra não é o uso retórico do bem e bom falar, nisso consistindo a possível culpa, de outro, sabe que a palavra é o poder fazer aparecer e manifestar da própria poesia. Palavra é o apelo apaixonado do que inconscientemente ou não nos atrai. Palavra é paixão culposa, porque não há como corresponder a não ser respondendo nas falas das escutas aproximantes dos poemas. Então falamos para nos escutar, não a nós, mas ao que em nós se faz fala de proximidade aliciante, envolvente, silenciosa. Tão forte é esta fala que em muitas das Estações é a própria poesia que se dirige a nós, numa abertura profunda de se deixar atravessar pela poesia e de nos levar a experiênciá-la também na sua presença vigorosa, que supere nossa resistência voluntariosa. Preste o leitor atenção. Se há culpa também há o arrependimento e nesse jogo ambíguo se faz o longo caminho em direção ao sagrado. Não é um arrependimento falaz e falacioso. São paragens e passagens de auto-escuta e auto-diálogo num lento e doloroso progredir. Mas progredir em direção a onde e a quê? No quando de tempo e espaço, em todos os tempos e espaços, um dirigir-se ao além. Então a poesia se torna destino. E ao longo das Estações poesia e destino se entretecem como escrita de caminhada em direção ao encontro marcado. Nisso o destino é a força ao mesmo tempo poética e de auto-realização enquanto descoberta e completude do e no sagrado. É uma pro-cura e descoberta angustiante da vida no que a vida tem de sobrevida e subvida, com idas e vindas, titubeios e desvios, errâncias e aparências, prazeres fáceis e passageiros, tristezas e alegrias.
Isso gera uma grande perplexidade que se vai refletir, naturalmente, na configuração de cada Estação e da obra como um todo.
Uma condição fundamental – entre outras -, para o leitor de poesia, é deter-se nas palavras e deixá-las ir atuando e crescendo dentro de nós, para nos conduzirem para o que em nós é latente. Nesse sentido, o título já traz as grandes linhas temáticas que configuram a obra. Claro, com múltiplos e possíveis desdobramentos interpretativos. Caminhos são as vias e os desvios que acontecem no tempo, daí o “quando”. Mas, certamente, a palavra mais importante é “além”. Que “além” é este? Qualquer resposta vai depender das experienciações que surgirem, para o leitor, dos caminhos que na obra se caminham. Estes são um apelo poético que depende da escuta que cada um faz de uma sina e de um destino. Porém, eles se dão no tempo. Que tempo? Esta é a questão central prévia desta obra, que irá preparar o que nela se propõe como “além”.
No encaminhamento da questão do tempo é que, na configuração da obra, aparecem múltiplas dificuldades para o leitor que estiver acostumado só com a linearidade temporal. O tempo que preside a feitura da obra interpreto-o como memória. Para que o leitor acompanhe minha leitura é necessário uma pequena reflexão, não sobre, mas num diálogo com a memória. Memória é mais do que lembrança e esquecimento. Ela é o cuidado do uno, o uno para o qual a Estação 48 aponta. Contudo, o uno não é um resultado final. É o começo levado à plenitude. A foz do rio no encontro com o mar traz em si e no seu percurso, permanentemente, a fonte. O futuro do rio, nas suas caminhadas – primeira questão da obra – já está no passado da fonte. Se pensarmos o percurso do rio como a unidade de três contínuos e unidos momentos do tempo: o presente enquanto tensão de passado e futuro, então a memória é a memória poética desses três momentos. O que Helena fez? Deixou-se tomar pela memória poética e os três momentos temporais comparecem simultaneamente, não como lembranças de um passado evocado narrativamente, mas concreta e vivencialmente presentes na determinação das caminhadas dos caminhos. De algum modo o “além” já pode ser lido no horizonte da memória poética. O leitor, aberto para estas possibilidades, que exigem uma desautomatização no seu modo de ler e ser, passará a dialogar mais densamente com a fala de cada poema. A simultaneidade acontece nos versos de uma Estação e é relativa a diferentes aspectos da realidade:

Decretos em pergaminhos desenrolam mensagens de quando.
Rolos de papiro e papel couché, telas de videoclipe...
(Estação 2)

As mensagens, enquanto o destino cifrado, não estão só em papiros e pergaminhos, num antigo tempo linear. Não. Elas continuam presentes do mesmo modo para nós, hoje, agora, no “papel couché”, nas “telas de videoclipe...”. Para o leitor uma reflexão sobre o destino é fundamental, pois é uma das pilastras em que se funda a obra. Mas o seu entendimento é complexo e amplo. Talvez o destino se confunda, na obra, com a própria memória poética.

Meus comandos estão gravados nos pergaminhos, nos papiros,
Nas pedras das cavernas, nas inscrições rupestres,
Nas telas dos computadores e nas infovias que levam mensagens
E imagens instantâneas para o planeta.
(Estação 6)

Como vemos o destino não é algo antigo e mitológico. Por isso, o “começo” de que nos fala o Prólogo

Agora é o começo,
de que começo é agora?

não é algo historiográfico ou cultural. É o “começo” enquanto memória poética. Na poesia se encontra a senha para o desvelamento do destino? Cabe a cada leitor ler e estar atento para essa questão.
A mesma simultaneidade, evocando outras ressonâncias, se dá na presença de Princesa, Infante, príncipe, Rei, mitos (“carreguei noite e dia a pedra que rolava na encosta” (Estação 6), guerreiros etc. Essas referências não querem ser, assim penso, representações, mas sintomas do que permanece. A memória poética é um traço forte e fundamental que se faz presente em cada Estação e determinante das Estações entre si. Daí uma obsessiva reiteração de certas imagens em diferentes Estações. É uma reiteração que não é falta de estilo ou inspiração, mas a proposta de um desafio poético: numa Estação ressoarem todas as demais e todas constituírem uma Estação, porque a referência pronominal de um eu, um tu, um nós, é, no fundo, a referência ao humano. Porém, para entender isto só deixando a palavra poética enquanto memória poética se presentificar como fonte e foz, começo e fim. Cabe ao leitor experienciar. É uma questão e as questões é que nos têm. Sobre elas não dá para falar. Só falando e pensando com elas e a partir delas.
Neste apelo, surge uma outra dificuldade para a leitura que se quer sempre dialogal: a obra propõe-se como um grande diálogo com outras obras e textos. Mais diretamente com o Cancioneiro de Fernando Pessoa. Não se trata apenas da intertextualidade, onde aparecem as referências a outras obras. Como memória poética, há também uma hipotextualidade, onde quem fala é sempre o mesmo. Isto não quer dizer que diga sempre as mesmas coisas, porque à fala deve corresponder uma escuta. O importante é perceber que há sempre o apelo do mesmo. Que mesmo é este? Para Helena, enquanto “Caminhos do quando” nos manifesta o “além”.

Ainda não sabes nem sabeis quem é o rei que te e vos enviou?
(Estação 47).

Eu, você, leitor todos nós devemos constatar:

A caminhada é caminho de muitos degraus e subidas e idas
e paradas e recuadas e descidas e mais subidas e enfim o fim do trajeto
em ser a chegada do retorno à casa do pai.
(Estação 47).
E conclui:

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 47)

O diálogo hiper e hipotextual não pode ser visto como algo que de fora vem determinar o que cada um é no como é de sua caminhada. Há o destino – uma diretriz fundamental e presente da obra que não é a determinação passiva e prévia do que cada um é. O destino onipresente na obra é muito mais uma provocação de escuta. Mas para haver escuta temos que identificar as vozes. Este poder identifica as vozes é que é o destino. Há pessoas que nunca escutam o que escutamos. Que vozes falam como destino? Como saber? Só cada um sabe, quando se decide pela auto-escuta.
O que é auto-escuta? Ela é um dos traços mais fortes e complexos na constituição da obra. É a outra faceta da memória poética. Nela não há apenas uma mera referência simultânea a presente e passado, projetando um futuro. A referência é radicalmente refundida a partir da auto-escuta. Quando falamos em diálogo devemos distinguir o diálogo com o outro (hétero-diálogo) e o diálogo consigo mesmo (auto-diálogo). Partem do mesmo, a linguagem, mas são diferentes. Em todo diálogo trata-se sempre de fala e escuta. Há sempre um eu e um tu como afirmação de uma identidade e uma diferença. Esta diferença é dupla: no tu que são os outros e no tu de cada eu (porque, cada um de nós é, ao mesmo tempo, eu e tu, isto é, sou e não-sou). Quando na Estação 47 se dá a união de anima e animus, de Princesa e Infante, acontece finalmente o auto-diálogo, onde em união dialogal eu e tu se apropriam do que é próprio, configurado na união como doação do mesmo.
Para tentar compreender isto melhor é fundamental estar atento à percepção e experienciação do auto-diálogo como a união do eu e do tu, de Princesa e Infante. Isso pressupõe que a união só acontece porque a precede uma diferença. Ao longo das Estações, os dois diálogos (auto e hétero), na suas múltiplas facetas e diferentes experienciações acontecem ao mesmo tempo, quer dizer, de uma maneira simultânea e sucessiva. Isto dá uma densidade inaugural à obra, mas a torna extremamente difícil, porque exige uma longa e paciente caminhada de encontro com o outro e do encontro consigo mesmo, como escuta da fala do mesmo. Este mesmo é o “além”? Vai depender da escuta das falas que em cada um falam:

Na alquimia da imponderável transmutação,
Onde Rei e Rainha se espelham,
Unem-se dois na unidade do elo ele e ela.
(Estação 48)

O mesmo, o “além”, reúne não apenas eu e tu, Princesa e Infante, masculino e feminino, Rei e Rainha, mas o humano do homem. Então nessa Princesa e nesse Infante, estamos eu, você leitor, poeta, enfim, todos nós. E não apenas nós, hoje, vivos. Não. Na obra enquanto memória poética é o humano do homem que comparece, o humano da aventura, desventura e ventura humana. Se o leitor auscultar em todas as falas e nas nomeações pronominais essa procura do humano, o longo poema se manifesta numa simultaneidade de diferenças pessoais, culturais, temporais, históricas. Implicitamente, o humano se constitui nos multifacetados diálogos, porque estes são a poesia se fazendo memória poética. Nesta perspectiva, o humano é o poético da memória que cada um realiza na sua caminhada e destino. E, como memória poética, são os diálogos, enquanto obra de arte, que nos conduzem, em nossas caminhadas, ao próprio, isto é, ao mesmo, de animus e anima, de diferença e identidade, de proximidade e distância, de verdade e não-verdade, de sou e não-sou. O humano se torna obra-de-arte porque se deixa atravessar e possuir no e pelo diálogo. Cada um chegado à “unidade do elo ele e ela” (Estação 48), de sou e não-sou

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 48)

A “folha em branco do livro” é o “além”?
As múltiplas dificuldades que surgem na leitura se tornam para o leitor um desafio de, fazendo uma leitura de dentro de si, acordando o que está adormecido, percorrer a sua via sacra enquanto demanda do sagrado, do “além”.
A obra como um todo se constitui um grande círculo, onde o começo é o fim e o fim é o começo, unindo o Prólogo e a última Estação:

Agora é o começo,
de que começo é agora?
(Prólogo)

Alfa eÔmega recomeçam o incessante começar
Que não tem começo nem fim.
(Estação 48)

Imagine o leitor em grande vitral circular onde do centro partem quarenta e oito raios: são as Estações. Estas, na unidade do círculo, se entre-irradiam, compondo um vivo, poético e abismal vitral. Temos aí a sucessividade e simultaneidade, o mesmo no círculo do Alfa e no do Ômega. No entre-circular estão os Caminhos de quando e além. Lançados nesse “entre”, temos que cumprir nossos destinos. É um destino que se dá no entre enquanto caminhada de travessia.

Enquanto escreves, dormes, enquanto dormes, caminhas,
enquanto caminhas, vives e revives mortes e martírios,
idas e vindas de vidas idas e esquecidas.
(Estação 35)

Mas em cada um acontece o círculo:

Buscais tesouros imersos em alguma Atlântida ignorada,
quando tudo gira ao redor de vossa coluna vertebral
e no quadrado de vossos olhos e mãos.
(Estação 26)

A forma nada diz se o silêncio não fingir a figura e ditar a voz. É neste entre silêncio e fala que se dá a obra.

Entre o sono e o sonho / entre mim e o que em mim /
é o quem eu me suponho, / corre um rio sem fim.
(Estação 32, 38)

Por isso, a obra opera a partir do entre enquanto diálogo e espelho:

Na alquimia da imponderável transmutação,
onde Rei e Rainha se espelham...
(Estação 48)

Mas esse “Rei e Rainha” são o animus e a anima, a identidade e a diferença. Por isso, o realizar os diálogos é proceder ao espelhar-se pelo qual chegamos à unidade do mesmo. Ao lado da questão do destino, talvez a questão do espelho seja igualmente a mais permanente e profunda. Mas esta questão não é só desta obra, mas da poética de Helena Parente Cunha. Lembre-se apenas sua obra Mulher no espelho. O espelho não é algo ao lado da mulher, é um entre que caminha tanto mais para ela quanto mais adentra o homem, ou nas palavras de Helena, tanto mais é anima quanto mais é animus. É a permanente diferença procurando a identidade. Nesse sentido, a leitura atenta das Estações nos mostraria um mergulhar poético-abismal de busca de luz do que na mulher é mulher, pois Helena é uma sensível escuta do que nela é mulher. Não mulher gênero, algo genérico. Mas o humano da mulher, porque toda mulher é mulher do e no humano. E o humano é humano enquanto demanda do poético-sagrado. E trazer “isso” para a linguagem, para a poesia é o grande desafio de sua poética. Não será esta a via sacra desta obra nas 48 Estações? Não será “esta” a sua via sacra, a demanda do sagrado enquanto poesia e da poesia enquanto o humano do homem, o “além”?

Manuel Antônio de Castro

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