14 março 2008

Poemas do originário




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(Apresentação do livro de Diogo Pereira"Entreteias")


Este é o primeiro livro de poemas de Diego Braga. Como apresentá-lo? Interessará ao leitor algo da sua vida? Fará isso diferença? Certamente não. Sem dúvida nenhuma, o melhor cartão de apresentação é a própria obra. Afinal, é esta que interessa a quem compra o livro ou o escolhe para ler. Mas de uma coisa já gostaria de alertar o leitor, ao ler acima primeiro livro de poemas não se engane. Não significa aí inexperiência, aquelas primeiras produções dos impulsos e arroubos subjetivos, as impressões diante de prometidas visitas e envolvimentos das musas. Pois muitos são os chamados, assim pensam, e poucos os escolhidos, porque mais que pensar, estes, são pensados.
É natural que o amadurecimento corporal leve a envolvimentos afetivos nem sempre realizados e, num movimento misterioso, procure o seu lugar de equilíbrio, entre o que se deseja e o que se obtém, na palavra. De certo, a palavra tem este poder, mas ela é ambígua e dissimulada. É próprio do seu poder nos jogar nesse entre o que desejamos como realidade afetiva e subjetiva, e o que em nós é mais do que sentimentos ou desencontros. Ou até desejos de glória, esse não poder da imortalidade vazia e inócua, esse desafio da efemeridade. É no jogo dessa ambigüidade e dissimulação que surge o envolvimento retórico. E como saber quando não é simples retórica como jogo? Simplesmente deixando a palavra ser verbo e poiesis. Então é necessário que nos deixemos atravessar pelo que somos e queremos ser.
O apelo de sermos e querermos ser é sempre um apelo primeiro, inaugural. E é neste sentido que os poemas de Diego Braga são poemas de um primeiro livro. Porque são poemas que se movem no elemento das questões de um tempo primordial. Como o leitor poderá ver claramente são questões tão primordiais que se fazem presentes no mais prosaico e trivial de nosso cotidiano.
Tenha aqui o leitor a curiosidade de ler logo o penúltimo poema, sintomaticamente versando sobre o diário. Que é um diário senão as impressões e acontecências de um aparente tempo que é sempre novo e, ao mesmo tempo, repetido, cansativo, intransitivo, solitariamente refletido e experienciado? Será? Como Diego pensa o diário?
Com esta pergunta peço ao leitor que pare aqui mesmo de ler esta apresentação e comece a ler os poemas. Pode a minha apresentação ser melhor que os próprios poemas? Não pode, porque não tem outra pretensão senão ser uma apresentação. E a melhor apresentação é aquela que surge e acontece no diálogo da leitura. Mas se continuar a ler, fique logo alertado que o diálogo só se dará quando se abrir para o quê no diálogo com os poemas é evocado, chamado a se fazer presente. Deixe então os lugares-comuns, as idéias feitas, as palavras do dia-a-dia, comunicativas e vazias de sentido, porque dialogar não é comunicar o já pensado e dito. É bem mais. É deixar acontecer o silêncio. Não procure nestes poemas a confirmação do que já sabe e que de tantos modos já lhe foi informado. Abra sua mente, seu coração. Pense. Escute o silêncio e aceite a sua provocação. Pense. Deixe-se atravessar pelo que de mais profundo há em si mesmo, leitor, esse apelo inaugural que teima em chamá-lo em cada um dos poemas deste livro primeiro. E então esqueça o nome do autor. Envolva-se todo pelo que já desde que nascemos nos envolve: a teia silenciosa e maravilhosa da vida em suas manifestações sempre belas e envolventes. E o nome do autor não vale nada? Já disse Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: Nome não dá, recebe. Mas em outra passagem de sua obra-prima diz também: O que é para ser, são as palavras. Neste livro primeiro de Diego Braga, o que é para ser, são as palavras, os poemas. E há motivo maior para o leiro ir direto para os poemas? Ler poesia não é para ser?, isto que em cada um de nós é o que já desde sempre nos é próprio. E se o próprio é o ser, ele é sempre o primeiro.
Os poemas de Diego Braga todos tratam do que é primeiro: as questões. Outra qualidade evidente em seu Entreteias é que, de fato, há um entretecer dialogal com as obras de grandes poetas de todos os tempos. Isto talvez seja, num primeiro instante, um empecilho para os leitores apressados, neste tempo de produções em proporções geométricas, mais repetições que produções inaugurais. Mas se o leitor quer a polpa das frutas que são estes seus poemas, vai ser necessário um outro diálogo, aquele que fundou o que aqui se fez poesia. Seus poemas se constituem criativamente num profundo mergulho dialogal com mitos e culturas de múltiplos tempos e povos. Quem sabe se uma alusão não se torna o curioso levantar de um véu de desvelamento de outros poemas, de outros poetas. E assim o diálogo não só se torna o convite envolvente para a leitura de seus poemas, mas também, com o diálogo com outros poetas, a certeza de que a criação é sempre um diálogo com a memória. Não que esta seja coisa afetiva ou lembrança do passado. Unindo terra e céu, ela se torna a mãe matriz e nutriz da criação em cada um de nós. São as Entreteias.
Entre outros, detenha-se o leitor em estado de espera silenciosa e deixe emergir o que aí imemorialmente nos fala na fala do último poema, o canto trinta e quatro. Quem aí não retoma imediatamente o pensamento poético de Heráclito? Mas de novas vestes, tão novas que convida o leitor a um pensar a vida como um acontecer onde se seja o que acontece. O tempo, o rio, a permanência, a mudança: sempre o mesmo sem serem a mesma coisa, porque têm de ser nossos. Sempre a ambigüidade do mesmo, aparentando mesmice.
Já o canto três nos joga no jogo da transitoriedade, onde sobressai o que nem sempre compreendemos: ser transitório, mas diferente, diverso e, mais, há sempre um entre que persiste na referência de ser e dizer. Eis aí a poesia.
A poiesis é fundamentalmente lúdica, mas de uma seriedade que clama pelo brilho e alegria da plenitude. Como não ver ludismo e seriedade poética no canto seis, onde se fala nada e se diz tudo? E talvez, nós, eu e você leitor, não passemos de um palhaço no circo, sempre já solicitados a dar o salto mortal.
Um poema é energia concentrada, se é poético. E dependendo do momento, da disposição, dos estados de alma, um verso, uma palavra, uma imagem, começa a nos invadir, adentrando, tomando posse, e, possuídos, não mais temos posse do que somos, transformados no que de poema se faz nova realidade em nós, para sermos o que não somos: “Frio é o silêncio que não incomoda” (canto dez). Quanto calafrio e calor nesse único verso! Ou quem sabe, leitor, é apenas a minha disposição anímica, meu pathos?
Diante do que pode ser dito e pensado e visto e vivido e sofrido e fruído e poetizado, nasce no poeta a sensação de insignificância no embate com as palavras, com o discursivo, para adentrar na simplicidade do de dentro, do “vento entre as ervas”, o denso, do que no entre de cada nome se joga, anunciando, no livre aberto, que a poesia liberta:

A imensidão inaugura inocente
a minha insignificância de poeta,
o meu sentido aqui,
quando o vento entre as ervas.

Liberdade: vou voando livre ouvindo aves.
(canto nove)

No manifestar a liberdade, o poeta experiencia e provoca a experienciar a tensão entre o aqui e agora na sua cotidianeidade, e o apelo do que no ordinário se mostra extra-ordinário.
A liberdade lembra amor, esse enigma sempre claro, imediato, palpável e fugidio. Não será, por isso mesmo, um entre?

O entre e o depois de lembrar.
(canto vinte e quatro)

É o que nos convida a pensar Diego Braga. Já no canto trinta, o seu final traz para nós a surpresa, o a-se-pensar, o desacostumar do costumeiro, que por ser verdadeiro nem mais se surpreende a sua não-verdade.
Os poemas de Diego Braga constituem uma voz poética diferente, inesperada, assim posso dizer ao leitor como provocação ao diálogo, esperando que outros diálogos se inaugurem, porque, em escuta do imemorial, surgem em vestes alegres e novas, e em vozes tristes e dolorosas as sempre mesmas questões. Sedentos e jamais dessendentados caminhamos no entre-mapa a estrada da fonte (canto vinte e oito), da verdade (canto trinta e um). Palavras poéticas acordam em nós verdades tão sediças, presentes, cotidianas, que na trivialidade da repetição são como não-verdades às quais não devemos ouvir e – sabe-se – às quais um dia devemos prestar contas. Não como um juízo que um dia virá, mas como um juízo que a toda hora já está vindo, e por isso mesmo o lindo do extraordinário no ordinário não é lindo, não é. Mas é. É o que Entreteias nos faz lembrar.

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