14 maio 2007

Poético-ecologia






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Ecologia é uma questão. A questão é maior do que o homem. No questionar não é o homem que questiona. É a questão que nos questiona. Para questionar é preciso dialogar. O diálogo é uma questão. No dialogar não é o homem que dialoga. É o logos que nos dialoga. Por isso, ao dialogar com vocês e com a questão da ecologia eu lhes peço que não se prendam ao que vai sendo desenvolvido, mas àquilo que como questão exige de mim e de vocês uma escuta de caminhada.
A ecologia é uma questão. Não qualquer questão, mas a questão que exige de nós posições cada vez mais imediatas e fundamentais. Tomar posição é decidir guiados pelo agir. Agir no sentido fundamental se diz originária e criativamente poietizar. E então me perguntei como dialogar com a ecologia a partir do poietizar, do criar, isto é, da poética. É que no começo era o poietizar.
Então a questão é: como trazer para vocês a questão da ecologia do ponto de vista da poética? Poderia simplesmente dar o título: Poética e ecologia. Com isso já indicaria que ambas podem ser tratadas separadamente e depois serem reunidas através de algumas afinidades ou características. Mas a questão para mim é: Será que pode haver ecologia que não seja poética ou poética que não seja ecologia? Então não há como separar poética e ecologia e, portanto, impossível tratá-las separadamente. Uma outra alternativa seria fazer da ecologia uma dimensão da poética, falando para vocês de uma poética ecológica, onde a ecologia seria reduzida a uma possível poética entre outras poéticas. Neste horizonte classificatório, poder-se-ia falar em genética ecológica, literatura ecológica etc. Com isso a ecologia passaria a ser simplesmente uma qualidade, um acidente, uma dimensão aplicável a diferentes disciplinas. É o que se faz frequentemente. Dessa maneira, a ecologia perde a sua densidade inaugural. A ecologia é uma questão que jamais pode ser reduzida a uma disciplina. Uma tal redução pode ser perigosa para a ecologia, para nós. Não podemos esquecer nunca: a ecologia é uma questão.
Um outro caminho então seria falar da ecologia poética. Com isso se preservaria a ecologia, que passaria a ser vista em suas qualidades ou dimensões poéticas. Acontece que a Poética é a questão das questões, porque na medida em que diz respeito ao poietizar, ao criar, nada, absolutamente nada se faz se não for no e pelo vigor do criar, do poietizar. Esta palavra formada do verbo grego poiein, diz simplesmente o agir e sua energia, pela qual tudo se cria, se produz, se faz manifestação, acontece. A própria ecologia para chegar a ser ecologia já se deve mover no próprio vigorar da poética. Esse vigor é uma energia tão primordial e misteriosa que é mais fundamental e maior do que as quatro energias com que a física hoje trabalha. É uma energia tão excepcional e poderosa que não há teoria física que possa calculá-la, medi-la, classificá-la. No entanto, é uma energia tão concreta que percorre e densifica todas as instâncias da realidade. A energia poética é a essência de todo agir e o sentido de todo fazer e até do não agir e do não fazer, do ser e do não-ser. Enfim, é a realidade de todas as realizações.
Como sair do impasse? Pensemos, diferenciemos, dialoguemos. Se formos em nossa compreensão da ecologia além do estudo da natureza e de sua preservação, do estudo dos ecossistemas e seu equilíbrio, que fazem da ecologia uma disciplina, teremos que nos abrir para o fundamento originário da ecologia. Se atentarmos para as palavras gregas que deram origem à formação da palavra ecologia, chegaremos a uma primeira compreensão complexa. “Eco” vem do substantivo “oikia”, que significa morada. “Logia” vem da complexíssima palavra “Logos”. O entendimento da ecologia como o estudo e a preservação do meio natural – em geral o conceito veiculado – decorre da dicotomia metafísica e moderna pela qual se operam as separações das diferentes instâncias da realidade. No caso presente, é a separação entre natureza e cultura. Isso é falso e prejudicial ao entendimento e alcance da ecologia. Temos de ver isso seriamente. Se tomarmos ao pé da letra a formação da palavra ecologia, a partir das palavras gregas, diremos, com propriedade, que ecologia é a morada da linguagem.
O que é isto – a morada? O que é isto – a linguagem? Ao invés de uma, agora estamos envolvidos com duas questões. Pensemos poeticamente. Dialoguemos. Quando o diálogo é tomado em sua essência, devemos sair do âmbito superficial do ciclo da comunicação e nos perguntarmos pelo logos de todo diá-logo. No diálogo e na ecologia já temos uma base comum: o logos, a linguagem. Porém, a linguagem como apelo do mesmo nos é ofertado no poietizar dos poetas, nas obras poéticas. Então se quisermos saber o que é ecologia devemos necessariamente nos voltarmos para as obras poéticas, morada da linguagem, afastando de nossa mente a dicotomia moderna pela qual se opõe natureza e cultura.
Dialogar com a ecologia enquanto questão é escutar as obras poéticas. É um desafio. Estão dispostos a fazê-lo? Para mim é o único caminho. Vamos lá. Quais obras poéticas escolher? Todas as obras poéticas, inclusive os mitos, são poético-ecologia.
Cada um de nós, Entre-ser entre seres, jogados no não-limite e limite da liminaridade, precisamos escolher. Começo por e com Grande sertão: veredas. Esta obra, junto com a de Caeiro, é o mais originário diálogo poético-ecológico. Diadorim é a imagem-questão mais poético-ecológica, para mim, das obras de arte das culturas de língua portuguesa. Mas não vou falar dela, com ela/ele, a encoberta. Escolhi um pequeno evento-questão, meio perdido nas vagas erótico-amorosas que constituem o romance de Rosa.
Num pobre barraco, uma mulher paupérrima não consegue dar à luz e chamam Riobaldo. “E era noite de luar... A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores” (Rosa, 1968: 353). Mulher, cada mulher que agora me escuta e que um dia poderá dar à luz, noite de luar, chão, olhos que alumiam de parvor e dor, o que isto tem a ver com poético-ecologia, com corpo, mundo e terra? Pergunto eu a vocês. Mas continua Riobaldo: “Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar...” E saí para as luas” (Rosa, 1968: 353).
Na língua roseana, Senhora e Dona vêm com maiúscula. Isto quer dizer que, enquanto imagem-questão, trata-se de toda mulher-mãe. Os elementos que a citação nos oferece já nos jogam na ampla questão da ecologia. Quais são eles? Noite de luar, terra, mulher-corpo, dor, olhar, nascer, menino, mundo. Neste momento, a Senhora Dona não é uma mulher, um ente que se opõe a homem ou a qualquer outro ente. Não. Mulher nesse instante originário concentra em si tempo, noite, lua, terra, vida, corpo, menino, enquanto este dela provém e preso a ela, como o rio está preso à fonte e, no entanto, o menino é diferente. Se quisermos saber o que é terra e corpo teremos que saber o que é mulher enquanto lua, terra, vida, mãe-fonte, menino. No momento do parto, a physis, isto é, a natureza se densifica e presentifica como e na mulher. É o que Rosa nos diz. É o que a arte manifesta. Arte, toda arte é corpo e terra, e jamais símbolo de não se sabe bem o quê. Mas escutemos a arte. Há o momento enigmático, extraordinário, poeticamente sintetizado em duas orações: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu...”. Tudo isto é ainda a natureza, a physis como dizem os gregos, na sua mais densa presença e atuação poética. Continua Rosa: “... o mundo tornou a começar...”. Mundo, o que é isto – o mundo? Mais: Como ao nascer o menino o mundo torna a começar? O que entender aí, concretamente, por tempo, por princípio, por começo? Qual a relação entre mundo e principiar? Qual a relação entre mundo e o nascimento de um ser humano? Será que sabemos o que é mundo? Quando eu, vocês, cada um de nós nascemos, o mundo torna a principiar. A natureza-mulher-corpo manifestando-se e dando-se em cada criança, o mundo torna a começar. Como separar aqui e realmente – a não ser conceitual e abstratamente – natureza e cultura, corpo-terra e mundo? Impossível. A poético-ecologia é esta reunião. Diante dos múltiplos conceitos de mundo, Rosa nos lança no âmago da questão, pois temos que perguntar: O que é isto – terra, corpo e mundo? Devemos suspender todos os adjetivos com que qualificamos mundo: mundo isto, mundo aquilo, para nos determos concreta e unicamente no que é isto – o mundo? Como saber o que é mundo social, medieval, religioso etc. se não sabemos o que é mundo? Se o mundo torna a nascer com a criança, toda criança quando nasce nasce com o mundo, assim como o mundo nasce com a criança. Poderemos ter mundo sem ser humano? Criança como criança é sempre originária. Mundo como mundo é sempre originária da terra-mãe-mulher-corpo-criança. Por que a criança, que é sempre originária, seria também mundo originário? A criança nascendo o mundo torna a começar, nos afirma a arte. Para o mundo recomeçar é necessário o engendrar a criança. A mulher para engravidar nela aconteceu um pacto de amor, isto é, ela foi tomada e possuída por eros. Tanto a mulher como o homem foram tomados, deixaram-se atravessar por eros. Não podemos compreender esse deixar-se possuir por eros de pacto amoroso? Em Grande sertão: veredas o pacto é esse deixar-se tomar por eros. Por isso, a energia poética só é poética porque é a energia de eros.
Se ecologia é a morada da linguagem e linguagem é o mundo enquanto morada, e o mundo torna a começar com o nascimento da criança, então na criança, para ser criança, se fazem presentes eros, a energia poética e a linguagem, enquanto mundo. Mundo é a reunião desse todo, na abertura da linguagem. A criança é poético-ecologia porque nela acontece eros e linguagem ou mundo. Poético-ecologia é amor. O que é isto o amor – para que nele aconteça a reunião de opostos? No amor, para além da distância, vigora a proximidade.
Auscultemos um mito – a palavra poética originária -, o mito de eros. Eros é a imagem-questão do amor. Todo mito é a oferta das questões em imagens-questões e figuras. Os mitos têm muitas versões porque o real se manifesta de muitas maneiras. Até a física chegou à conclusão de que só pode ser física da complexidade. Claro, a physis, ou natureza, é e será sempre questão. A physis é mais do que a física.
O mundo, segundo a cosmogonia, provém do Caos e da Noite. Esta põe um ovo, de que nasce Eros. Das duas metades da casca partida formam-se o Céu e a Terra. O ovo branco, a lua branca no ventre da Noite, traz em si Eros, o Céu e a Terra. Eros nascendo é a própria energia erótica da criação, da criança nascendo com a cisão de Céu e Terra, ou seja, da mulher que movida pelo vigor poético de eros se cinde na dor do parto como Céu e Terra, para deixar vir à luz a criança, o mundo que começa e recomeça ininterruptamente. Não é o parto que causa a dor. A dor é o uno se fazendo diversidade, a mulher se fazendo diferença do eu que é ela e do tu que é seu filho. Aqui há diferença e identidade. Mas se voltarmos agora a Rosa, veremos que essa diferença e identidade traz já em si o diá-logo, pois o nascer traz em si o mundo. E mundo é logos, é linguagem. O diá-logo originariamente é o um concretizado no corpo-mulher de Céu e Terra e, ao mesmo tempo, se manifestando como multiplicidade, o fundamento do social, o eu da mulher-corpo e o filho-criança que é e não é a mãe. Por isso, todo diá-logo é a reunião de diferenças na identidade do corpo-mundo. Mas vejamos a maravilha: a mulher-corpo-mãe só chega a ser-mulher-mãe enquanto identidade no se diferenciar do filho que é ela e não é ela. Mundo e corpo é isso: reunião identitária de diferenças. Por isso o auto-diálogo como eros-corpo-mulher exige o hétero-diálogo-corpo, isto é, o outro. É o que podemos chamar o corpo-mundo-social. Portanto, a ecologia como a casa da linguagem exige radicalmente o corpo-Terra-Céu-mundo originário de eros. Isso é o poético. Eros é o poético. O poético, sendo eros, é a energia que cinde, é a dor paixão. Por isso a obra de arte é mundo porque é eros e é eros porque é mundo. Não podemos reduzir de modo algum a obra de arte a formas de linguagem. Obra de arte é corpo-mundo enquanto reunião das diferenças de Céu e Terra, de Homem e Mulher.
Eros é dor. O que é isto – a dor? O mito de Eros nos leva à tentativa de compreender o nascimento da criança, mas ainda não nos torna clara a adveniência da ecologia enquanto a casa da linguagemm A casa é a mulher-terra-céu. E a linguagem?
Uma questão traz em si outras questões. Por isso temos agora que nos voltar para um outro mito que não só nos tematize o que é isto – a dor?, mas que também nos conduza à questão da linguagem em tensão com a dor, com eros. É neste horizonte que poderemos tentar compreender a questão da linguagem e assim penetraremos um pouco na afirmação poética de Grande sertão: veredas: “...Um menino nasceu, o mundo tornou a começar”. Tentar entender o que é o mundo é empreender uma caminhada de compreensão do que é isto a dor, de que é isto a linguagem. O que a dor tem a ver com a linguagem? O que a dor e a linguagem têm a ver com o mundo? Só então seremos tomados pela ecologia. Mais, bem mais: pela poético-ecologia. Essas questões comparecem no Mito de Cura.

MITO DE CURA OU CUIDADO
Gaius Julius Hyginus
(Tradução: Prof. Dr. Carlos Tannus)
Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura.
Enquanto meditava no que já fizera, Jove interveio. Cura pede-lhe, então, que lhe infunda um espírito (ao que acabara de moldar) e facilmente o consegue.
Como Cura quisesse impor-lhe por si própria um nome, Jove proibiu-lho, insistindo em que ele deveria dar-lhe seu próprio nome.
Enquanto Cura e Jove discutem, ergue-se ao mesmo tempo a Terra, querendo dar-lhe seu próprio nome, já que lhe fornecera o corpo.
Tomaram a Saturno como juiz, e este busca ser equânime: “Tu, Jove, porque lhe deste o espírito, recebê-lo-ás após a morte. Quanto a ti, Terra, porque lhe deste o corpo, então o receberás. E Cura, porque primeiro lhe deu figura, mantê-lo-á durante todo o tempo em que ele viver.
Mas, porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem porque parece ter sido feito do húmus.”

Que questões o mito nos traz para serem pensadas? Notemos de imediato, no mito, algumas figuras-questões fundamentais: Cura, Céu, Terra, Tempo, Linguagem, Homem, Morte. Elas retomam as imagens-questões do mito de Eros, acrescidas agora de outras. Num paralelismo, vamos ter: Eros é a própria Cura enquanto vigor de toda procura. Cura é uma palavra latina com dois sentidos fundamentais: o cuidado e o curar ou sanar. Igualmente temos Céu e Terra. Podemos também identificar o Caos e a Noite primordiais com o próprio Tempo. Mas além dessas questões vamos ter o ser humano enquanto linguagem e morte. Uma questão fundamental é saber até onde todos os seres vivos se experienciam no âmbito da Cura, da Linguagem e da Morte, e isso é decisivo para a poético-ecologia. O pouco tempo, certamente, não me permitirá este aprofundamento.
No mito de Cura, temos a plena poético-ecologia. Para isso é necessário aprofundar as questões. No mito órfico, Eros nasce de um ovo originário, que tem em si numa unidade: eros, céu e Terra. E Eros se torna o vigor de todo nascer. Ele é o genus da vida. Esta palavra latina se forma do verbo guigno, nascer. É um nascer ambíguo, porque, de um lado, o ovo provém da Noite, mas não nasce da Noite. Eros nasce do ovo que a Noite põe. A Noite é o Tempo. Não nascemos do tempo, nascemos e somos postos no tempo. O nascer, o aparecer e manifestar-se pressupõe o tempo como clareira de abertura para o aparecimento. O que é isto o tempo enquanto clareira? É o dar-se e retrair-se do ser, de que nos fala o fragmento 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei: a nascividade excessiva apropria-se no velar-se. Há um duplo apropriar-se: aquele que consiste no e provém do genos, e aquele que é mais complexo e profundo e originário: o que nos lança no abissal apropriar-se enquanto no sermos rio provindo da fonte desaguamos necessariamente no mar. É o apropriar-se que, para além da vida vivida enquanto manifestação do genos de cada um, acontece em nós como travessia de experienciação de procura e cura da nossa proveniência: o apropriar-se do que nos é próprio, ou seja, o que em nós como vida ama velar-se, ama o retrair-se, ama o silêncio, ama a plenitude do que somos como o nada de todo ser. A dor originária é amor paixão porque ama apropriar-se dessa unidade primordial enquanto afirmação da identidade na dor da diferença.
Voltemos aos mitos. A Noite aparece no mtio de Eros, mas não no mito de Cura, embora não possa haver Cura sem eros. Já a morte aparece no mito de Cura e não em Eros. Mas só a Lua aparece em Rosa. Do ovo nasce Eros, mas também o Céu e a Terra (homem e mulher, identificados e diferentes). E Cura? Não nasce. Cura, como o ovo foi posto e está no Tempo, que é o abismo da Vida e da Morte. É por isso que o tempo foi eleito o juiz para dirimir a disputa de Cura, Céu e Terra. Ele os precede e sucede. O ovo contém o princípio do nascer, o genos, de onde se forma a nossa palavra genética. Nos mitos temos a reflexão originária sobre a genética. O princípio da genética é o código genético. O que é um código? Segundo a gramática e a lingüística, o código não é a linguagem estruturada potencialmente? E qual era a disputa de Cura, Céu e Terra? A linguagem. Mas antes de desenvolvermos esta questão, completemos nossa reflexão de compreensão do nascer, pois o nascer, nas palavras de Rosa, é a questão originária do próprio mundo, e com o mito de Cura do próprio corpo. Não esqueçamos que Eros nasce de um cindir, a dor poético-ontológica. Por isso, é esta dor que é figurada na imagem-questão Cura, tematizada no mito de Cura. O mito já nos fala de Cura jogada no tempo. Diz: “Enquanto caminhava através do rio, Cura vê uma lama argilosa...”. Só porque já está no tempo transitando através do rio da vida é que pode ver a lama argilosa. Portanto, nem Eros nem Cura criam o homem. Este é figurado essencialmente por Cura e esta nasce de Eros, a dor que unindo cinde para criar. Por isso, a essência de Cura será tanto o cuidado quanto a dor, o cuidar quanto o curar. Estes é que figuram o homem, pois diz o mito: “Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura”. Eros e Cura são poéticos, porque dão figura ao homem. Mas é um dar figura ambíguo. Por isso, diz Fernando Pessoa em Autopsicografia:
O poeta é um fingidor.
Esse fingidor nada tem a ver com mentir ou ser falso. O dar figura do fingidor diz respeito ao fazer aparecer, ao desvelar. E nisso consiste a verdade, a verdade de cada um advém no que aparecendo parece o que é. Então esse parecer é ambíguo. Por quê? Continua o poema:
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
É que a figura que Eros e Cura figuram ainda não está completa. Somos feitos por Eros e Cura a partir da Terra, mas falta o Céu, o sopro da vida, o calor que faz eclodir. Cura pede a intervenção do Céu e nasce algo que ainda não tem nome. Sem linguagem não há homem, não há mundo. Temos no mito de Cura a presença dos elementos originários: água, terra, ar e fogo. Depois que o Céu infunde a psique surge a disputa porque algo ainda falta ao ser humano: o nomear. Que é isto - o nomear? É o ser humano tornar-se ecológico, isto é, dimensionar-se na e como habitante da linguagem. É nisso que consiste o nomear. Não bastam Céu, Terra. É necessário o nomear. Este é algo misterioso e provém de quem? Da sentença, do decisão do tempo. Temos no ser humano duas decisões, dois cindires: o de Eros, o da dor como princípio e o tempo. Que cindir é este? O Tempo dá a sentença tendo em vista o outro cindir: o da morte. Este não é separado do anterior. A dor como pathos, como paixão percorre o entre vida e morte. E é nesse entre que se decide a poético-ecologia. Que sentença profere o tempo, o tempo no qual cada um de nós está jogado? Tendo como horizonte a morte, e não é este o nosso horizonte?, decide: O céu recebe o espírito, a terra recebe o corpo. E Cura? Seremos propriedade de Cura enquanto vivermos, isto é, no entre céu e terra e no entre nascer e morrer, no entre princípio e fim. Esse entre é complexo, pois, como veremos nos desdobramos em três fins, em três telos, usando a palavra grega para fim enquanto sentido. Como nascemos da dor originária de Eros, a paixão de vida e morte, nosso viver será regido por Cura, dentro da qual nos desdobramos nos três fins, nos três cuidados. Mas que entre vida e morte, princípio e fim será esse? O nosso viver enquanto ser nome, habitar a morada da linguagem, ser ecologia. Porém, como triplo projeto de Cura, teremos que ser um uno e triplo poietizar. Por que o nomear nos remete para o habitar a morada da linguagem? Porque no nomear experienciamos a vida enquanto linguagem, a linguagem que reúne Dor/Cura enquanto cuidar e curar. A essa reunião é que chamamos mundo. E o homem que dela resulta é o homem humano, isto é, corpo. É por isso que Rosa pode afirmar que, o menino nascendo, o mundo torna a começar. Ao corpo enquanto esta reunião é que o tempo dá o nome de homem. Mas não há uma contradição na minha leitura ao denominar corpo o homem enquanto a reunião de Cura e Linguagem como mundo? Não diz o mito que, ao morrer, o céu recebe o espírito e a terra, o corpo? Aqui a palavra corpo não pode ser confundida com o corpo-terra. O mito é bem claro no final ao afirmar: “Mas, porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem porque parece ter sido feito do húmus.” Parece ser feito de húmus, mas não é. Só numa leitura metafísica é que opomos parecer e ser, aparência e essência, espírito e corpo-matéria. O corpo de que o mito fala é o corpo-mundo. Hoje, a genética pode nos ajudar, pois eros é a energia de todo genos, portanto, da genética.
A travessia e os três telos
Ao nascermos já trazemos em nós, necessariamente, um fim para o qual tendemos no nosso viver. Só que podemos falar de três fins em nossa vida. Mas fim é uma palavra ambígua que se pode prestar a grandes equívocos. Tentemos pensar. Fim é uma tradução da palavra grega “telos”. Não podemos pensar o telos sem nos voltarmos para Eros, a energia originária, ou seja, eros é a essência do agir. O que é ação? Aristóteles já disse que “em toda ação vive um empenho por algum bem” (Apud: LEÃO, 1992: 156).

A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, to telos, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir telos por meta, fim, finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação (Leão, 1992: 156).

Toda ação traz, pois, em si não só o vigor do que é mas também no telos, no tender a uma plenitude, um desdobrar-se no como é. O que é no como é é o desdobramento da Cura nas procuras. Porém, podemos falar de três procuras fundamentais, de três telos, de três sentidos. Eles em si não são separados, devem-se se integrar na poético-ecologia.

1º. A vida como “unidade” e seu telos

Hoje, a biologia considera cada ser vivo como uma “unidade”. As descobertas mais recentes trouxeram uma nova visão do ser vivo. Ele não é mecânico nem o produto de um meio. Pelo contrário, em cada “unidade” há um código genético comum a outros seres vivos da mesma espécie e, ao mesmo tempo, totalmente único. Por tradição, só damos nomes diferentes aos seres humanos, para marcar a sua singularidade, mas, de fato, cada ser vivente, cada “unidade” também deveria ter um nome único. Só homem nomeia, mas quem convive com um animal e até com plantas sabe como eles são únicos, daí darmos nomes que os identificam, isto é, que mostram sua identidade como diferença na uniformidade conceitual da espécie. Em seu meio e em relação à espécie de que participar mais diretamente, cada “unidade”, na medida em que vive, também age e, nesta ação, se empenha por um bem. Ou seja, cada ser vivo tem também um telos, um sentido. Para expressarem a realização deste telos, os biólogos passaram a falar em auto-poiese. São duas palavras gregas que dizem que há um fazer próprio, criativo, novo, diferente. Mas uma tal autopoiese apenas realiza o que já está dado no código genético. Ele já contém em si o seu telos, o seu bem e seu sentido. Constituir-se como bem e sentido não é isto o que tradicionalmente se diz mundo e linguagem? Tanto isto é verdade que se diz que cada ser vivo é constituído por seu código genético. A palavra código provém de um modo lingüístico de entender a linguagem. É o código genético linguagem? O que é linguagem? Como saber o que é língua e seu código sem saber o que é linguagem?
2º. Telos: o ser humano e a moira enquanto razão
O traço fundamental da Modernidade é a fundação do ser humano como sujeito, enquanto este sujeito é o exercício da razão. Ao se construir e ao construir racionalmente a realidade, fundando as ciências, algo imemorial no ser humano foi confrontado: a sua memória mítica. A compreensão do ser humano a partir dos mitos foi considerada i-lógica, frente à concepção lógica (racional). Note-se que aí se julga a memória mítica de fora do seu âmbito de constituição. O mito é julgado e descartado a partir do logos, reduzido à razão. E o mito sempre falou do ser humano como pertencente a um genos (de onde se forma a palavra moderna genética). Indicava uma família, um gênero (formada também de genos), uma etnia. Como família tinha algo em comum, o genos, mas cada um dentro desse genos recebia um quinhão, a sua “cota” no genos da família. O nome para esse quinhão foi e é: Moira. A tradução mais tradicional não é quinhão, mas destino. Pensa-se que destino é o que a razão, fonte do livre agir do ser humano, não podia determinar nem controlar. Pela visão racionalista, o destino se opõe à liberdade humana. No existir o ser humano deve-se dar livremente a sua essência, o seu genos enquanto seu quinhão. Nessa visão, a existência precede e determina a essência. O existir enquanto o como é deve determinar livremente o que é. O homem não tem um destino, dá-se um destino. Esta foi a utopia moderna, esquecida dos ensinamentos do mito de Édipo. Cada autopoiese é uma “unidade”, uma singularidade. O como é da autopoiese não é diferente d”o que é” enquanto código genético. O impropriamente chamado código genético é o possível enquanto possibilidade. Assim como há mundo e linguagem em cada autopoiese também há, de certo, uma certa liberdade, liberdade esta inerente ao código genético e não a um livre agir em relação a seu código. Noutros termos, em certo sentido, podemos dizer que cada unidade tem uma moira, um destino. Então a questão é: O que a caminhada de Édipo traz em sua tentativa de fugir do destino que o código genético como é entendido até agora não dá? Ou seja: O que na caminhada Édipo realizou? O que resultou da sua confrontação com o destino? Por que só o ser humano confronta o destino? Tal confronto não se dá no, com e como diálogo? Não é por isso que há a disputa no mito de Cura? Ao chamarem o Tempo para ditar a sentença não será no seu horizonte que teremos de pensar a questão do destino e da caminhada do ser humano para se tornar humano?
3º. Telos: A travessia enquanto homem humano
É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o humano é inerente ao homem, mas aquele manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes. Então resta a questão: como advém e se constitui a caminhada de Édipo? O que aqui e agora vamos tentar é um exercício de pensamento poético. Se observarmos bem o mito de Cura, ele nos diz no início: “Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura”. O que precede o dar figura à argila é o “pensativa”. Portanto, o agir não basta, ele deve ser engravidado pelo pensar. E é este que irá diferenciar, no fundo, o que Cura nos leva a sermos. Pensar, o que é isto – o pensar? Pensar não é raciocinar, onde se procura conceitualmente estabelecer uma verdade representativa, adequando-a a uma realidade que se racionaliza em conceitos. Pensar é mais que raciocinar. Para isso não ficaremos restritos à vida vivida. Para o ser humano, viver a vida é mais do que realizar o seu código genético, é necessário lançar-se na vida como experienciação. O que é pensar enquanto experienciação? É penetrar nos insterstícios dos conceitos racionais. E um conceito só se potencializa realmente se se deixa engravidar pelo paradoxo. Os paradoxos são os interstícios dos conceitos, porque neles acontecem as questões. O paradoxo é o entre de todo aprendizado como abertura para a aprendizagem. A vida de Édipo é o estar entre o aprendizado do que sabe e a aprendizagem do que não sabe e quer negar: o destino. O exercício da razão o leva a fugir do destino, como afirmação da vontade humana, pensando nisso estar a essência do ser humano. O grande paradoxo em Édipo é que quanto mais foge mais cumpre o destino. Então o destino, ligado ao genos, à família, lhe traz o aprendizado de uma aprendizagem. Uma aprendizagem que o liberta para o que é pelo que não é nem pode por ele mesmo chegar a ser.
Agora podemos entender melhor a questão do destino. Como destino há dois quinhões: o primeiro diz respeito a realizar o que cada um é no como é. É o inerente ao código genético, a todo ser vivo, inclusive o ser humano. O como é já é no que é, falta apenas manifestá-lo. O outro destino é mais profundo e misterioso. Ele nos advém na reunião de Cura e Logos, quando como Cura nos lançamos no pensar que tomou Cura para nos dar figura. O pensar de Cura deve ser ligado à fala do Tempo, quando ele profere a sentença. Diz: “Mas, porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem, porque parece ter sido feito de húmus”. O que a fala do tempo nos convoca e provoca a pensar? O que é o tempo? É o ser se dando, mas diz ele em relação ao homem que “parece ter sido feito de húmus”. O que parece para nós é o que aparece, o que se manifesta. É para nós o que é no como é do código genético. É para nós, a figura configurada a partir da terra e do céu, o ser vivente que nasce, cresce e parece livremente realizar o que é. É para nós o conjunto de tudo que racionalmente aprendemos e estabelecemos como conhecimentos e informações. É para nós a aparente realização através das múltiplas profissões e desempenhos e procuras da vida nos múltiplos cuidados e curiosidades. Em tudo isso ainda não realizamos nosso destino, porque parece que somos feitos a partir do húmus, parece que somos o que aparece parecendo. O parecer enquanto aparecer está ligado ao fingir, tanto ao dar figura por Cura quanto ao dar figura do poeta quando afirma: O poeta é um fingidor. Mas notemos que na seqüência do poema de Autopsicografia, não é o figurar que constitui o poeta. É o ser enquanto a disputa entre o fingir e o sentir:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
O poeta, impulsionado pela Cura se lança, para ser poeta, na disputa de fingir e sentir, de mundo e terra, porque o fingir do poeta se dá na escuta do apelo da Linguagem. Porém, esse apelo da linguagem, enquanto fingir e sentir, lhe advém numa outra disputa mais originária, como em Édipo: a da dor, da paixão, isto é a Cura de eros, vigor de todas as nossas procuras, o penhor de todos os nossos empenhos, bem para além e aquém de nossos empenhos de conhecimentos e aprendizados. Então qual é o penhor dos empenhos? A poético-ecologia encontra a sua medida na procura da linguagem como morada, em que a morada é a Cura, é eros, é o Amor, a Sabedoria. Poético-ecologia é o amor que reúne, céu e terra, corpo e mundo. A poético-ecologia é a procura da Cura, como penhor de todos os empenhos. Só o amor cura, porque só o amor cuida, porque aproxima.
Porém, devemos ter bem presente que o Amor enquanto Cura não é uma idéia conceitual que está não se sabe bem onde e que um dia vamos encontrar pronta e feita. A procura da Cura é um dispor-se cotidiano, porque é a busca no ordinário do extraordinário. Poético-ecologia é questão porque amor é questão e a questão nos possui enquanto procura. A procura essencial e permanente num jogo para o qual somos destinados no e pelo Tempo. É o que nos diz Pessoa na terceira estrofe do poema Autopsicografia:
E assim nas calhas de roda
Gira a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Por que o coração entretém a razão? Que jogo é esse de entreter? Onde está nossa liberdade, se somos jogados no jogo da razão e do coração? Quem joga o jogo? Somos um trenzinho de corda, um brinquedo, que gira nos trilhos do destino, nas calhas de roda. E o exemplo de todos os exemplos é Édipo. Mas para onde nos impele circularmente o destino, ou seja, para chegarmos aonde já estamos? Para cumprirmos nosso destino, o que como genos, como moira nos foi destinado. No destino se dá o sentido do sentir que sente a dor. A dor, a paixão de eros, levada à plenitude nas procuras deve-nos conduzir à apropriação do que nos é próprio. É isso o que no final descobriu Édipo. E o que nos é próprio? A poético-ecologia, enquanto cura poético-amorosa, pois apropriarmo-nos do que nos é próprio é amar. Amar é levar à plenitude de sentido o que nos foi dado e é próprio: o tempo enquanto ser, o nosso destino.
Sentido significa caminho e fim. Mas o que entender por caminho e fim? Fim não é poético-ecologicamente término, acabamento. É muito mais levar ao limite da plenitude a plenitude do limite. É o que nos assinala Édipo ao arrancar os olhos. É chegar à terceira margem do rio enquanto que o não-vê ser possuído pelo terceiro olho. É o olhar da noite primordial, figurado no branco do ovo. E aqui somos jogados numa outra disputa poético-ecológica, onde quem é jogado é cada um de nós. Temos por destino ter o princípio em Eros e por fim a plenitude de, não tendo olhos, ver em meio ao Nada da Noite originária.
A poético-ecologia é a procura e realização do humano do homem. A complexidade do ser-humano, do humano do homem eu a vejo na conjugação das questões propostas pelos três mitos que trouxe para esta reflexão: Eros, Cura e Édipo.
Todos sabemos que o mito de Édipo se configura numa amplitude maior: o do genos de Édipo. Seu destino, em princípio, está ligado ao próprio destino do genos. Por isso, enquanto genos, o mito nos lança no sentido essencial em que se reúne e ultrapassa qualquer dicotomia entre pessoal e social. Para além de Cura da dor, da Cura amorosa, com Édipo temos a Cura da Polis. Por isso a poético-ecologia se dá na harmonia dos três cuidados em relação a três corpos: o de Édipo enquanto Édipo, o de Édipo enquanto lugar do corpo social, ou seja, a Polis, o de Édipo enquanto genos de Eros, Terra, Céu e Mundo. A poético-ecologia deve necessariamente ser tomada e impulsionada pelos três corpos. Não há separação. Hoje, com a globalização, o corpo social são todos os seres humanos e o genos são todos os seres humanos, o Céu, a Terra-mãe-Gaia e o Mundo.
Porém, o mito de Édipo nos mostra algo estranho, mas essencial. A questão do corpo enquanto genos, embora seja a primeira, só aparece por último. Mas isso é o que acontece conosco, embora também não nos demos conta. Por quê? Na ordem da narrativa do mito, sabemos que há um destino do qual Édipo não poderá escapar. Mas também nós sabemos qual é nosso destino e nem por isso o escutamos. Ou escutamos? A ordem ontológica precede e fundamenta a ordem cronológica.
1º. Corpo genético. Édipo tem um telos genético. Ele é criado pelos reis de Corinto como filho. Cresce em agilidade e valentia física e em agilidade e agudeza intelectual. Até o dia em que escuta por um bêbado numa festa que ele é filho adotivo. Parte para Delfos em consulta ao oráculo para saber quem são seus pais. Na decisão desta partida e procura já se mostra o que orientará Édipo em todos a sua caminhada de vida: a procura da verdade;
2º. Corpo social. Como sabemos, depois de ter matado o pai, encontra a cidade de Tebas mergulhada numa profunda crise, pois uma peste a assola. As pessoas vivem amedrontadas, mal se falam, tudo se torna distante e não familiar. Não há proximidade. A esfinge na entrada da cidade propõe dois enigmas e mata quem não os decifra. Não será esta a peste que hoje nos assola? Por mais que cresçam os meios de comunicação e os conhecimentos, vivemos cada vez mais estranhos uns para com os outros e distantes. Também, hoje, não há proximidade. E que mal maior pode haver do que a falta de proximidade? Estamos distantes não só uns dos outros como também das coisas. Tudo ao nosso redor vai-se tornando cada vez mais estranho e reduzido a recursos disponíveis para uso. Até os seres humanos se tornarem recursos humanos. Com isso se perde qualquer possibilidade de proximidade. A própria terra se torna cada vez mais estranha e não sabemos que terra nossos filhos e netos terão. Mas vem Édipo e, impulsionado pela procura da verdade e convicto de sua inteligência, certo de que é o mais inteligente dos homens, defronta-se com a Esfinge. Brilhando na luminosidade da inteligência e da razão, decifra os enigmas e passa a ser aclamado como o salvador de Tebas. Sem rei, pois Laio, o rei, seu pai, ele o matara. Naturalmente desposa a viúva, sua mãe. É o mais dócil e cuidadoso dos reis para com seu povo, para com seu genos. O seu corpo se confunde com o da Polis. Com o saber da razão achava que tinha resolvido os enigmas. Será que hoje o saber da razão é suficiente para resolver nossos enigmas ou apenas nossos problemas funcionais. E se ao menos estes fossem resolvidos. Não nos damos conta de que a poético-ecologia exige a unidade e harmonia dos três corpos.
3º. O corpo de gaia, da vida, da terra. Passados alguns anos, naturalmente novas pestes começam a assolar a Polis. Quais? Não só as relações sociais como também as coisas da terra e a própria terra como um todo se movem cada vez mais na falta de proximidade. Mais uma vez Édipo, impulsionado pela coragem e pela busca da verdade manda de novo mensageiros a Delfos para saber o que fazer. Também precisamos fazer o mesmo, mas hoje nem mais há Delfos nem oráculo para nos dizer o que fazermos. Na era da globalização vivemos o maior perigo, porque à beira do precipício, amplo e abissal. Quem nos poderá salvar? Será que a poético-ecologia ainda terá vez? A resposta a Édipo é desconcertante: é necessário descobrir quem matou Laio. Laio é o genos. Quem hoje está nos matando? Só o homem pode escravizar o homem. Édipo não sossega até descobrir quem matou o rei que o precedeu. Impulsionado pela verdade não recua quando descobre que foi ele o próprio assassino do genos. Só o homem pode escravizar o homem. A poético-ecologia tem que se centralizar na verdade do homem. Mas qual é a verdade do homem? Édipo, o homem, não solucionou os enigmas. O homem não é a resposta para os enigmas das questões. As questões são maiores do que o homem. A poético-ecologia é o deixar-se tomar pelas questões. E o que faz Édipo? Será que nós temos a mesma coragem para fazer o que ele fez? Ele deixou-se tomar pela questão.

O grito de dor de Édipo
Sabendo, finalmente, na demanda da verdade, que matou o pai, casou com a mãe e é pai e irmão de seus filhos, vai à procura de Jocasta, sua mãe e esposa, que já fugira para os aposentos, como nos conta o mais genial de todos os poetas, Sófocles:

Urrando o rei entrou e não pudemos
Testemunhar o perfazer da morte;
Mirávamos os giros de seus passos.
No vai-e-vem, demanda a própria espada
E a esposa não esposa, dupla seara
Maternal, dele e de seus filhos todos.
Ao transtornado, um demo a indica, e não
Qualquer de nós que estávamos presentes.
Com grito horrível, como se o puxassem,
Arremessou-se contra as portas duplas
E entrou, forçando os gonzos dos encaixes.
Ali, suspensa, a vimos, nossa rainha,
Pela rosca da corda estrangulada.
Urro brutal à frente, o rei desata
O laço aéreo. A pobre então repousa
E um espetáculo terrível se arma.
Ele arrancou das vestes de Jocasta
Os fechos de ouro com que se adornava,
E, erguendo as mãos, o círculo dos olhos
Golpeou. Gritava então que não veriam
O mal causado nem o mal sofrido,
Mas no porvir-negror veriam quem não
Deviam, sem conhecer quem lhes faltava.
Um hino funerário! E, abrindo as pálpebras,
Golpeava repetidamente os olhos.
Pupilas rubras banham sua barba.
(Sófocles, 2001: 101)

O grito de dor de Édipo, arrancando os olhos, tem mais sentido do que mil tratados de psicologia e filosofia. É algo muito mais profundo do que as classificações de dor físico-psicológicas ou sentimentais, alógicas ou fonéticas. A voz, no grito de dor de Édipo, é o pathos abissal da linguagem abissal.
O grito de dor de Édipo, arrancando os olhos, ecoa na clareira diurna-noturna do que dando-se retrai-se na noite do Nada.
No grito abissal de Édipo soa e ressoa o apropriar-se da physis enquanto velar-se.
No grito de dor de Édipo, golpeando os olhos, a claridade excessiva da physis se apropria de Édipo (philei) enquanto a imemorial noite do nada excessivo.
No grito de dor de Édipo dá-se o salto mortal no abismo sem fundo do silêncio pleno.
O grito de dor de Édipo, arrancando os olhos, leva à plenitude de sentido, porque o leva à Cura de todas as procuras de afirmação da negação do que lhe fora destinado.
O grito de dor de Édipo, arrancando os olhos, faz da negação da afirmação da vontade humana, enquanto procura de afirmação pela fuga e negação do destino, da sua condição de mortal, um supremo ato de sua renúncia, em que a renúncia não tira. Dá. Dá porque faz das experiências, enquanto procura de aprendizado, uma experienciação da aprendizagem, pela e na qual lhe advém, na noite escura, o saber da sabedoria como claridade plena da clareira do repouso e da plenitude da voz do silêncio e do vazio de seus olhos, vazio de si mesmo, na vigência absoluta da paz enquanto plenitude de sentido.
No grito de dor de arrancar os olhos, Édipo experiência a dor da coragem originária de ser o Nada do não-ser.
No grito de dor de arrancar os olhos, Édipo é o homem originário de todos os homens, na cura corajosa de decidir o indecindível sem indecisão, porque só se pode decidir deixando-se tomar pelo que não poder ser cindido: o silêncio, o vazio, o Nada.
No grito de dor de Édipo de furar os olhos, dá-se o último passo de uma caminhada de vida, nas três sendas do parecer aparecendo, do ser sendo e do não-ser no mergulho da excessividade do Nada.
No grito de dor de Édipo, privando-se dos olhos, dói originariamente numa união misteriosa a mãe/terra, o pai/céu e os filhos que somos, do tempo a memória, de tempo e memória.
No grito de dor de Édipo, sacrificando os olhos, dita o sagrado a lei do humano, do humano do homem enquanto apelo e sentido de nossa travessia, a liberdade da obediência.
No grito de dor de Édipo, arrancando os olhos, prolonga-se o vibrar de um sentido que apela e faz ressoar, em cada um de nós, a dor de ainda não termos a coragem de também arrancarmos os olhos, do aparecer parecendo para sermos o não-ser de nosso destino.
Na dor de Édipo, abrindo os olhos e vendo muito mais do que então vira e via, manifesta-se a terra enquanto corpo do mundo e o mundo como corpo da terra.
Na dor de Édipo com os olhos vazados e vazios corre a terceira margem do rio, e surge o terceiro olho, a lua a brilhar na noite infinita, originária e primordial, no mais absoluto grito do silêncio, na mais absoluta luz da escuridão.
No grito de dor de Édipo, anuncia-se a proximidade da morte como plenitude de sentido da vida.

Édipo em Colona
Depois de muito vagar, o destronado rei chega a Colona, cidade da Ática. E lá, no templo das Eumênides, pôde finalmente encontrar descanso. Apolo, o deus das artes, que profetizara sua dor e o ferira, reconforta-o nos últimos anos de vida, atraindo bênçãos para o lugar onde Édipo foi sepultado.
A poético-ecologia é o apelo para fazer de cada um de nós um novo Édipo. E então os homens e as coisas viverão em paz e proximidade. E no âmago de cada ser humano, de cada coisa, da mãe Terra, do Céu, habitará o extraordinário, porque serão a morada da linguagem.

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