29 maio 2007

Representação e arte





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A questão da representação e da arte é como um fio – não de Ariadne – que nos põe a caminho para chegarmos aonde já sempre estamos: o enigma que é toda obra de arte e o enigma que é toda representação, que é o enigma do ser-humano. Dois enigmas que são um só, porque vigoram no mesmo. Mas isso não dizer que digam as mesmas coisas. O que se vai pro-curar nas reflexões abaixo é tentar assinalar o-a-ser-pensado nas questões: representação e arte enquanto o mesmo como vigor do questionar, do diferenciar, do dialogar.
Estas questões aqui levantadas têm como fundo de diálogo as questões propostas por Heidegger em A origem da obra de arte, na tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro (tradução inédita, acessível através do email: profmanuel@gmail.com).

Aspectos a serem considerados:

1º. O primeiro conceito de “on”, tratado por Heidegger em A origem da obra de arte, quando se faz a enunciação como “logos” ou proposição. Aí está a base da representação. Então esta terá o alcance:
a - que se der ao “logos” como proposição;
b – que se der ao “logos” como estrutura discursiva, indo aqui para o 3º. Conceito de “on” e tomando este a partir das interpretações de “to telos”. Cf. o que já tratei no meu ensaio: Telos e o sentido (acessível em: www.travessiapoetica.blogspot.com) ;
c – que se der ao “logos” como razão. Aqui adentramos a posição moderna em relação ao “on” e não simplesmente em relação ao lugar do “logos” enquanto proposição ou sistema, visto na letra b-.

2º. A representação concebida a partir da proposição cartesiana. Aqui vamos ter algo bem complexo, porque: a- por um lado, concebe-se o “logos” como razão que não apenas diz, mas constrói uma representação. No caso da proposição, remeteria, seja para o signo enquanto significante e significado, seja para a linguagem/código como canal e mensagem. Mas esta mensagem é a representação efetuada pelo “logos”; b- por outro lado, no pensamento grego temos não só o “logos”, mas também a nóesis, isto é, temos legein e noein. Embora nóesis seja mais compreendida como intuição originária, mas de qualquer maneira a efetivação de um conhecimento ao lado da techné, da mathesis e da episteme.
Até onde o logos como razão absorve a nóesis? Até onde a consciência fica reduzida à razão e até onde ela diz muito mais a nóesis? Esta reflexão vai dizer respeito ao alcance da representação na modernidade. Se, de acordo com o frg. VIII de Parmênides, noein e einai são o mesmo, mas não são a mesma coisa, então que lugar ocupa aí o legein, ou seja, o logos? E na redução do logos à razão, quando no início do sex. XX, Freud nos remete para o inconsciente – o es em alemão – toda redução do logos ao consciente e este à razão, fica evidente, sem base, porque há algo que está para além do consciente. Que insconsciente é esse? Heidegger vai tratar depois esse es como o próprio ser, na expressão es gibt: Se dá. Por isso vão entrar Proust e Caeiro, e depois Heidegger como os iniciadores da pós-modernidade. Mas, na realidade, o triplo surgimento abala, ou melhor, vai além do 1º. Conceito de “on”, obrigando a retomada do “on” como questão e, automaticamente, da redução do “on” à proposição e sua representação; c – da questão da relação de logos e nóesis, ou seja, de razão e consciência, surge a questão do espelho, isto é, do especular enquanto pensar. Isto nos leva para o “on” visto no 1º. Conceito, onde então o espelho não é o logos enquanto proposição, numa estrutura de adequação ao “on”, enquanto “o que é” e “o como é”, ou seja, a essência e a aparência, ou hypokeimenon e symbebekota. Portanto, temos três dimensões que devem ser consideradas no 1º conceito: 1ª. O “on” como essência e aparência; 2º. O “on” como hypokeimenon e symbebekota, na tradução proposicional: sujeito e predicado; 3º. O “on” como substantivo e acidente (adjetivo).
O “on” visto verticalmente nos aparece como uma adequação entre o “on” e o “logos”, mas horizontalmente nos aparece como uma relação entre “o que é” e “o como é”. Há, portanto, duas representações no 1º conceito: a vertical e a horizontal. Na vertical, é difícil separar o “on” do “logos”, mas na horizontal, esta separação ocorreu sobretudo na passagem da I. Média para a I. Moderna, ocorrendo uma inversão: o 1º. Conceito se sobrepõe ao “on”, na medida em que surge a razão como fundamento do “on”, enquanto realidade representada e enquanto logos entendido e reduzido à razão.. Toda esta problemática terá em Kant o seu estuário natural com a diferenciação (crítica/krinein) da razão pura.
Entre a interpretação grega e a interpretação moderna, vamos ter a interpretação medieval. Nesta, a questão do “on”, vista a partir do 1º. Conceito, se amplia, aprofunda e complexifica: 1º. Através das determinações do “on” : ens, quid, bonum, verum, res; 2º. Através do questionamento da relação do “on” com o “logos”, não vistos em si, mas: a - o “on” visto como o 1º conceito; b – o “on” visto como proposição. Toda esta dimensão do questionamento vem do “logos” tratado a partir da lógica que, evidente, vai tratar da verdade; 3º. Através do questionamento do “on”, visto a partir dos problemas dos universais; 4º. Através do questionamento do “on” a partir da junção do 1º. Conceito com o 3º. Conceito, quando se introduz a interpretação do “on” através das quatro causas. O “on” visto através das causas vai remeter, de um lado, para a interpretação da “essência” (ousia e hypokeimenon), através da questão do fundamento como causa, de outro, este fundamento se desdobra em quatro fundamentos. Na realidade, a questão do fundamento é muito mais pensada numa dupla tensão: a- do “on” como “logos”, enquanto se pensa mais o “logos” como o fundamento: Deus, o ser enquanto logos na I. Média. E na I. Moderna o logos enquanto razão como fundamento, consistindo nisto a representação. Mas aqui, ao se pensar o fundamento, se coloca o outro aspecto: b – a causa eficiente; c- a relação do fundamento com o “on” vai trazer a questão do fundamento como princípio. E este vai relacionar-se, evidente, com a quarta causa: a final; d – esta questão vem então colocar a questão da identidade. Mas então aí a identidade diz respeito à interpretação do “on”, a partir do 1º. Conceito, já no horizonte dos conceitos e da representação. Pois a identidade é interpretada como a identificação de o que é com o como é. Há identidade quando um (o que é) corresponde ao outro (o como é).
As três abordagens do “on”: grega, medieval e moderna perfazem o quadro onde se inscreve a questão da “representação”. É também dentro desse quadro que se traduz a famosa palavra “mimesis” de Aristóteles como representação. No todo da obra aristotélica, ela tem outro sentido. Conferir para isso o importante ensaio de Emmanuel Carneiro Leão: A questão da arte em Aristóteles, no livro Arte em questão: as questões da arte.
Quando se encara a literatura e, em geral, as artes como representação da realidade, tal concepção se move num quadro extremamente confuso e contraditório. A começar pelo próprio termo realidade, que na realidade, provém de uma tradução latina do “on” como res. Não podemos esquecer também que ao concebermos as artes como representações da realidade, o mais importante aí é a questão do “logos”, pois seria ele que faria a “representação”, nele consistiria a representação. Tais afirmações esquecem que a palavra grega “logos” traduz-se de muitas maneiras: palavra, discurso, relato, razão, definição, faculdade racional, proporção, proposição, lógica, fundamento (Cristo no Evangelho de S.João), linguagem. Então, no fundo, a representação já brota destas diferentes possibilidades de tradução do “logos. Acontece que ele pode também ser entendido como o que possibilita toda fala e, portanto, é silêncio. O logos como linguagem é a mãe de todas as línguas. No ensaio Logos, Heidegger vai afirmar que logos é mundo (In: Ensaios e conferências. Vozes). Ora, este sentido seria o que se aproxima mais do que, normalmente, se entende por representação. Porém, ao ligarmos representação e mundo, em vez de esclarecermos a questão ainda a tornamos mais complexa. É que não podemos simplesmente entender mundo em seu sentido comum e cotidiano, sobretudo positivista, onde mundo se confunde com realidade. Tudo isso é muito superficial. O que é isto – o mundo? A primeira confusão a desfazer é não confundir mundo com os adjetivos que pode receber: medieval, pessoal, social etc. etc. Aí os adjetivos já pressupõem o que seja isto – o mundo. Mas essa é a questão. Essa confusão provém do 1º conceito de realidade (a essência com os acidentes). A relação entre “on” (realidade) e “logos” é, pois, extremamente confusa e complexa.
As diferentes “formas” das obras de arte enquanto estilos ou gêneros seriam representações da realidade? Até onde as formas são a realidade, representam a realidade, na medida em que dão realidade às obras de arte? Ou não dão? Não sei se percebem aqui a grande confusão, pois as formas já se inscrevem num fundo mais amplo: o mundo. Então é o mundo que faz as formas ou são as formas que fazem o mundo? Mas seria mundo a soma das formas? Ou seria mundo a totalidade dos entes, das coisas? O que é isto – o mundo? E o que teria isso a ver com a história e as épocas? Como se vê, forma não é algo assim tão simples, pois, no fundo, ela é determinada pela causa final. Mas final em grego se diz telos. E o seu sentido original não é esse. É necessário aqui consultar meu ensaio: Telos e o sentido (no meu blog). Se os estilos, enquanto formas, trazem imediatamente a questão da história, pois nunca são formas ideais (tirante a leitura psicanalítica de Jung que “crê” na existência de arquétipos), já os gêneros parecem viver acima de qualquer circunstância histórica, como se os gêneros não mudassem e como se todos já existissem na mente de Deus, para um dia se encarnarem, não se sabe bem o porquê nem onde Os gêneros, como formas, também dependem das representações, ou as representações é que dependem dos gêneros? Então voltamos a todas as questões da representação. Há aí um detalhe, na questão dos gêneros, que se esquece: o surgimento do conceito de gênero. A representação do “on” como logos suscita a questão da verdade. E a questão da verdade, a da identidade. É nesse horizonte que se constrói o conceito de gênero. Sobretudo em Aristóteles a questão dos gêneros pressupõe essas questões e a sua ligação com a da mimesis. Tentando esclarecer um pouco isso escrevi o ensaio Gêneros e identidade (ver blog) . Em relação à arte, os gêneros, em vez de explicarem, confundem ainda mais a questão: O que é isto – o gênero? O que é isto – a arte ?
De um lado, vamos ler as obras de arte a partir do 3º.conceito, na tensão matéria e forma. O que é matéria aí é algo extremamente confuso: a – os conteúdos?; b - as linguagens? ; c – a realidade histórica?, daí a denominação de estilos de época. Porém, aqui se atenta mais para o adjetivo, o acidente, o histórico – na linha do 1º. Conceito do on – e não mais para o essencial, se de essencial se pode falar, pois tal palavra provém como sabemos também do 1º. Conceito. E resta sempre a questão: o que é isto - a realidade? Mas na concepção das obras de arte como estilos de época, as obras e a realidade são totalmente determinada pelo histórico, mas aí nunca se trata da questão: O que é isto – a História? Porém, a história – numa definição dada como evidente – já é adjetivada. Como posso saber o que é histórico se não sei tematicamente o que é isto – a história? Como trabalhar a não ser inocentemente com estilos de época? E não é, contudo, isso que ainda se teima em ensinar? Mas seriam então inúteis os estilos de época nem lhe corresponderia nenhuma realidade? O encaminhamento destas questões passa evidentemente pela questão da representação e da arte. Na medida em que aqui se encaminham as presentes reflexões elas já nos assinalam o horizonte em que elas vigoram.
Mas, no fundo, por que o histórico começa a ganhar tanta importância? Porque, partindo do 3º. Conceito e determinando o 1º. Conceito, ambos são determinados pela causa eficiente. E, na realidade, numa confusão cada vez maior, passando a causa eficiente, e somente ela, a ser e a tudo determinar. Por quê? Porque ela se torna o fundamento. Vejam como aqui a causa eficiente é determinada pelo 1º. Conceito, pois é lá que se trata do fundamento do “on” (enquanto essêncica, enquanto hypokeimenon). E o fundamento vai contaminar tudo, inclusive, na visão hegeliano-marxista, a própria história e esta a própria realidade, pois somos determinados pela história, isto é, toda a realidade, inclusive e sobretudo a realidade econômica, aí incluindo o homem. Então o fundamento vai variar: Deus na Idade Média, o homem na Idade Moderna. Vejam como a questão do fundamento se confunde com a questão do sujeito, advinda no 1º.conceito, mas em sentidos completamente diferentes, pois o que lá era a essência, na modernidade vai ser a razão enquanto o próprio homem. DAÍ O LUGAR ESPECIAL QUE O AUTOR, O POETA TEM NA INTERPRETAÇÃO DAS OBRAS. Sempre perguntamos: O que o autor quis dizer? É uma enorme confusão, porque nessa pergunta está misturado o primeiro e o terceiro conceito, este enquanto causa eficiente. Então se dá a ligação do sujeito-autor com o conceito de história e o conceito de estilo de época, onde a época é mais geral do que a obra, pois so homem faz a história, é a história que, no fundo, faz o homem, o homem é feito pela história. O que esse fazer aí quer dizer nunca se pensa, porque então não se pensa a poiesis das obras de arte, como se pudesse haver arte (ars, em latim) sem a poiesis (em grego). Os latinos traduziram a techné (ars) e abandonaram a poiesis, já no horizonte da matéria e da forma, do 3º. conceito. E então estudar a arte, as artes, é estudar a história enquanto as formas ou estilos, na medida em que as obras de arte são a representação da realidade e as matérias ou assuntos ou temas são também históricos. Neste horizonte, é evidente que tais produções são da causa eficiente: o homem. E assim o sujeito, como já disse acima, das obras de arte são os artistas. Como estamos longe da interpretação do on grega pelo primeiro conceito! Surgem dessa confusão e esquecimento da questão, numa visão só moderna – onde ficou a memória? E o que a memória tem a ver com a história? – duas questões que guiam os conceitos de arte: a- O que a obra de arte quer dizer? b – Qual é a sua finalidade?, isto é, os artistas fazem as obras de arte representando a realidade com que sentido? E aí representação ou sentido é procurado, não a partir da obra, mas de múltiplas disciplinas: o sentido político-ideológico, sociológico, psicanalítico, psicológico, semiológico, culturalista, antropológico etc. etc. Vejam como partindo do 1º. e 3º. Conceitos chegamos às diferentes disciplinas como aquelas que, numa inversão absurda, querem estabelecer os sentidos e significados e representações das obras de arte, porque querem estabelecer, como representação, o próprio on, o próprio do on. Então se diz que as diferentes teorias e as diferentes correntes críticas têm todo o direito de se tornarem proprietárias do sentido das obras de arte. E daí reduzi-las a meros documentos “histórico-ideológicos” ou culturalistas como fazem algumas correntes críticas atuais é um passo muito lógico e legítimo. Mas o que é sentido? Aqui sentido é a finalidade. Se se atende mais à causa formal e não material, enquanto representação, a finalidade é estética. Como pode haver estesia sem representação e matéria é o que não dá para entender? Numa cultura onde as obras são elementos fundamentais e impossível de separar dos ritos dos mitos, que estesia há aí? Mas a estética provém do 2º. Conceito do on. E nada acrescenta aos outros dois, a não ser essa simplificação das representações estéticas e subjetivas (tanto subjetivas quanto as inerentes ao sujeito-razão.
Quando se atenta à causa material, e aqui vamos entender como causa material não a matéria de que é feita a obra, pois esta é subsumida na forma, como é super-evidente que fica subsumida no utensílio, e vamos entendê-la a partir dos assuntos, dos conteúdos, das representações, então a causa final deve determinar as formas das artes e, portanto, é a finalidade que deve determinar não só os assuntos mas também as formas. Claro que isto apenas suscita a questão de poder haver um assunto real, uma representação real se não for em determinada forma (notem aqui como o on fica reduzido ao logos como representação discursiva ou lingüística). Por isso é que os estilos são formas em geral que têm representações em geral, comuns a diferentes obras. E aí não se sabe mais o que é que as obras operam. Sabemos sim: representam os contextos históricos, as estruturas econômicas, os conflitos ou tensões psíquicas. Não é isso? Agora o que faz aí o inconsciente e a natureza, não sabemos. Ou sabemos? Tudo fica reduzido à razão, até o inconsciente, porque é o não-consciente visto do continente determinado e feito pela razão como representação. O interessante aí é que o inconsciente deixa de ser inconsciente para ser também uma construção representacional do sujeito. O sujeito constrói a realidade enquanto representação e o inconsciente constrói o sujeito que, por sua vez, constrói o inconsciente, a partir das vivências do mundo, que é uma representação da razão. Os três conceitos de on levam assim aos absurdos contraditórios dessas concepções, tranqüilamente assumidas e propaladas. Note-se que Freud tem uma grande virtude ao trazer para a discussão a questão do inconsciente e, ao mesmo tempo, foi vítima da sua racionalidade e da racionalidade do seu tempo: reduzir, em última instância, tudo aos três conceitos, deixando de lado a sua descoberta inaugural. O interessante é que em alemão, língua na qual escreveu, o inconsciente já é uma redução do pronome neutro de terceira pessoa: es. Na realidade este es é o que para os gregos sempre foi a questão, expressa na pergunta: ti to on? Que devemos entender como: Que é isto – o on? Vejam bem que quando introduzimos o isto em lugar de um substantivo, como por exemplo: O que é uma árvore? E em lugar dessa pergunta perguntamos: O que é isto – uma árvore? A substituição do substantivo pelo isto, já nos leva de volta à questão do on, mas agora para além, muito além da sua interpretação através dos três conceitos. O on é o isto que se faz presente e se faz ausente em tudo que é. Por isso, o es não pode ser reduzido a algo que ainda não é conhecido. Ele é o que se dando como poder ser conhecido também se ausenta sempre como o não-poder-ser-conhecido, se dá como o não-saber.
Portanto, o on não pode ser reduzido ao autor, ao sujeito racional ou gramatical, nem no inconsciente e nem na realidade (on). Pois de onde os artistas retiram o sentido enquanto causa final? Ou seja: O que é a história e até o inconsciente? De um lado, o “homem social” faz a história e a história (inconsciente/es) faz a realidade/on: o homem faz e é feito pela história. Tudo tão evidente, a partir das mistura inconsciente dos três conceitos! Haja mistura, mas onde fica sempre impensado o on. Então a finalidade das artes vai estar localiza na tensão desse duplo fazer. Como chegar as sentido desse fazer? Ou seja, como chegar ao sentido da história? Vamos ter as diferentes interpretações da história, que serão o pano de fundo das interpretações das artes. Como chegar a tal sentido? (Não esquecendo nunca que ainda não se pensou a palavra grega to telos, traduzida superficialmente por finalidade . Ver par isso o ensaio meu, já aqui citado):
1º. Através de Kant com a “crítica”/krinein;
2º. Através de Hegel com a “dialética”.
Ora, é nesse horizonte que se coloca e desdobra, partindo de Descartes, a questão da representação ora dominante. Mas não podemos nunca esquecer que essas duas posições já se inscrevem e circunscrevem dentro dos três conceitos de on. Portanto, as duas posições pressupõem uma volta à questão do on e das diferentes interpretações por que foi passando ao longo da “história”. Exatamente, as duas posições não podem ser nunca descartadas porque elas aprofundam esses três conceitos.
A necessidade de rever e aprofundar a questão da representação na arte se torna mais premente, porque em virtude das descobertas da genética, desse ramo da ciência veio o mais forte impulso para desarmar a aparente fundamentação e valor inequívoco da representação. Quando a representação funda os conceitos parece que tudo em relação ao on, a realidade já está resolvido. Isso ficou mais evidente quando na modernidade a ciência se desfez dos mitos e passou a classificar as obras de arte como sendo algo ficcional, isto é, falso, pura imaginação. O interessante é que o caráter representacional da ciência decalcado na realidade foi posto em dúvida e profundamente criticado por uma ciência: a genética. Não podemos esquecer que o lugar do espelho na reflexão consiste no fato de que o espelho é sempre um ver que se vê: isto é, a reflexão é um processo de conhecer como conhecemos. Então a reflexão enquanto espelho que espelha não é algo diferente daquilo que é espelhado, é somente o como do que na representação é o representado. Então o espelho traz alguns problemas. O mais impensado de todos é o fato inegável de que para espelharmos o que no ver se vê, é necessário que tanto quem vê, o como vê, e o que é visto só podem aparecer e se mostrar numa abertura na qual a luz possa incidir para iluminar a todos que no refletir refletem e o que é refletido e o como é refletido. A esta abertura onde todos que entram na reflexão inclusive a própria luz deu Heidegger o nome de clareira. Clareira é uma abertura de possibilidade de manifestação, aparecimento e representação. A clareira vai nos presentificar e presentear o mundo enquanto logos. É nesse presentear que se vela que vai possibilitar todas presentificações e representações. Por isso, todo método, seja empírico, seja descritivo, seja crítico transcendental, seja dialético, seja fenomenológico, seja hermenêutico, já pressupõem a clareira.
A questão da representação surgiu para a genética a partir da questão da reprodução. Então a representação entra na questão da reprodução. Até onde a representação é, de fato, uma reprodução? A genética, vendo diante dessa questão, constatou que podemos falar: a – de réplica; b – de cópia; c – de reprodução. Até onde nesses diferentes processos há variação? Há diferença? Tendo como pano de fundo o código genético, a questão da reprodução encontra sua problemática no fazer clones. De animais e de plantas já se fazem. E do ser humano? Como ficaria a representação em relação ao clone humano? Seria clonado o código e a partir do código ou haveria também um clone da memória não apenas genética, mas também humana? Noutras palavras, no clone do ser humano haveria a possibilidade de ser clonado o mundo? Como falar de representação na obra de arte se ela é mundo e terra? Porém, o sentido do ser humano está só em desenvolver seu código genético ou em desenvolver seu logos? Como vemos, a genética acabou com a idéia positivista da representação que acontece no e com o ser humano como simples imitação ou cópia. A idéia da representação do ser humano a partir da cópia do que está fora dele, seja naturalmente como meio ambiente, seja historicamente como mundo cultural, veio cair por terra a partir do desenvolvimento da genética. O leitor pode ver isto melhor no livro A árvore do conhecimento de Humberto Maturana e Francisco Varela. Editora Palas Athena. Há outros livros desses autores e outros como Fritjof Capra. Todos sabemos que o código genético comanda enquanto o que é comanda o como é. Esse como é tem sempre no agir a procura de um bem, de um empenho, de um bem, isto é, procura uma finalidade. Então até nas unidades vivas se faz presente o princípio genético como o tender para algum bem, para uma finalidade. E justamente no ser humano poderíamos falar de duas finalidades: o sentido do ser vivo e o sentido do humano desse ser vivo chamado homem? Então haveria duas representações: uma inerente ao código genético e outra ao percurso histórico, dentro de um quadro de memória? E será que em vez de falarmos em código genético par o ser humano não deveríamos falar antes de memória? Vejamos que todos os mitos e todas as obras de arte se fundam numa experienciação do sagrado na medida em que este doa o genos de onde surgem os seus membros a partir de uma moira, ou seja, aquele quinhão (destino) que é inerente a cada um dentro do genos. Então o humano vai ser esse destino que une os seres humanos a um genos como doação do sagrado. É o que nos ensinam os mitos. Nesse horizonte a questão da representação deixa de ter a vigência que a ciência e a metafísica lhe quiseram dar. Enfim, a genética veio trazer contribuições para uma revisão radical do que sempre se entendeu por representação. Isso foi muito bom, porque então a obra de arte se viu livre desse peso morto que são os conceitos tradicionais de representação, surgidos dos três conceitos de on. Com a genética, também a questão do telos se torna mais premente e presente. É no horizonte desse presente que redigimos o ensaio: Telos e o sentido. A contribuição que a genética pode trazer para a arte não vem dela, mas do fato de que ela pôs em cheque em parte os três conceitos de on. E isso mais nos aproxima das reflexões de Heidegger, especialmente no ensaio: A origem da obra de arte. É claro que este ensaio pressupõe a leitura de outros numerosos ensaios do pensador alemão. Tudo isso faz de nosso momento histórico um momento privilegiado, mas é preciso ter coragem e não ficar repetindo os mesmos arquivos gravados em nossa memória racional como conceitos repetitivos ad nauseam, como conceitos já feitos que só precisam ser reproduzidos. É contar essa formatação que temos de afirmar cada vez com mais radicalidade as questões. Representação como reprodução não é questão é problema de formatação. Questão é a morte e a vida, eros e tanatos.
A questão da representação vai ser tematizada em A origem da obra de arte, descendo à questão grega em torno do on, mas não querendo dar-lhe uma nova interpretação dentro dos três conceitos. O que há de novo na posição, pois esta também é uma posição, podemos assinalar em dois pontos:
1º. Não querer conceituar o on; 2º. Deixar o on falar. Mas o on fala? Fala, para tal é necessário não querer falá-lo com os conceitos. Então vai se tomar, no primeiro conceito, o logos não como proposição ou qualquer outro conceito do logos, mas o deixar o on falar é deixar-se ser atravessado pela escuta do logos, ou seja, a partir do fragmento 50 de Heráclito. Porém, já vimos que logos é mundo (não adjetivado, segundo os acidentes do primeiro conceito), mas como questão. Então se logos é mundo, e é on, há uma representação inerente ao logos. Que representação é essa? O isto do on. E onde nos advém esse isto do on? Não na obra como ente, coisa, utensílio, estrutura, organismo, sistema, disposição de disponibilidade. Onde então? No operar da obra, enquanto apelo ao questionar, ao diferenciar, ao dialogar; 2º. Na obra como verdade de dis-puta de mundo e terra, que é a obra como corpo. E como fica agora a representação?
Estrategicamente o melhor é deixar esse conceito em suspenso porque traz mais confusão do que acesso às questões onde essa necessidade do ser humano se inscreve. A representação brota de uma necessidade, pois temos não só o real como mundo, mas temos também a questão do espelho e do desdobramento do eu em outras representações, no que ele sendo é outro que ele apresenta representando. Esta possibilidade do on se apresentar aparecendo parecendo que é o que não é, é próprio do próprio do on. Não podemos esquecer que o on não se deixa dominar pelos conceitos. Pede de nós muito mais uma proximidade de escuta e espera. Por isso, diz Heidegger no § 109 de A origem da obra de arte:

Na ambiência mais próxima do ente acreditamos estar em casa. O ente é familiar, confiável, seguro. Não obstante, um constante velar no duplo aspecto do recusar e do dissimular perpassa a clareira. O seguro é no fundo não seguro; é in-seguro. A essência da verdade, isto é, do desvelamento, é regida internamente por uma denegação. Contudo, este denegar-se não é nenhuma falha ou defeito como se a verdade fosse puro desvelamento que se livrou de todo velado. Pudesse ela ser isso, então não seria mais ela própria. À essência da verdade como desvelamento pertence este denegar no modo do duplo velar. A verdade é em sua essência não-verdade. Diz-se isso assim para demonstrar numa agudeza talvez estranhável que ao desvelamento como clareira pertence o denegar no modo do velar. A proposição: a essência da verdade é a não-verdade não deve, em relação ao que afirma, dizer que a verdade no fundo seja falsidade. Tampouco a proposição significa que a verdade nunca seja ela mesma, mas, sim, diz, representada dialeticamente, que sempre seja também o seu contrário.

Como um operar que reapresentando o que se apresenta e presentifica tanto mais aparece quanto mais se retrai e vela, tanto mais se dá quanto mais se guarda, tanto mais fala quanto mais silencia, tanto mais é verdade quanto mais é não-verdade. Foi isso o que pensaram os gregos ao nos dar de herança a palavra impensada: aletheia como a clareira do logos. Obra de arte é verdade e não-verdade porque é aletheia e clareira, porque é disputa de mundo e terra. É pensando neste horizonte do on que Emmanuel Carneiro Leão vai dizer do logos enquanto linguagem:

A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na linguagem o real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade. O real se realiza numa variedade infinda de modos, níveis e graus de mostrar-se. Há até a possibilidade de o real mostrar-se como algo que em si mesmo não é. Neste mostrar-se, o real aparece como se fosse. É o parecer e a aparência. A linguagem possui uma tal vitalidade que articula, ao mesmo tempo, tanto um sim como um não: o mostrar-se em si mesmo como sim e o mostrar-se em si mesmo como não. O Ente e a Essência são modalidades positivas, o parecer e a aparência são modalidades negativas de linguagem.
A linguagem, tanto no modo de manifestação positiva quanto no modo de manifestação negativa, nada tem a ver com os signos, indícios, indicação e denotação. O indício denota o que não se mostra em si mesmo, refere-se a algo que não é linguagem. Signo não diz o mostrar-se em si mesmo, mas um anunciar, um indicar uma coisa que não se mostra, nem como ela é, nem como ela não é, mediante outra que se mostra. Signo é, pois, o não mostrar-se. Mas este não do signo não se identifica com o não da linguagem, isto é, com o parecer e a aparência. Pois o que não se mostra também nunca poderá aparecer e, por conseguinte, parecer. Signos são metáforas, alegorias, sintomas, índices, indicações, embora cada um o seja à sua maneira.
Todo signo só pode indicar em razão do mostrar-se de alguma coisa. Este mostrar-se não é, em si mesmo, um signo. Todos os signos só são signos na dependência da linguagem. Quanto se diz, portanto, que a linguagem é um sistema de signos, não se define, mas se pressupõe a linguagem, e com a desvantagem de encobri-la, reduzindo-a à língua.

Então vamos ter no questionar, no diferenciar, no dialogar sempre uma tensão do entre movido pelo logos. Um tal entre acontece como acontecer apropriante, tendo no acontecer e como acontecer o mesmo das mesmas coisas, a história enquanto a diferença de todas as identidades e a identidade de todas as diferenças. Toda obra de arte é um acontecer poético. Por isso, a obra será sempre um entre o ser-da-obra-de-arte (segunda parte de A origem da obra de arte) e o ser-da-arte (terceira parte de A origem da obra de arte).
A representação nasce propriamente desde o momento em que o rito esquece seu princípio originário e passa a se mover no difícil e movediço terreno dos símbolos. O esquecimento do mito nos ritos dá início ao simbólico. Este simbólico tomou três diferentes vigências como mundo: nas artes, na Polis, de onde se originou a representação político-ideológica na modernidade. E hoje está, graças a Deus, em crise. E, finalmente, a mais, aparentemente, consistente: a religiosa. Como se o sagrado precisasse de representantes que re-ligassem, na religião, o que nunca esteve nem está separado. Benveniste prova que religião, iludindo muitas pessoas, não vem do verbo latino religare. O sagrado se dá de muitas maneiras e dimensões, em múltiplas experienciações. As mais importantes, sem ordem, são: a arte, o mito, o pensamento, o religioso, o místico, a metafísica. Mas aí nunca há representações. Há vigência do extraordinário no ordinário.
Neste ensaio tratamos um pouco das questões e conceitos que se originam da interpretação do on, a partir dos três conceitos que estruturam e fundam todas as teorias da arte e das diferentes disciplinas no percurso filosófico-científico do Ocidente. Claro que é necessário aprofundar muitos aspectos, mas o horizonte de reflexão já está aqui indicado e assinalado. Só compreendendo um mínimo dos três conceitos e seus desdobramentos podemos tentar entender o que Heidegger nos propõe – para ser pensado e não e jamais inconseqüentemente repetido – nas duas partes finais de seu ensaio A origem da obra de arte.
Adentrar essas duas partes quer dizer abrir-se para as questões que já desde sempre nos têm, pois o ser-humano é um invenção das questões como obra de arte em permanente construção, como permanente acontecer poético. Daí ser fundamental a questão do sentido. Esta questão implica, evidentemente, as duas imagens da medida em que o ser humano se di-mensiona: logos e morte.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Prof. Dr.Castro,
Agradeço pelo excelente texto que, de certa forma, faz calar a idéia de "superação de Heidegger", tão comum em estéticas contemporâneas que ainda não responderam às questões suscitadas por "A origem da obra de arte".
Grata,
Katja.