29 maio 2007

Não-saber





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Em todo contexto e em toda conjuntura, há um primeiro dado que possibilita a reunião das pessoas num mesmo contexto, numa mesma conjuntura e no habitar uma clareira: é o não-saber. Esse é inevitavelmente comum. Mas em relação ao não-saber pode haver duas atitudes:1ª) a científica. Nela, de posse do passado (assim julga) como algo passível de domínio, volta as costas para esse passado e olha o futuro, o não-saber como o ainda-não-sabido, mas que pode ser incorporado ao passado como novo conhecimento. A ciência vive no passado voltado sempre para o futuro se quiser progredir. Por isso, a ciência vive do domínio do passado e dos projetos de pesquisa como possíveis descobertas de novos conhecimentos, o ainda-não-conhecido que se pode transformar no conhecido. A ilusão do cientista é ser um utopista incorrigível, pois sempre acha que todo-ainda-não-conhecido pode ser pelas pesquisas incessantes trazido para o conhecido.
2ª) A artística. Nesta atitude o não-saber não está no futuro. Por isso, não volta as costas para o passado. Esquadrinha e busca no conhecido e não-conhecido. O resultado desta busca é uma tentativa permanente de surpreender no dito e conhecido o não-dito e o não-conhecido. A busca do não-saber como possibilidade de todo saber é que move todo agir artístico. Ele quer no saber manifestar o não-saber, no dito o não-dito. Ele, como o cientista, não busca o saber diferenciador e limitador. Pelo contrário, busca o que-a-todos-une: o não-saber como identidade das diferenças. Certamente, o artista se sente e percebe limitado, mas, por ser tomado pelo que independe da vontade dele, por se deixar atravessar e possuir por um pathos irresistível, quer contínua e reiteradamente, utópica e incansavelmente, trazer para o limite o não-limite, levando, nesse criar, o limite à sua plenitude.
O que esta dupla atitude pode nos levar a pensar? A grande questão que subjaz é simples: os dois conhecimentos são entre si tensionais, mas harmônicos. Por isso, a eliminação de qualquer um ou sua mútua anulação priva o ser humano da sua possibilidade de se tornar humano. Se a dimensão do humano advém ao ser humano do que o próprio ser humano não pode criar nem determinar, pois ele o recebe como doação para na vida achar o seu sentido, o seu telos, este telos lhe advém da morte, onde morte não é fim, mas a possibilidade de levar à plenitude a vida. Por outro lado, devemos dizer que por ser o sentido o princípio de plenitude de vida enquanto a vida vigora no impulso para a morte, fica claro que viver é buscar essa plenitude e não e jamais nega-la, seja a vida, seja a plenitude. Então qualquer conhecimento que contribua para uma tal plenitude, como negá-lo ou desmerecê-lo. Como desmerecer a brilhante trajetória de Édipo? Impossível. Mas uma tal trajetória é que lhe vai permitir apreender os seus limites e o alcance do seu saber; que só pode ser alcançado sabendo. Mas devemos igualmente dizer que a coerência de Édipo na trajetória do saber não tem um fim em si mesma. Pelo contrário, ele só encontra a plenitude na sabedoria da cegueira e na aprendizagem como processo do aprendizado. Sem aprendizado não há aprendizagem, mas esta não tem o seu produto, o seu desabrochar no aprendizado, porque este não pode dar mais do que o que ele é: aprendizado. Este deve ser buscado na medida em que receber sua razão de ser na busca da aprendizagem, pois é esta e só esta que realiza o humano do homem. O humano do homem é o deixar-se atravessar na travessia cotidiana e utopicamente no ordinário da vida pelo extraordinário do mistério e sentido da morte, não como fim, mas como telos, isto é, pelo deixar vigorar a arché, o princípio no desabrochar da sua plenitude. À plenitude do princípio Rosa chamou de travessia, a eclosão do humano.
Liberdade
Só o homem escraviza o homem, diz Emmanuel Carneiro Leão. Mas não se poderia dizer: só o homem liberta o homem. Por quê? Então quem liberta o homem? Eu creio que devemos distinguir o ser humano como ser humano, na ordem dos seres, e o humano do homem na ordem do ser. O humano do homem não coincide exatamente com o ser humano enquanto ser humano. O ser humano como ser humano se realiza na ordem do saber, mas só o humano do homem se realiza como sabedoria. O ser humano como homem se realiza na ordem do aprendizado, mas só o humano do homem se realiza na aprendizagem. O saber do homem na ordem da ciência pode ser bom ou mau. Se se considera o escravizar segundo a ordem da ciência no saber que traz mal e o libertar da ciência no trazer o bem, ainda asssim não podemos considerar que nesse mal ou nesse bem haja sabedoria e aprendizagem.
Na ordem do saber de Édipo, tal saber lhe trouxe o bem, mas não lhe trouxe nem sabedoria nem aprendizagem. Quando na ordem do saber de Édipo lhe trouxe o mal, então ele se deixou possuir pela sabedoria e pela aprendizagem. Na ordem da ciência do ser humano seu saber tanto pode ser bom como ser mau. Na dimensão do humano só se torna humano quando se deixa possuir pelo ser que faz do homem homem humano, isto é, só o homem se abrindo para o apelo e a interpelação e provocação do ser, o homem chega a se realizar como homem humano.
O humano do homem não advém ao ser humano no muito saber, mas no sabor do saber como sabedoria. Muito estudar é poder muito aprender, mas não é pelo muito aprender que advém a aprendizagem. A liberdade do homem não é a liberdade do humano. A liberdade do homem pode exercer o escravizar, o fazer mal, o proceder injustamente, o espoliar o outro, o anular os que se lhe opõem, aniquilar e matar os inimigos. Só a liberdade do humano deixa a liberdade libertar, o bem tornar-se bem, a justiça ser justiça, a vida vitalizar e o amor acolher as diferenças.
Para a ciência a sabedoria pode ser loucura e a aprendizagem algo com o qual nada se faz, isto é, inútil. Na ordem da ciência, a falta de bens e cultura pode ser indigência e na dimensão da cultura e da aprendizagem é renúncia, porque a renúncia não tira. Dá. Pois o silêncio não é a falta de voz e música, mas a sua plenitude. O repouso não é falta de dança e movimento, mas o ato puro da simplicidade do dançar e agir.

A música e as questões

Tanto o artista como o leitor ou ouvinte devem se mover no âmbito do questionar, diferenciar e dialogar. Acontece que nesses três verbos se manifesta uma unidade profunda que nos leva para a tensão do ser da obra de arte e para o ser da arte. Esse então, esse “e” acontece então como questão, diferença e diálogo. Por ser nesse “e” acontecerem, ao mesmo tempo, essas três dimensões é que Heidegger no ensaio A origem da obra de arte diz que tudo o que tentou fazer, quando termina o ensaio, foi ver mais claramente o enigma que obra de arte é. O que é isto – tentar ver o enigma? O que é isto – o enigma que toda obra de arte é? Em nossa aproximação, em nossa tentativa de ver o enigma, digamos que é se abrir para o questionar, diferenciar e dialogar. A obra de arte é questão e se constitui de questões – toda obra de arte – porque é questão, porque é diferença e diálogo. E é diferença porque é questão e diálogo. E é diálogo porque é questão e diferença.
Pensar a obra de arte – toda obra de arte – é pensar o mesmo de questão, diálogo e diferença. E então pensar o diálogo não é reduzir o entre-dialogar ao dizer ou não dizer, ou dizível ou não-dizível, a redução de toda obra de arte à elocução, a palavras ou proposições ou discurso. O logos é muito mais porque não há logos sem poiesis e não há poiesis sem logos. Como se dá esse “e” é a questão a ser pensada. Logos é linguagem e linguagem é mundo. Isso em todas as obras de arte. Para tentar entender – tentar fique claro – o que é poiesis, devemos nos abrir, de um lado, para o ser como verbo, no sentido de palavra poiética. A tensão volta porque temos de novo nome-palavra-linguagem e poética. Então aparentemente não avançamos. O poético diz o ditar-doar do sagrado enquanto poiesis, isto é, doar instaurador e inaugural porque originário, o narrar inerente a toda saga. Sendo instaurador-originário é energia poética, isto é, o ser-se-dando como doar. O ser-se-dando enquanto doar é tempo e silêncio e memória. Por isso, em toda arte temos necessariamente tempo, silêncio, memória, linguagem, onde linguagem não será apenas voz, elocução, mas será som, cor, pedra, luz, densidade, madeira, imagem-som-luz, será verdade da não-verdade enquanto clareira. Nesse horizonte, toda obra de arte é questão, diferença e diálogo, porque é verdade e não-verdade, enquanto clareira do ser. E é como clareira do ser que toda obra de arte é tempo, silêncio, memória e linguagem. Mas por toda obra ser tempo, silêncio, memória e linguagem, sendo esta obra é que ela é questão, é diferença, é diálogo, porque está e é sempre um entre, o entre o ser da obra de arte e o ser da arte, o som do silêncio na música, a cor da noite na pintura, a figura do vazio em tudo que se dá no figurar, a voz da linguagem em tudo que se dá a dizer.
De maneira alguma, podemos tentar compreender e apreender e escutar a música a partir da tentativa de diferenciá-la da voz da linguagem, como se a palavra só fosse linguagem e não fosse também e necessariamente silêncio, vazio, não-ação, noite. Como se o som da música não fosse necessariamente também linguagem, silêncio, vazio e noite, como se música e palavra (poiesis) não fossem o mesmo de mundo e terra. Ser o mesmo não quer dizer ser a mesma coisa. E ao serem, enquanto o mesmo, mundo e terra, enquanto esta obra de arte, serem questão, diferença e diálogo. Esse mesmo justamente se dá retraindo-se (mundo e terra) como o mesmo enquanto questão, diferença e diálogo. Por isso, o diálogo, a diferença e a questão não são um dar do diálogo, mas do logos, do silêncio, da linguagem, do vazio, do nada, da não-ação.
Só porque a questão, a diferença e o diálogo são uma doação do logos, do silêncio, da linguagem, do nada é que o humano do homem pode-se manifestar no diálogo, no diferenciar e no questionar, de tal modo que o humano do homem, enquanto doar-ditar-poietizar do sagrado, se constitui necessariamente como obra-de-arte no entre (diá-) do ser-da-obra-de-arte e o ser-da-arte.

Um comentário:

Anônimo disse...

mto bom...