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A linguagem
Numa palestra em 1954, Heidegger disse: “A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde à linguagem”. Na medida em que a obra, toda obra poética, é feita de e como linguagem, a obra opera falando. Cabe ao autor escutar, cabe ao leitor escutar. A escuta da fala da linguagem é que constitui o fingir, a ficção, a poesia. A linguagem escrita ou a linguagem matemática do computador já é o resultado de um escuta. Há, pois, duas falas: a do autor, enquanto escrita, ou a do leitor, enquanto leitura, e a fala da linguagem enquanto vigor do operar, enquanto poiesis. Autor e leitor só falam a partir de fala da linguagem constituída em obra. A singularidade e originalidade de cada autor e da sua obra está na escuta da linguagem. Porém, cada autor, escutando, deve escrever numa determinada língua. E são tantas as línguas! A mãe-mulher também pode ser mãe de muitos filhos e nem por isso deixa de ser mulher e mãe. A linguagem é a mãe de todas as línguas.
As questões
A questão não quer provar, quer provocar.
A questão quer o não-saber de todo saber.
A questão, mergulhada nas águas correntes, ansia pela fonte, proveniência do
que elas são.
O leitor que abre Grande sertão: veredas vê-se logo envolvido num emaranhado de questões, achando, quando se concentra na leitura, que caminha numa selva selvagem e estranha. Diante de tanta questão há leitores que simplesmente desistem. Isso é natural. É que somos instruídos para os conceitos e queremos achar tudo claro. O conceito é o delimitar preciso de uma idéia. As palavras conceituais tendem a ser unívocas. Se digo verde tem de ser verde e não amarelo, vermelho ou outra cor. Porém, a realidade não cabe nessa univocidade das palavras conceituais. Se olho para uma encosta cheia de árvores, vejo muitas variedades de verde. O conceito é pobre para dizer e manifestar essa riqueza excessiva do real. E nisso o mundo se torna muito mais rico e alegre e vivo e poético. Quem traz para o mundo essa riqueza excessiva do real é a palavra poética. E ela ainda se torna mais poética quando se nos dá como imagem-questão. Na imagem-questão o não visível do visível se manifesta inauguralmente. Porém, não são apenas as árvores ou outra qualquer coisa que se apresenta nessa riqueza, também as pessoas. Elas são mutáveis, esquivas, ambíguas, dissimuladas. E não só as pessoas, também os acontecimentos. O mesmo acontecimento visto por pessoas diferentes e ao mesmo tempo tem versões diferentes. E mais. Esse mesmo acontecimento age dentro de nós e sofre um estranho trabalho da memória, de tal maneira que tempos depois esquecemos alguns aspectos e, por outro lado, o reinventamos de maneira diferente. Ou fica de vez jogado para o sótão do insconsciente da memória. É que a memória não é só o consciente, mas também o inconsciente. E do inconsciente quem fala não somos nós, mas a memória enquanto linguagem. Quando se juntam as coisas, as pessoas e os acontecimentos então todo o real se nos dá num mundo mutável, rico, estranho, poético. Temos então a ficção poética. Esta se faz de imagens-questões, personagenagentes-questões, eventos-questões, narrador-questão, enredo-questão. Então a obra de arte como tal e como um todo é um acontecer poético.
Mas em nosso viver cotidiano como nos advêm as questões? Aparentemente quando começamos a perguntar. Mas não perguntamos para ter as questões. Pelo contrário. Só perguntamos na medida em que somos convocados pelas questões. Por nascer e ao nascer já somos jogados nas questões, de tal maneira que, como doação das questões, vivemos sempre num entre: entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre eros e thanatos. Se agora voltarmos ao começo e relermos a citação de Rosa, veremos que viver é um aprender, mas só se aprende mesmo é a fazer maiores perguntas. Só pergunta, se for uma verdadeira pergunta, quem questiona. Grande sertão: veredas é a ficção poética onde se tecem e entretecem as grandes questões, pois estas é que nos levam, no viver a vida como vida experienciada “a fazer maiores perguntas”.
A vida aparece então, em Grande sertão: veredas como uma imensa teia da vida, onde quem faz a teia são as questões. A vida enquanto questões. Atravessar essa teia é o grande desafio do viver, pois viver é muito perigoso. Podemos nos perder nos descaminhos labirínticos da rede, nos buracos que sempre nos espreitam, nos enlaçamentos dos nós. Podemos ficar nas “veredas tortas” e nas “veredas mortas”, nos entre-cruzamentos. Podemos simplesmente ficar sem rumo, sem sentido, sem finalidade, enredados nas múltiplas solicitações das funções ou profissões em que somos usados para a rede funcionar. A função profissional deixa de ser função na travessia para se tornar a própria finalidade e sentido de vida. E neste funcionamento a própria obra de arte se vê analisada e envolvida e reduzida a formas e funções. A função para ser função só pode se constituir de conceitos. Os interstícios dos conceitos são as questões. Na rede são os buracos que unem e reúnem as linhas e nós da rede. A rede é uma doação do vazio, assim como a vida é uma doação da morte. A travessia da morte para a vida são as questões.
Grande sertão: veredas é uma intrincada selva de questões. Pois as questões também formam uma selva. A pergunta abre uma clareira nessa selva. Toda pergunta é querer ver claro a selva da vida, pois sabemos que vivemos na espera da sua plenitude: a morte. A morte é o vazio onde se move e tece a teia da vida. Vivemos nesse E de vida E morte como um entre sempre pro-visório.
A arte e a imagem-questão
Os grandes poetas só são poetas porque se surpreendem e apreendem acossados pelas questões, pelas grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis. Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a Palavra, como questão-poética. Cada Palavra-imagem-questão traz em si o sentido e a verdade manifestativa. Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, por ser poética, é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das palavras-imagens-questões. Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. O apropriar-se (amar) é a imagem-questão-poética. Poiesis é radicalmente apropriação enquanto amar. Toda imagem se torna imagem-questão na medida em que nela age, se concentra e consuma a ambigüidade da realidade (“on”). A imagem como questão é um entre, um entre-imagem-questão onde a realidade (“on”) se apropria como realidade. É o que nos provoca e invoca a pensar sempre o frag. 123 de Heráclito: O desvelar-se apropria-se no desvelar-se. O apropriar-se é o “lugar” (imagem-questão-entre) de convergência e divergência da physis enquanto desvelar-se e velar-se.
Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão, como a linguagem, não é, dá-se. E, dando-se, é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra-de-arte não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem, não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poetando, e isso é o ser se doando como desvelamento e velamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou aquele ente. Riobaldo, como imagem, não é, porque Riobaldo é personagem-questão, enquanto é imagem-poético-manifestativa de questões, é imagem-personagem-questão. Na obra de arte tudo é questão: as imagens, os personagens, os eventos, a narração, o narrador ou narradores, o tempo, o lugar. Como imagem e verbo toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra, Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.
A imagem-questão é a imagem-poética con-vocando-nos para a escuta das grandes questões, onde essa escuta é a condição fundamental de todo diá-logo e de todas as interpretações. Na imagem-poética comparece sempre a poiesis como vigor de todo agir essencial e, ao mesmo tempo, o ethos, como linguagem e sentido do ser. Na medida em que é ethos e sentido, a interpretação se torna o horizonte onde se decide o que somos enquanto valor e sentido. Por isso, de ethos se originou a ética. O mito, poiesis originária, se constitui, manifesta com imagens, não retóricas, porém, questões: são as imagens-questões. Todo mito, como a physis, se constitui numa ambigüidade fundamental de rito e mito, isto é, de desvelamento e velamento. Mnemósine é a memória, a mãe de todas as Musas. Verdade é a deusa Aletheia. Sabedoria é Métis. E assim por diante. São imagens-questões. Quando entendermos a linguagem poética dos mitos como imagens-questões, deixaremos que eles voltem a ter o seu vigor originário. As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em realizações incessantes de desvelamento e velamento. Nas imagens-questões há uma tensão permanente entre o dito da língua e a ausculta da linguagem que se vela. No trânsito desse transe transam o saber e sabor de toda sabedoria da poiesis como imagens sonoro-visuais, que manifestam o real em caminhos que não conduzem a lugar nenhum, porque o caminho é o próprio real se dando em desvelo velado de realizações. Nesta escuta erótico-amorosa, a linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, memória e linguagem, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.
Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos, melhor, as obras-de-arte, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo, “Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. “Sertão” e “veredas”,em Grande sertão: veredas, são imagens-questões. Que questões essas imagens nos colocam? Aí é só começar a pensar, dialogando com a fala da obra-de-arte. E então podemos ligar, por exemplo "campo", a lugar, a mundo, a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica usamos a denominação: Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Diadorim, Mme. Bovary, Capitu, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. Estas se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, dialogada, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada, mas onde ela ao ser experienciada como escuta do que somos e não somos, ambigüamente se retrai em sua fala silenciosa e silente. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas. Quando o diálogo acontece, dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da "Cura" como fonte de todas as questões que essencialmente fundam o ser humano como Da-sein, ou seja, o Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagem-questão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar (Caminho do campo). Como Hermes, diz sempre a verdade, mas não toda a verdade. Hermes é o verbo ambíguo de desvelamento e velamento. O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela enquanto mundo e linguagem: clareira. Por isso, o caminhar é a travessia "entre" o velado/silêncio/vazio E o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.
Um comentário:
Caro Manuel, essa é a minha questão. Obrigado por trazê-la a mim em seu texto. Abraço.
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