16 agosto 2007

Os três diálogos e o logos: o amar





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Toda obra de arte se funda necessariamente no diálogo. E para lê-la interpretando-a é necessário mergulhar profundamente na questão em que todo diálogo já se move. Então perguntar o que é a obra de arte é perguntar o que é o diálogo. O que é isto – o diálogo? O partir do diálogo, para empreender uma reflexão a respeito do que é isto – a obra de arte, tem a vantagem de já nos colocar dentro do próprio dialogar. Quando nos lançamos na procura do isto do diálogo, isto é, do que lhe é próprio, já estamos dentro do diálogo, encarando-o como questão. Dialogar e questionar são concretamente dados.
Todo diálogo pressupõe com quem se dialoga, quem fala, a escuta e o lugar de onde surge a fala para poder ser escutada e para poder haver fala dos dialogantes. Tudo isto são questões. A questão é maior do que o homem. No questionar não é o homem que questiona. É a questão que nos questiona. Para questionar é preciso dialogar. O diálogo é uma questão. No dialogar não é o homem que dialoga. É o logos que nos dialoga. Então questionar e dialogar pedem um diferenciar, isto é, um distinguir ou criticar. Esta palavra forma-se do verbo grego krinein, que significa distinguir e diferenciar. O diferenciar vai nos lançar na questão do questionar enquanto dialogar. Como cada um é uma identidade, dialogar é dialogar-se como conquista da diferença em que cada um vigora, conquistando assim a sua identidade. Só porque podemos já desde sempre diferenciar e diferenciar-nos é que podemos tanto questionar quanto dialogar. Questionando, perguntamos: Como se diferenciam os diálogos? Podemos falar de três diferentes diálogos.

O círculo da comunicação como diálogo comunicativo
No senso comum, dialogar é estabelecer uma comunicação entre duas pessoas. É o que fazemos cotidianamente. Os referentes que entram no círculo da comunicação ou diálogo comunicativo são os seguintes:
Um emissor, um receptor, o paradigma ou código, dividido em canal e mensagem. Como fundo em que os referentes se movem, o contexto, os paradigmas. Na comunicação, o lugar principal cabe ao código. É ele que permite a ligação entre o emissor e o receptor, e que veicula as informações e conhecimentos dos paradigmas. Tradicionalmente, o código se divide em canal e mensagem. Porém, como temos em vista uma comparação com o diálogo, vamos considerá-lo, por enquanto, como o entre emissor E receptor. É ele o lugar do aparecer e parecer. Por isso, tanto o emissor como o receptor vivem em função do código para se moverem nos paradigmas, havendo tanta mais comunicação quanto menor for a resistência de cada um em sua identidade e diferença. De tal maneira que aqui o entre, ou seja, o código, enquanto canal e mensagem, ocupa o lugar central. Não podemos negar que, seja para comunicar informações, seja para comunicar conhecimentos, esta é a conjuntura predominante na vida das pessoas. É seu cotidiano. Porém, dois traços devem ser destacados: 1º. Tanto o emissor como o receptor devem anular ao máximo suas singularidades em favor da objetividade das informações e dos conhecimentos, isto é, dos paradigmas dominantes. 2º. Disso decorre que eles se põem de fora e sempre falam sobre o que se informa ou comunica. Isto é possível porque tudo está centralizado no entre enquanto código, pois a linguagem é reduzida a um meio, um instrumento para veicular os conhecimentos dominantes dos paradigmas. Será a linguagem apenas um meio, um instrumento? Poderemos reduzir a linguagem a um código, a um paradigma lingüístico? Por que o código se reduz a um meio? E será que o diálogo se reduz a isso?
Com o código, algo comum tanto ao emissor quanto ao receptor, os dois estão inseridos e imersos no que se nomeia o con-texto, o conjunto de paradigmas domiantes, que configuram a vida ativa de cada um e da comunidade. Esta denominação quer destacar a estrutura lingüística na qual se dá a comunicação entre emissores e receptores. O que precede e possibilita a ligação é compreendido como sendo um discurso no e a partir do qual se entre-tecem os diferentes textos. A língua como texto parte da concepção das relações sociais como sendo uma vasta rede onde circulamos nos canais e mensagens, originados dos paradigmas. Nas múltiplas possibilidades de cruzamento e entre-cruzamento, de nós e linhas de significados, forma-se e conforma-se a sociedade como um grande código, uma grande rede de relações, de conhecimentos, informações, valores sociais e político-ideológicos, que subjazem como sincrônica possiblidade de comunicação e inter-ligação não só inter-subjetiva, mas também inter-textual, hiper-textual e hipotextual. Nessa inter-conexão a sociedade se dá e atua como um corpo rizomático, enquanto um mundo de possibilidades tanto do mundo quanto da terra. Mas o código sincrônico só subsiste na dinâmica diacrônica. Certamente tanto a sincronia como a diacronia, numa primeira instância são vigências históricas, numa segunda são possibilidades da memória. Em última instância são necessariamente uma doação dos vazios da rede, da teia da vida. No círculo da comunicação nunca tais vazios são pensados e tematizados. E toda sociologia se ressente desta falta. Por isso, a análise das relações sociais ficam deficientes. Já se complexificam quando em lugar de relações falamos em comportamentos. No fundo, são a memória e os vazios da rede que doam as possibilidades da circulação tanto das intersubjetividades quanto das intertextualidades, hipertextualidades e hipotextualidades. O código não dá conta de tudo que acontece no círculo da comunicação, porque no código não se pensa a dinâmica histórica nem o vazio das redes, embora estes sejam a condição daquele.

O diálogo com o outro: a fala
Se pensarmos o diálogo mais profundamente, vamos ver que no lugar do emissor e do receptor aparecem então um eu e um tu, em suas singularidades, e, ligando-os, a palavra diálogo. O diálogo também é um entre, mas que está para além do código, porque deve dar lugar ao eu e ao tu enquanto singularidades. Estas também se movem no aparecer, mas onde agora há algo mais: uma fala e uma escuta, singulares e não mais gerais como no caso do diálogo comunicativo, ou seja, a presença singular tanto do eu como do tu, enquanto são. Há também um entre, mas agora o código, ao ser singularizado, se torna o que propriamente chamamos diálogo. O entre do código não é o mesmo entre do diálogo. O diálogo é o código singularizado, sem perder o seu aspecto universal, porque se farão presentes tanto a fala como a escuta. Conjuntura é mais do que contexto. Numa conjuntura dialogal, e não mais num contexto comunicativo, o eu se dirige ao tu e este escuta. Todo diálogo, para ser diálogo, implica uma fala e uma escuta. Porém, quando o tu responde, a partir da escuta, o ele se torna eu e o eu se torna tu. O diálogo permite e exige o surgimento desta diferença e identidade, tanto em relação ao eu, que se torna também um tu, quanto em relação ao tu, que se torna também um eu. Todo eu é o que é e o como é, ou seja, a cada eu corresponde um “isto”, que é o que lhe é próprio, sua essência enquanto identidade. Por isso, todo eu se constitui por uma delimitação interna – sua identidade -, e outra externa, o tu enquanto diferença, ou seja, em relação ao outro. Outro diz-se em latim alius e em grego hetero. Vamos ter neste caso um hétero-diálogo. Nesta conjuntura, dialogar é sempre falar com o outro. Ao contrário do círculo da comunicação, aqui não é possível falar sobre, pois no e pelo diálogo sempre há um apelo de escuta mútua. O diálogo é um entre diferente do entre do código comunicativo, porque nele se produz tanto uma fala quanto uma escuta. Num exemplo, Grande sertão: veredas, enquanto obra de arte, se constitui como um diálogo com o outro, pois todo ele é configurado na fala de um narrador para a escuta do ouvinte ou de cada um que lê a obra. Então a obra é o próprio diálogo. O que é o entre como diálogo? Tudo isto é muito complexo e exige mais algumas reflexões para tentarmos entender mais profundamente a obra.
No hétero-diálogo, a conjuntura é mais do que o contexto, porque nele, concretamente, cada pessoa com seu mundo está implicado e se decidindo. Na conjuntura, cada um está introduzido de uma maneira radical. O que é conjuntura? Como pode haver conjuntura? A palavra junta tem a mesma origem, indicando aquilo que reúne juntando. A con-juntura junta diferenças porque ela vigora no mesmo, o que em si doa a identidade. No diálogo, a junta está relacionada ao diá- que significa um através de e entre. A conjuntura é o entre de Eu e Tu. Mas ele remete tanto para as diferenças quanto para a identidade, que no caso, é o logos, de todo diá-logo. A junta como entre vai remeter para o a-juntar histórico da memória. Toda conjuntura traz em si o vigor histórico da memória.

O auto- diálogo: a escuta
Duas observações iniciais. 1ª. Somos, cada um é. O “como é” do “que é” é o que se manifesta como diálogo e existência, daí a ex-centridade. Esse “como é” nos remete para o auto-diálogo, no qual algo de radical e inaugural acontece; 2ª. Quem o diz com propriedade é Hölderlin, ao afirmar: “Com freqüência é como se, para nós, o mundo fosse tudo e nós nada, mais freqüente ainda como se nós fôssemos tudo e o mundo nada”. In: Hyperion. Apresentação de Márcia C. de Sá Cavalcante, p. 14. Mas ao trazer a questão mundo para esse dilema, Hölderlin nos joga na questão fundamental do próprio logos como mundo.
A complexidade do diálogo começa a aparecer pelo simples fato de que, no diálogo com o outro, o tu ao responder, a partir da escuta, se torna de fato também um eu. Significa isso que o eu é também um tu, e que o tu é também um eu. Só que aqui acontece algo mais profundo, na questão das diferenças. Se todo eu é eu e tu, e todo tu é tu e eu, então acontece uma identidade e diferença, uma proximidade e distância dentro de cada um. A diferença não é mais só em relação ao outro, do hétero-diálogo. Além da diferença constituída pelo outro, há também uma outra diferença: a interna. Esta é mais complexa. No fundo, trata-se da identidade positiva e afirmativa. O que sou não me advém pela percepção efetiva do outro, mas pelo que sou naquilo que internamente sou, ou seja, sou esta identidade que eu sou na sua dinâmica interna, afirmativa. Se o diálogo com o outro e a escuta do outro mostram-me o que sou por uma diferença negativa, pois lançam-me nos meus limites frente ao outro, que não sou, já o auto-diálogo e a auto-escuta me lançam numa diferença positiva e negativa ao mesmo tempo, ou seja, que sou eu e tu, que sou fala e escuta, dentro de mim mesmo. Enfim, que sou e não-sou. O eu é e não é. Este não ser é que constitui a segunda diferença, a diferença comigo mesmo, uma vez que sou e não sou. É este não-sou que instala igualmente a proximidade e distância, pela qual até posso compreender a proximidade e distância do outro, porque a proximidade ou diferença do outro serão sempre reflexões da compreensão do que é proximidade e distância a partir do que eu sou e não-sou. A questão está em saber se o eu é a fonte da proximidade e distância. Veremos que é o logos. Mas, a partir do logos, toda minha fala deve-se fundar na escuta. Só a partir da escuta é que posso falar. Contudo, como se instala dentro de mim mesmo a diferença? Sem dúvida alguma é no e como diálogo, porque é ele o entre do que sou e não sou. Esse entre como diálogo deve poder produzir ao mesmo tempo uma fala e uma escuta, uma identidade e uma diferença, uma proximidade e uma distância, uma verdade e não-verdade. O auto, o que me é próprio, me advém no diálogo, como fonte originária tanto da identidade como da diferença. O auto surge misteriosamente do entre, enquanto nele se dá a vigência do mesmo. Porém, este mesmo é o logos. Então, no diálogo vamos ter o vigor que dá origem às identidades e diferenças, à proximidade e distância, porque nele se faz presente vigorando o auto, enquanto o próprio, o mesmo, o entre e o logos. Eles são as instâncias necessárias do Eu e do Tu, que eu sou e não sou.
Se agora considero melhor o que vou chamar concretamente identidade, não provém do eu, não tem seu fundamento nele. Pelo contrário, é do dia-logos que me advém o que é próprio, ou seja, a identidade. Por outro lado, quando digo eu sou, esse sou é que me afirma como identidade, frente ao que não-sou, ao que ainda não-sou, mas estou continuamente sendo. Então o logos, enquanto lugar de reunião e de eclosão no dizer, é que é o lugar de onde me provém a identidade, para além da minha singularidade, no sentido de que ele é o universal concreto a partir do qual cada on chega a ser o que é. Porém, logos enquanto reunião, é fundamentalmente linguagem. E só por ser linguagem é que é mundo. Logos é mundo. Então o mundo constitui o próprio horizonte do que é próprio, da conquista real e concreta do que sou. Mas o importante é perceber que o mundo é, ao mesmo tempo, singular e universal. Pois no dia-logos sou e não-sou o outro. Portanto, no e pelo diálogo sou com o outro. Mas mais importante, ou tanto, do que o diálogo para fundar minha identidade frente ao outro, é esse mesmo diálogo ser o lugar, para mediar, fundando a minha identidade diante do que não-sou. Na realidade concreta, para dizer não-sou, preciso do dia-logos, pois é ele que funda a possibilidade, pelo reunir, de me apreender tanto como identidade quanto como diferença. Se do ponto de vista do on isso não é possível, pois neste a identidade, aparente, vem e provém do on, enquanto se substantiva num cerne, numa essência que é a substância, a partir do qual o on se manifesta no seu como é, ou seja, em seus acidentes, do ponto de vista só do on ainda não é possível fundar o não-é. Podemos considerar o “on” sendo como o desabrochar do que o “on” é enquanto essência. Seria hoje o código genético inerente a cada “unidade” genética. Não há nesta um “não-é”, porém, possibilidades não atualizadas. Até onde o caos também é para a unidade possibilidades de autopoiese? No “on”, enquanto “on”, ainda não é possível fundar o não-é. E o próprio logos pode ser reduzido a uma proposição que se pode destacar do on. É nesta separação que se funda a idéia de língua enquanto código e até de contexto. Então a separação cria o problema da verdade, enquanto a proposição pode não corresponder ao “on”. Se digo: “Esta sala é redonda” e ela é quadrada, a proposição é perfeita, mas não é verdadeira, porque ela não corresponde ao “on”, que é a sala real. Aí não aparece o diá-, o entre no qual o dia-logos vai acontecer, tornando-se o lugar da identidade. É que, nesse caso, tanto o diá- como o logos foram reduzidos ao através de , a um meio instrumental. Faltou o diá- como entre, e o logos como manifestação do “on” na sua verdade, no seu desvelamento como mundo, ou seja, verdade. Porém, se consideramos isso agora a partir do frag. 123 de Heráclito, veremos que a questão da identidade se dá no diá-logo entre physis E kryptestai, ou seja, do ponto de vista do é E do não-é. A proposição para se afirmar pressupõe já o auto-diálogo, onde o eu e o tu vivem concretamente mediados pelo diá-logos, lugar do que é próprio, não tensão do eu e do tu, do é e do não-é. Como lugar ou clareira, ao é corresponde a verdade (a-letheia), ao não-é corresponde a não-verdade (letheia). Então a identidade pressupõe sempre uma diferença, ou seja, ela é sempre constituída de duas proposições: eu sou E eu não-sou, que é o tu de mim mesmo enquanto a diferença. Isso diz que essencialmente sou diá-logo, seja enquanto hétero-diálogo, seja enquanto auto-diálogo, na medida em que não-sou dia-logo. Veja-se bem: para dizer “eu sou” ou “eu não-sou” só é possível na vigência do logos. Por isso, o logos constitui a vigência do philei enquanto este é o próprio, isto é, o ama. O logos como arché é a própria vigência do amar, isto é, o logos é verbo, ação, vigor, eros.
Porém, é esse mesmo diálogo, enquanto entre, que também funda o diálogo com o outro, pois ele se faz presente tanto no diálogo-com-o-outro como no auto-diálogo. Contudo, quando agora examinamos os dois diálogos do ponto de vista da identidade e da diferença, da proximidade e da distância, devemos concluir que no auto-diálogo há uma maior proximidade do que no diálogo-com-o-outro. Talvez melhor: que a proximidade com o outro exige necessariamente a conquista da proximidade no auto-diálogo. Se não somos próximos de nós mesmos como poderemos ser próximos dos outros? Não aparece aí a proximidade como uma simples aproximação ? É claro que tanto a proximidade quanto a aproximação pressupõem mundo, isto é, o logos. Por outro lado, não poderemos dizer que a proximidade do outro, se for proximidade, alimenta a minha própria proximidade? Acontece que não podemos falar de proximidade sem a distância, da identidade sem a diferença, do é sem o não-é. Porém, talvez ainda não tenhamos notado que ao falarmos de proximidade E distância, de identidade E diferença, de é E não-é, o que está aí impensado é justamente esse E, que é o entre que se faz presente no círculo da comunicação (emissor E receptor), no diálogo com o outro (eu E tu), no auto-diálogo (o próprio eu que é eu E tu). Mas devemos notar imediatamente que esse entre não é algo que agora se vai acrescentar. Ele sempre se faz presente e funda cada uma das conjunturas, embora, em níveis e realizações diferentes. Esse entre é o próprio diá-logo. Quando Rosa configura a obra de arte como diá-logo em que dimensões está ele pensando o próprio do diálogo como o própria da arte? Contudo, devemos ter bem presente que nas três conjunturas o que igualmente se faz presente é sempre a questão da proximidade. O que é a proximidade? Não será a proximidade a fala e escuta do que somos enquanto diálogo? Não será ela o acontecer do apropriar-se do que nos é próprio? Como fala, escuta e acontecer do apropriar-se se dão no e como diálogo, na e como obra de arte? Mas o que nos é próprio não é o ser? Não dizemos: Eu sou, onde o sou é que funda o Eu? E até só por sermos é que posso dizer: Eu não sou, ou será o contrário? Pois se não vigorássemos originariamente no não-ser, em si, o ser não se poderia nulificar. Disto decorre que minha identidade provém, origina-se tanto do ser, pelo é, no qual chego a ser o que sou e no e do não-ser, senão jamais me poderia apreender concretamente como um eu que não-é: Eu não-sou. E agora o estranho e misterioso é esse E de Eu sou E Eu não-sou. Porém, ao chagarmos aqui fica a questão: Como do logos chegamos ao ser e ao não-ser? O logos sendo linguagem é, necessariamente, mundo. Logos é mundo ao dizer e ao reunir. O dizer vem do latim dicere, que se formou do verbo dare. Este está ligado ao ditar do sagrado, como fala de mundo originário. E a fala originária, isto é, a fala das origens nos advém no mito de Mnemosine, a memória, o cuidado da unidade do que foi, é e será. Unidade é o que reúne. Unidade enquanto Mnemosine é o logos enquanto o dizer que reúne. Logos é o dizer que reúne o que foi, é e será. O logos, enquanto linguagem, mundo e memória, é a própria realidade em sua dinâmica una de realização, isto é, do ser e do não-ser. Esse E de ser E não-ser é a própria clareira. Nesse E, no philei do fragmento 123 de Heráclito vamos ter a clareira como o acontecer apropriante. Philei é Ereignis.
A clareira é uma questão fundamental. Ela é sempre o livre aberto do que dando se retrai. Ela, como o livre aberto, onde o ser humano já está originariamente jogado, projetado, articula em si as questões fundamentais de verdade, mundo e liberdade. Mas estas três questões vão ser ambíguas, pois tanto dizem respeito ao aprendizado quanto à aprendizagem, ao saber quanto à sabedoria. Então a verdade, o mundo e a liberdade podem ser vistas no âmbito de uma ou de outra dimensão. Ao aberto enquanto clareira e mundo também se pode considerar como lugar. É necessário na reflexão ter presente que este, no agir do pensar, só se dá na medida em que o que nele se apresenta para até poder ser perspectivado, narrado, refletido e representado, só é possível enquanto (conjunção conjuntural-temporal):
a) aberto; b) lugar; c) clareira; d) mundo; e) verdade; f) liberdade.
Então, mais profundamente, o presentar, apresentar e representar, ao pedir, exigir e se mover poeticamente nessas dimensões, já é radicalmente um inter-pretar, onde o ser humano como entre-ser não é quem dialoga, não é quem interpreta, mas só interpreta ao se deixar interpretar pela e na realidade em seu dar-se e retrair-se, em seu desvelar-se e velar-se. Então lugar é e será sempre realidade, linguagem e mundo: “on” e logos. Interpretando, o ser humano se deixa interpretar pela realidade constituindo-se e manifestando-se como homem humano. Nesse humanizar-se, deixando-se atravessar pela realidade (ambígua) em sua realização é que se dá o agir ético. O ético pressupõe o lugar como mundo e linguagem. Ele é ambíguo porque tanto mais o ser humano age eticamente quanto mais se deixa agir pela realidade (ambígua) realizando-se. A ação moral é sempre do âmbito do agir e querer do ser humano. O agir ético é sempre do âmbito do agir do “on” e do logos. Por isso, o ético é sempre verbal (ação), é obra de arte. Um tal agir ético liberta o ser humano para o humano do homem, porque este realizando o humano do homem, realiza-o na dimensão do sagrado, enquanto dizer e doar, isto é, do extraordinário no ordinário.
Se o “entre” traz o limite da liminaridade, o ser traz o não-limite de todo ente, pelo qual e só pelo qual o limite pode encontrar e chegar à sua plenitude de possibilidades. Esta plenitude de possibilidades não será Édipo arrancando os olhos, apropriando-se do que lhe é próprio, ao ver e se ver na dimensão do terceiro olho: o ver e não-ver como entre-ver, o saber como sabedoria, a travessia de aprendizado explodindo repentinamente na aprendizagem do ilimitado no limite? O destino como questão se vai dando como diferenciação e diversidade no auto-diálogo. Então a libertação acontece quando ele se passa a mover e a agir em seu Entre-ser, pelo logos de todo auto-diálogo.
Neste processo profundo é que devemos ler e compreender o hétero-diálogo enquanto conjunturas, onde o que se faz presente como eu e tu se apresentam, e o diálogo comunicativo contextual, onde o que se presenta e apresenta comparecem enquanto representações de conhecimentos e informações. O contexto como código não passa da realidade se realizando, reduzida às representações conceituais, e até a realidades enquanto simulacros virtuais. Os seus significados possíveis, para além do contexto, já foram dados pelas conjuturas e, originariamente, pela clareira enquanto lugar. Sem auto-diálogo não é possível nem o hétero-diálogo nem o diálogo comunicativo.

Diá-logo

Como nos afirma Rosa: “O que é para ser – são as palavras!” (p.39), então devemos perguntar à palavra diálogo o que nela é e vem a ser. Ela se forma do prefixo grego: dia- e do radical –logo, de logos, linguagem.

O logos
A palavra logos em grego se forma do verbo legein, que apresenta dois sentidos interligados e complementares: reunir e dizer. Estes se fazem presentes especialmente na palavra diálogo. O logos no âmbito da língua, da arte e do pensamentos gregos é de uma riqueza e profundidade de sentidos quase inesgotável. É senso comum o fato de que o logos é intraduzível. Penso que se, em língua portuguesa, quiséssemos achar uma palavra que tivesse a mesma profundidade e amplitude de sentidos, essa palavra seria, sem dúvida nenhuma, sertão, como é configurada em Grande sertão: veredas. Talvez por isso mesmo a obra seja configurada como diá-logo. E na p. 79, Rosa, partindo do logos, nos diz: “Lhe falo do sertão”. Porém, esta fala nos provoca e convida à escuta. Do quê? “Do que não sei. Um grande sertão”. Rosa só pode falar do sertão a partir do próprio sertão e não de fora, por isso é uma fala cujo sentido e alcance só pode advir na escuta. Uma escuta não só de quem o ouve, mas, em primeiro lugar, ela acontece nele, pois fala do que não sabe. “Ninguém ainda não sabe”. Mas dessa escuta referindo-se ao próprio logos, já nos falou Heráclito no frag. 50: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio corresponder concordando que tudo é um”. Então aqui temos: 1º. O Nonada (Um); 2º. O Infinito (Tudo); 3º. O Logos (o vigor do diálogo como o entre de toda fala e escuta). Então a possibilidade do círculo da comunicação, do diálogo com o outro e do auto-diálogo, enquanto modalidades do diálogo, têm sua origem e fundamento no logos de que nos fala Heráclito. É o logos que se irradia como fonte originária para o código, para o emissor e o receptor, para o eu e para o tu, este enquanto o outro e enquanto o inerente ao próprio eu. Tanto a fala como a escuta, ao fundarem-se no logos, têm neste como silêncio e como o nada de tudo que é e não-é a sua fonte originária. O silêncio, o logos, a linguagem, é a mãe de todas as línguas.

O dia-
Dia- é um prefixo grego que congrega dois sentidos fundamentais: através de e entre. Subjaz a estes dois sentidos um terceiro, inevitavelmente: dois. O através de, de imediato, é entendido como um meio, uma ligação e uma relação entre dois. Porém, para entendermos esse meio, essa relação, teremos que saber o quê na relação se relaciona. É para onde nos aponta o segundo sentido: o entre. Este manifesta mais claramente a relação, o meio. Entre pressupõe sempre dois, senão não será entre. E então o alcance do sentido desse entre será ambíguo: tendo em vista os dois é que saberemos o alcance do entre e até a possibilidade de relação, mas, ao mesmo tempo, o alcance do sentido dos dois dependerá do alcance do sentido do entre. O que parece muito abstrato fica evidente quando retomamos as três modalidades de diálogo. No círculo da comunicação, o entre fica reduzido ao código, no âmbito do qual é entendido. No diálogo com o outro, onde se dá o Eu e Tu, esse “e” é o entre eu e tu. Entre é sempre entre dois, mas ao mesmo tempo que diferencia o eu do tu, ele também é o através de pelo qual se faz a ligação, a referência. Então esse entre é enigmático: referencia identificando e diferenciando, ou seja, traz em si o poder de, ao mesmo tempo, identificar, diferenciar e reunir. De onde lhe vem esse poder? Se olhamos o terceiro diálogo, o auto-diálogo, lá aparece de novo esse entre: o eu E o tu que cada um é e não-é. Se, antes, o entre tinha o poder de identificar, diferenciar e reunir externamente, agora também identifica, diferencia e reúne, mas internamente. Portanto, é o mesmo entre, sendo, contudo, diferente. De onde lhe vem essa força, esse vigor? Como tal, não podemos dizer que é ele com sua atuação que funda a identidade e diferença dos entes. De onde então lhe advém esse poder de atuar reunindo? Não há a menor dúvida que lhe vem do logos, que é a linguagem, mundo e memória. Pois o verbo de onde se origina o logos significa não só dizer, enquanto manifesta o que é e não-é, mas também reunir. No logos e pelo logos os entes, enquanto diálogo, chegam ao ser e permanecem reunidos nele.
Mas pelo fragmento 50 de Heráclito, esse reunir enquanto corresponder ao logos é ainda uma primeira instância, porque ela só se realiza quando nos lança na sabedoria do tudo é um. O que aqui nos propõe o pensador deve ser escutado a partir da escuta da fala do fragmento 123 do próprio Heráclito: “A nascividade excessiva apropria-se no nada excessivo” (Physis kryptestai philei). O diálogo enquanto dizer e reunir de identidade e diferença no um e no tudo, nos aparece agora como philei. Ao tudo corresponde a physis, ao um o kryptestai, mas certamente agora no plano do Ser E do Nada. O philei diz, numa tradução simples, ama. A questão é saber o que entender por amar. O sentido originário de philei diz o apropriar-se do que é próprio. Se o diálogo funda a identidade do que somos e não somos, o amar, no dialogar, nos conduz ao apropriarmo-nos do que nos é próprio: o ser. O ser humano, sendo radicalmente diálogo, só encontra o seu sentido mais profundo ao se realizar como amor. Em última instância é do amor que tudo irradia. E é neste horizonte que este ensaio, em torno do diálogo em tripla dimensão, se propõe também como diálogo, onde dialogar é deixar acontecer o apropriar-se do que é próprio enquanto deixar-se atravessar pelo amor.

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