07 agosto 2007

Não-saber e liberdade






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Em todo contexto e em toda conjuntura, há um primeiro dado que possibilita a reunião das pessoas num mesmo contexto, numa mesma conjuntura e no habitar uma clareira: é o não-saber. Esse é inevitavelmente comum a todos nós. Mas em relação ao não-saber pode haver duas atitudes:
1ª) a científica. Nela, de posse do passado (assim julga) como algo passível de domínio, volta as costas para esse passado e olha o futuro, o não-saber como o ainda-não-sabido, mas que pode ser incorporado ao passado como novo conhecimento. A ciência vive no passado voltado sempre para o futuro se quiser progredir. Por isso, a ciência vive do domínio do passado e dos projetos de pesquisa como possíveis descobertas de novos conhecimentos, o ainda-não-conhecido que se pode transformar no conhecido. A ilusão do cientista é ser um utopista incorrigível, pois sempre acha que todo-ainda-não-conhecido pode ser pelas pesquisas incessantes trazido para o conhecido. Hoje, vive-se a estranha e saudável sensação de que quanto mais se descobre mais tem para se descobrir. Há sempre, sabe-se, um interstício inacessível, utopia de todo saber científico. O cientista quer o não-limite do limite. O cientista quer o saber como saber em-si-mesmo.
2ª) A artística. Nesta atitude o não-saber não está no futuro. Por isso, não volta as costas para o passado. Esquadrinha e busca no conhecido o não-conhecido. O resultado desta busca é uma tentativa permanente de surpreender no dito e conhecido o não-dito e o não-conhecido. A busca do não-saber como possibilidade de todo saber é que move todo agir artístico. Ele quer no saber manifestar o não-saber, no dito o não-dito. Ele, como o cientista, não busca o saber diferenciador e limitador. Pelo contrário, busca o que-a-todos-une: o não-saber como identidade das diferenças. Certamente, o artista se sente e percebe limitado, mas, por ser tomado pelo que independe da vontade dele, por se deixar atravessar e possuir por um pathos irresistível, quer contínua e reiteradamente, utópica e incansavelmente, trazer para o limite o não-limite, tentando levar, nesse criar, o limite à sua plenitude. O artista quer a plenitude do limite. O artista quer o saber como caminho e caminhada da sabedoria: achar no fim a plenitude do princípio.
O que esta dupla atitude pode nos levar a pensar? A grande questão que subjaz é simples: os dois conhecimentos são entre si tensionais, mas harmônicos. Por isso, a eliminação de qualquer um ou sua mútua anulação priva o ser humano da sua possibilidade de se tornar humano. Se a dimensão do humano advém ao ser humano do que o próprio ser humano não pode criar nem determinar, pois ele o recebe como doação para na vida achar o seu sentido, o seu telos, este telos lhe advém da morte, onde morte não é fim, mas a possibilidade de levar à plenitude a vida. Por outro lado, devemos dizer que por ser o sentido o princípio de plenitude de vida enquanto a vida vigora no impulso para a morte, fica claro que viver é buscar essa plenitude e não e jamais negá-la, seja a vida, seja a plenitude. Então qualquer conhecimento que contribua para uma tal plenitude, como negá-lo ou desmerecê-lo? Como desmerecer a brilhante trajetória de Édipo? Impossível. Mas uma tal trajetória é que lhe vai permitir apreender os seus limites e o alcance do seu saber, que só pode ser alcançado sabendo. Mas devemos igualmente dizer que a coerência de Édipo na trajetória do saber não tem um fim em si mesmo. Pelo contrário, ele só encontra a plenitude na sabedoria da cegueira e na aprendizagem como processo do aprendizado. Sem aprendizado não há aprendizagem, mas esta não tem o seu produto, o seu desabrochar no aprendizado, porque este não pode dar mais do que o que ele é: aprendizado. Este deve ser buscado na medida em que receber sua razão de ser na busca da aprendizagem, pois é esta e só esta que realiza o humano do homem. O humano do homem é o deixar-se atravessar na travessia cotidiana e utopicamente no ordinário da vida pelo extraordinário do mistério e sentido da morte, não como fim, mas como telos, isto é, pelo deixar vigorar a arché, o princípio no desabrochar da sua plenitude. À plenitude do princípio Rosa chamou de travessia: a eclosão do humano.
A distinção entre estes dois saberes tensionais é fundamental para especularmos a liberdade.

Liberdade
Só o homem escraviza o homem, diz Emmanuel Carneiro Leão. Mas não se poderia dizer: só o homem liberta o homem. Por quê? Quem liberta o homem? Eu creio que devemos distinguir o ser humano como ser humano, na ordem dos seres, e o humano do homem na ordem do ser. O humano do homem não coincide exatamente com o ser humano enquanto ser humano. O ser humano como ser humano se realiza na ordem do saber, mas só o humano do homem se realiza como sabedoria. O ser humano como homem se realiza na ordem do aprendizado, mas só o humano do homem se realiza na aprendizagem. O saber do homem na ordem da ciência pode ser bom ou mau. Quando se considera o escravizar e o libertar, segundo a ordem da ciência, no saber que pode trazer o mal e nesse mesmo saber que pode trazer o bem, ainda assim não podemos considerar que nesse mal ou nesse bem haja sabedoria e aprendizagem. Há o mal ou o bem na ordem do saber do ser humano.
Na ordem do saber pelo qual Édipo se afirmou e se considerou o mais inteligente dos homens, tal saber lhe trouxe o bem, mas não lhe trouxe nem sabedoria nem aprendizagem. Quando na ordem do saber de Édipo um tal saber lhe trouxe o mal, então ele parou, refletiu e se deixou possuir pela sabedoria e pela aprendizagem. Na ordem da ciência do ser humano seu saber tanto pode ser bom como ser mau. Na dimensão do humano, só se torna humano quando se deixa possuir pelo ser que faz do homem homem humano, isto é, só o homem abrindo-se para o apelo e a interpelação e provocação do ser, chega a se realizar como homem humano.
O humano do homem não advém ao ser humano no muito saber, mas no sabor do saber como sabedoria. Muito estudar é poder muito aprender, mas não é pelo muito aprender que advém a aprendizagem. A liberdade do homem não é a liberdade do humano. A liberdade do homem pode exercer o escravizar, o fazer mal, o proceder injustamente, o espoliar o outro, o anular os que se lhe opõem, aniquilar e matar os inimigos. Só a liberdade do humano deixa a liberdade libertar, o bem tornar-se bem, a justiça ser justiça, a vida vitalizar e o amor acolher as diferenças.
Para a ciência, a sabedoria pode ser loucura e a aprendizagem algo com o qual nada se faz, isto é, inútil. Na ordem da ciência, a falta de bens e cultura pode ser indigência e na dimensão do humano a falta de cultura e bens pode ser renúncia de aprendizagem, porque a renúncia não tira. Dá. Pois o silêncio não é a falta de voz da poesia e o som não é a falta de música, mas a sua plenitude. O repouso não é falta de dança e gestos, mas a plenitude do agir do corpo como simplicidade.

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