09 agosto 2007

Literatura brasileira: sob o signo de Narciso






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É paixão minha ser o outro.
Clarice Lispector. A hora da Estrela. p. 37.


Introdução

Com a demolição, irrefutável hoje, de lugares comuns sobre a compreensão da Idade Média, esclareceram-se igualmente facetas e nuances do Renascimento. A um todo monolítico e claro sucede a aceitação de uma transformação contínua, dinâmica e complexa, podendo até falar-se de vários renascimentos. Essas aberturas de compreensão em processo permitiram e provocam revisões. Partindo de uma visão uniforme, da complexa efervescência renascentista européia, a instauração do projeto cultural brasileiro sofreu de uma teorização simplificadora, localizando-o por ocorrência do processo cultural português (também simplificado), na agonia da Idade Média. Isso tudo conduziu redutoramente o entendimento do fenômeno cultural literário, tanto lá como cá. E assim, o Barroco, primeiramente, irrompeu em glória tal que sua luz ofuscou a presença de manifestações que hoje já conquistaram seu direito de cidadania. É o caso do estilo maneirista. Tal revisão se instaurou na literatura portuguesa[1] e brasileira[2]. Procurando verticalizar o novo horizonte de debate, tematizaremos sobretudo a importância de Narciso na caracterização do Maneirismo e daí algumas considerações sobre o horizonte do projeto cultural brasileiro e sua literatura.

O termo horizonte

1. Origem e amplitude

Horizonte vem do verbo grego “horizo”[3], que diz estabelecer limites e fins, de-limitar, de-finir. Delimitando, o horizonte define as possibilidades, por exemplo, de diferenciação de céu e mar. Numa primeira instância, a mais evidente e corriqueira, o horizonte enverga o âmbito do visível. Daí, tudo o que pode ser visto numa perspectiva chamarmos de “panorama”. Assim, panorama vem de “pan”: tudo e “orama” aquilo que é visto: o conjunto de tudo o que se vê no perímetro de um horizonte se chama, pois, panorama. O conceito horizonte, hoje mecanicamente incorporado aos nossos lugares comuns, ou versificadoramente evocado no claro-escuro de um lírico-arrebatador pôr de sol, exige uma reflexão revigorante.

2. Diferença e identidade

O âmbito do visível é apenas uma faceta do “horizonte”, pois o horizonte não se confunde com o “panorama”. Observemos um navio que passa ao largo. Lá onde o navio desaparece, lá está o horizonte. Ao desaparecer, o visível (panorama) deixa aparecer o horizonte. O horizonte é o lugar em que, subtraindo-se à visão, o visível desaparece no invisível. Se observarmos céu e mar, o horizonte não é a linha da diferença. É a profundidade da identidade. Na visibilidade das diferenças, a identidade se mostra como a diferenciação de céu e mar. Com ser o lugar do desaparecimento, o horizonte é também o lugar de aparecimento do visível. O “horizonte” é identidade, harmonia invisível de contrários e oposições. Teríamos:

HORIZONTE

DIFERENÇA
Mar e Céu
IDENTIDADE

3. Horizonte como historiografia ou História?

O horizonte da historiografia só vê o visível, atentando às diferenças, ou às épocas, esquecendo que a força dessas diferenças é a identidade da História. Daí que no horizonte da História o problema não é uma simples mudança alternativa entre Idade Média, Renascimento e Maneirismo.

Renascimento como eclosão: o acontecer Histórico

É meramente didático relembrar que a cultura greco-romana inspirou, em largas linhas, todo o variegado movimento renascentista. Todavia, o prefixo Re- (tornar a) do Re-nascer da cultura greco-romana não indica um mero ato repetitivo, ou a (re) eclosão da cultura greco-romana tal qual ela aconteceu. Ela foi relida num novo acontecer histórico, e além disso, jamais a personalidade imprimida pelo Cristianismo ao longo de mil e quinhentos anos poderia ser arrancada ou ignorada. Se por um lado, São Tomás tentava cristianizar o aristotelismo e a virada franciscana frente ao beneditismo abrisse e facilitasse indiretamente a re-eclosão greco-romana, por outro lado, a concepção cristã do homem arraigada, por mais que cedesse a esses impulsos, jamais poderia manter-se na harmonia acenada pelo Renascimento. Era uma harmonia de tensão, pois o momento histórico era gerado por forças contraditórias. A tentativa insustentável de manter a harmonia desencadeou o Maneirismo; era a ante-sala da desarmonia. O Barroco assumirá essa desarmonia, mas levando, voluntariosamente, em sua profundidade, a experiência maneirista. Daí podermos surpreender num mesmo artista essas duas experiências, bem como em momentos diferentes. O maneirista verticaliza intelectualmente, o Barroco horizontaliza voluntariosamente, mas açoitado, quando mesmo em luta, pelo vento do espírito: é uma selva perpassada pela luz da razão. A reafirmação tridentina do livre arbítrio torna-se a força alimentadora da vivência barroca, até que o pensar, obnubilado, emerja triunfante e assumido em Descartes, embora reduzido dimensionalmente em relação ao Maneirismo. A conseqüência natural do Cartesianismo é o Iluminismo.
O Maneirismo, crise que iniciou a modernidade, apresenta numerosos procedimentos distintivos, muitos deles confundidos com os do Barroco, facilmente compreensível pela confluência crítica e domínios limítrofes. Mas se buscarmos um signo para o Maneirismo, esse será o signo de Narciso.

Maneirismo: sob o signo de Narciso

1. A localização espácio-temporal

Na literatura italiana, o Maneirismo começa a manifestar-se depois de 1520, data que geralmente tem sido apontada como a da crise evidente do Renascimento, começando o Barroco a afirmar-se nos últimos anos do século XVI. Eis alguns sintomas marcantes da transformação epocal. Em 1513, Maquiavel escreve O Príncipe. O papa Júlio II, consolidador do poder temporal dos papas e protetor dos artistas, morre em 1513. Leão X pontifica de 1513 a 1521 e notabiliza-se por sua sintonia com o Renascimento, admirador que foi das obras da Antigüidade e protetor dos artistas. Mas é em seu pontificado que eclode o cisma de Lutero, em 1520: é a Reforma. Em 1527, o católico e imperador da católica Espanha, Carlos V, saqueia Roma. Em 1540, Inácio de Loiola funda a Companhia de Jesus. De 1545 a 1563 tem lugar a Contra-Reforma. A par de tais fatos, a arte não é causa nem conseqüência, mas seu lugar de compreensão. Por isso diz Gustav R. Hocke:

Francisco Mazzola, natural de Parma e, por isso cognominado “Il Parmigianino”, em 1523, postou-se diante de um espelho convexo e pintou seu auto-retrato. Este fato marcou o início de um novo estilo conhecido pelo nome de Maneirismo[4].

O espelho, o auto-retrato são elementos fundamentais do mito de Narciso. Também o fato de o espelho ser convexo?

2. Narciso

Como é próprio de sua essência, os mitos apresentam numerosas variantes de narrativa. No embate aprisionante do discurso convidam à abertura, como fonte de muitas águas correntes. Assim acontece com o mito de Narciso. Diz uma versão: Contra a vontade, a ninfa Liríope é possuída por Cefiso, deus e rio, e concebe Narciso. Antes era alegre e despreocupada. Agora, triste e preocupada:

Entretanto, quando seu filho nasceu, o rosto de Liríope voltou a iluminar-se de intensa alegria. O menino – que recebeu o nome de Narciso – era belo e gracioso, e certamente ao crescer, se faria amado de deusas, de ninfas e de mulheres mortais.
Ansiosa para saber se Narciso viveria muitos anos, a jovem procurou o cego Tirésias, adivinho cuja fama começava então a ultrapassar as fronteiras da Beócia.
Sim, ele terá longa vida, respondeu-lhe o cego, desde que não se conheça nunca.
Ninguém entendeu o sentido dessas palavras. E a obscura resposta caiu no mais completo esquecimento. Até o dia em que Narciso, já adulto, deparou com sua própria imagem refletida na calma superfície de uma fonte. Enamorou-se tão perdidamente de si mesmo que ali ficou, dias e dias, a contemplar-se, deixando-se consumir pela fome, pela sede, pela solidão[5]

Como dissemos, no quadro do Parmigianino, o espelho e o auto-retrato são elementos fundamentais, como se pode notar no relato do mito de Narciso. A leitura mais corrente, embora válida, empobrece a riqueza e a complexidade desse mito, ao reduzi-lo ao chamado narcisismo. “Na interpretação da psicologia, o mito de Narciso representa a vaidade, a auto-admiração (o narcisismo), condenados não pela ética, mas pelo próprio sub-consciente do indivíduo”[6].
Talvez não seja Narciso o narcisista, mas a Psicologia que o interpreta. A psicologia, como outras “ciências”, quer ver tanto que não se vê a si mesma, e por analogia reduz, inquestionavelmente, o todo à sua imagem. Mas outra energia pulsa na fonte que reflete Narciso. Basta saber que seu pai é um deus e um rio, dados nada desprezíveis, para quem a verdade é o motivo do namoro. No jogo de cartas marcadas do reducionismo, questionamos a auto-contemplação da Psicologia.
O dito “narcisismo”, na visão da lente de aumento, mostra a mais profunda busca de identidade na alteridade, onde “quase” é desfeita a dialética do objeto e do sujeito. Este mergulho tende a anular toda a “natureza” e o próprio “eu”. Mas o “cosmos humano” não se sujeita a comparações simples. Podemos dizer, contudo, que o “narcisismo” e o “autismo” são elementos integrantes da atitude maneirista levada ao último extremismo[7]. Ora, nesta atitude, o narcisismo perde toda a sua aparência para evidenciar a procura mais radical. Eis o maneirismo em sua essência. A busca da alteridade, do outro, também recebe o nome de alienação. Só que o conceito de alienação conheceu um círculo de variações semânticas que mais desviam que enviam, quando não tematizado. Provém do termo latino “alius”, o outro (de dois), o diferente (de dif-fero). Justamente para evitar tal confusão Arnold Hauser[8] discute longamente o conceito. Ao percorrer suas vicissitudes históricas, acentua que no sentido mais estreito do termo, ele é a chave do Maneirismo. “De forma consciente, a alienação apareceu pela primeira vez na época da crise da Renascença e seu efeito foi tão revolucionário e abrangente que o conceito de alienação é o único denominador comum possível para as várias formas de ‘revolta’ que afetaram todo o campo da cultura”[9]
As claras distinções que desenvolve são insuficientes para o encaminhamento da leitura que pretendemos propor do mito de Narciso. Sob três facetas distintas é vista a alienação e sua correlação com o mito: a sócio-histórica, a psíquica e a estética. Vistas estanquemente, carecem de identidade.
Hauser explana longamente a sócio-histórica. A esta opõe a interpretação de Freud, não negando os seus méritos, mas afirmando categoricamente que “a alienação é um conceito essencialmente sociológico...”[10] e no campo da Psicologia ela é impropriamente usada e “a alienação torna-se mero sinônimo de uma sensação de mal-estar e desconforto... Freud chama por um termo emprestado, o de narcisismo, e é uma doença da mente individual, assim como a alienação é uma doença do corpo social”[11]. Na chave da antinomia, descarta-se do problema e a Sociologia assume todo o âmbito do conceito de alienação. O que dissemos da Psicologia repetimos aqui para a Sociologia: ela, como outras “ciências”, quer ver tanto que não se vê a si mesma e por analogia reduz, inquestionavelmente, o todo à sua imagem.
Narciso como motivo estético-filosófico é tematizado por André Gide e Paul Valéry.

Valéry faz do tema emocional um tema filosófico, torna o amor ao eu pensamento sobre o eu, e converte a incapacidade de amar, ver ou pensar algo fora do próprio eu num problema de esterilidade, na linha de Mallarmé. A interpretação que Gide faz da antiga lenda é puramente estética[12].

A Estética, como as demais ciências habitam as mesmas águas paradas, e não as de Narciso, que são da fonte. Não queremos com isso negar os subsídios que tais atividades trazem para a compreensão totalizadora. Procuramos encarar o mito com mais amplitude e surpreender nele a energia de correlação e confluência dessas facetas.
Hauser é categórico, e com isso concordamos inteiramente, “a lenda é de fato um tema principal da arte e da metáfora literária maneirista”[13].

3. As águas de Narciso

O mito na sua essência diz o Essencial e o Essencial está em tudo. Daí não podermos subestimar nenhum elemento. É interessante como o des-vio amoroso reduziu a essência mítica. No mito julgamos fundamentais três pólos: Narciso, o espelho, o outro ou o diferente. Identificando-os, a profecia: “Sim, ele terá longa vida, respondeu-lhe o cego, desde que não se conheça nunca”[14]. O fato de ser um cego que diga que o conhecimento pelo espelho lhe seja mortal, já diz da dimensão simbólica. Concomitante aos três pólos temos a morte e o conhecimento. No todo uma alegoria da manifestação da Verdade.
Narciso é o “lugar” onde acontece a Verdade, cabe a ele manifestá-la, embora não seja ele a Verdade. O homem busca esta verdade, embora nesta busca atravessada encontre a morte. Ele não é o impulso, o impulso se dá nele. Este impulso o projeta. E é da essência humana estar já e sempre projetado. Sua vida consome-se em prospeccionar. Mas isto também fazem os animais. Também eles olha, prospeccionam. Eles também sabem, mas não conhecem. O que eles visualizam são as outras coisas, das quais não se diferenciam. Só o homem sabe e conhece, é outro e se diferencia. Para compreender essa “diferença” radical surge o Espelho.

4. O espelho

Que é o espelho? A identidade (Narciso) da diferença (o outro – ele mesmo) radica no horizonte do ser especular do espelho. Fisicamente vistos, temos três tipos de espelho: o plano, o côncavo e o convexo. Qual deles me apresenta a realidade verdadeiramente? O auto-retrato de Parmigianino está, sem dúvida, por trás dessa pergunta. E sua pergunta perguntava, certamente a realidade social, psíquica e estética. A escolha do espelho convexo não enfatiza nem a ele nem a quem vê, mas o espelho. E com o espelho, como desdobramento natural, outra dimensão: a visão, a percepção. Quem percebia era ele ou o espelho? Qual era a verdadeira: a imagem dele ou a vista no espelho? No entanto, esta questão apenas reitera a busca da essência do espelho. Ora, espelho vem do latim “speculum”, donde também se forma o verbo “especular”. A busca da essência do espelho é a busca da essência do especular, a nela do conhecer, do com-nascer, da verdade.

5. O maneirista

Por se ver na fonte, o maneirista é um novo Narciso. Por não decidir o “indescindível”, projeta-se na solidão[15], morre[16]. O maneirista não se introverte na contemplação da sua imagem, mas cala-se engolfado pela espiralizante linha do abismo sem fim. Eis aí o que significa o antropocentrismo radicalmente. E o homem está encantado, confundido, desconcertado pela descoberta. É um especular que tonteia, desfoca, descentraliza, abala, reespacializa a máquina do mundo. Observe-se, o animal também se vê no espelho da água que bebe e não especula. Daí não ser a imagem dele que o tolhe narcisisticamente. Mas para o maneirista é a imagem dele sendo outra no espaço do especular. Podemos então entender a sua obsessão pelo espaço desfocado, descentralizado como a busca de uma identidade impossível: o especular tudo desfoca. A contorção, o desvio, o desfoque são maneiras de percorrer a angustiante situação. Triádico, o homem maneirista vivencia a crise total: social, psíquica, estética. O espelho é a consciência radical da máscara e do teatro, porque o teatro é o espelho encenado. O Barroco, que já implica numa decisão, optará pelo teatro dentro do teatro.

6. Maneirismo e Modernidade

Este encontro com o espelho, no espelho, diz de todo um movimento histórico de radical importância. É o momento da virada, do mundo “às avessas”. É difícil de apreender o Maneirismo, porque o Maneirismo enquanto acontecimento essencial não se apreende de fora, mas noutra dimensão, vendo com a luz do cego Tirésias. Talvez a melhor forma de empreender a compreensão seja perguntar porque germina nessa época a Modernidade e o Cartesianismo.
Hauser demonstra o enredamento maneirista de Montaigne, ao examinar a manifestação inequívoca da dúvida em sua obra. Com Descartes, a confluência se desfaz: o duvidar vira método e o pensar fundamento. Respirando e impulsionando o momento de desintegração do Renascimento, Descartes alicerça a Modernidade. O novo modo de conhecer cinde ao colocar o “cogito” como fundamento do Ser. Aqui o homem não vivencia a solidão nem se deixa morrer. Opta claramente pelo espelho, enquanto especular: este decide a verdade. E a visão e a percepção passam a ser reduzidas ao especular. A melhor prova disso está no simples fato de ter Descartes escrito a Dióptrica que “é o breviário de um pensamento que não quer mais assediar o visível, e que decide reconstruí-lo segundo o modelo, que ele dele se proporciona”[17]. O pensamento se instituiu como centro, mas já não é o especular do Maneirismo. Diz Maurice Merleau Ponty:

... e o ser de Deus é para nós abismo... tremor prontamente superado: para Descartes é tão inútil sondar esse abismo como pensar o espaço da alma e a profundidade do visível. Sobre todos estes assuntos, nós estamos desqualificados por uma posição. Tal é esse o segredo de equilíbrio cartesiano: uma metafísica que nos dá razões decisivas de não mais fazermos metafísica, que valida nossas evidências limitando-as, que abre nosso pensamento sem dilacerá-lo[18].

Esse corte epistemológico habita toda a Modernidade: “Nossa ciência e nossa filosofia são duas conseqüências fiéis e infiéis do cartesianismo, dois monstros nascidos do desmembramento dele”[19].
O privilegiar radical do pensar sobre o ser simplificou o enigma de Narciso, porque este olha na fonte: “Entretanto, Descartes não seria Descartes se houvesse pensado eliminar o enigma da visão. Não há visão sem pensamento. Mas não basta pensar para ver: a visão é um pensamento condicionado”[20].

7. Os três rostos do homem

O espelho (a visão, a percepção) é a passagem obrigatória para a realidade, para o outro. O que não podemos esquecer é que a passagem é uma travessia onde comparecem Narciso, o espelho e o outro. Caminhando na busca da compreensão do espelho aludiremos a três quadros, de três momentos, e nos quais aparece o espelho, evidenciando uma postura diferente do homem.
“O casal Arnolfini”, de Jan van Eyck (1390 a 1441). O quadro data de 1434 e é um retrato nupcial. A ocupação do espaço é equilibradamente pré-renascentista; o ar de pose, mas de extrema singeleza, traduz o intenso equilíbrio interno das personagens. A luz que entra pela janela aberta, distribui-se harmoniosamente. Para completar: a rítmica conjugação de cores. O espaço, a luz e as cores compõem um todo idêntico com a percepção do humano das personagens. O olhar de ambos não se destaca nos rostos iluminados. A par de toda esta unidade algo chama a atenção: a nitidez dos detalhes. Há a preocupação de captar tudo com precisa nitidez. Esta busca de clareza e apreensão em si de cada coisa é evidenciado por um recurso – não interessa se proposital – também simples, mas fundamental: um espelho, colocado simetricamente atrás e entre os dois. Que espelha o espelho? Ainda não especulando, notamos os personagens vistos de costas e mais duas personagens bastante esmaecidos (será uma, o próprio pintor? Será extremamente difícil de responder). O que o espelho nos oferece é simplesmente uma outra perspectiva do que já se vê no quadro como um todo. Especulando constatamos que o espelho não é tematizado, apenas é um meio para ampliar o olhar ou as perspectivas. O que vemos, afinal é uma atitude de busca de apreensão das coisas tais quais são, captando-as de diferentes perspectivas. Nem o espelho, nem a percepção no espelho se tornam fins em si. Esta atitude diz bem da comunhão com a natureza, da não problematização do conhecimento. O mundo ainda é teocêntrico e o homem uma criatura entre as outras criaturas de Deus. Tudo é em-si. Até o cachorrinho transmite, franciscanamente, a mesma tranqüilidade de todo o quadro e de toda a ordem teo-sócio-político-histórica. No final só resta uma pergunta: Por que a presença já do espelho e tão peculiarmente colocado?
Um século, aproximadamente, depois de Van Eyck, Parmigianino pintou um auto-retrato (1523). A diferença é radical. Não temos mais um espelho dentro do quadro: o quadro é o próprio espelho: “O retrato, em forma de medalhão apresenta-se como modelo característico do espírito”[21]. O homem ao identificar-se com o próprio espelho “anula-se” como homem e como natureza (a realidade). O espelho, horizonte de identidade e diferença do eu e do outro, ocupa o centro. Um centro que não me dá nem o eu nem o outro, mas uma “realidade” impenetrável, distorcida e enigmática. O disforme não está no fato de o espelho ser convexo, mas na falta de um princípio que oriente e defina a percepção da realidade. O convexo do espelho é o signo da crise da percepção, da concepção do mundo. O “auto” do retrato não é ele, mas a expressão do labirinto que o vivencia. A captação dele-realidade desfocada é o questionamento de realidade em-si e o mergulho no para-si. Por isso, o auto-retrato é o próprio espelho ou o especular. Também não temos uma decisão especular como se dará em Descartes e no quadro de Velázquez. Ele não decide, vive a indecisão, e nisto o Maneirismo é profundo e radical. A aproximação com Narciso é clara como a água que o reflete: uma água que jorra em movimento e lhe oferece a crise do conhecer. E ele só se fixa na própria imagem na medida em que ela é o próprio conhecer. Por isso morre nos abismos do com-nascer. E o que se denomina narcisismo, é o amor maior do Mistério, porque a busca intensa do conhecimento também é uma forma de amor.
Velázquez (1599-1660), genialmente, se debruça sobre o espelho, captando o momento histórico em sua densidade. Olhemos o famoso quadro “Vênus no espelho”.
A mulher derramada languidamente na cama ocupando visualmente a horizontalidade. A luz que a destaca do fundo vermelho e escuro. Para acentuar a erotização, o tom alvo dos lençóis. No entanto, junto com esta atitude lânguida e sensual, como um todo, observando da cabeça para os pés, vamos ver que o nu se impõe num desdobrar-se reflexivo. Nenhuma linha, nenhum contorno que não conduza para a atitude fixa no espelho. Reforçando esta visualização perceptiva o destaque do braço, apoiando a cabeça, numa evidente atitude especulativa. O reflexo não está primeiramente no espelho, mas na atitude erótico-reflexiva da mulher, que de Vênus tem apenas a atmosfera sensual. Uma vênus humanizada, sem o menor resquício do divino. Os cabelos estão recatadoramente presos, acentuando a atenção reflexiva do braço e do perfil. Paralelamente, o Cupido apresenta o mesmo contraste entre o corpo e a cabeça. Deste, o olhar como que interiorizado. Sua atenção no que vê no espelho. O espelho, colocado no centro do quadro verticaliza a apropriação espacial. O rosto visto no espelho estabelece um contraponto com o corpo em primeiro ponto, longamente derramado. O efeito é um contraste entre o horizontal e o vertical, o erótico e o reflexivo, a linha do corpo e a linha dos três rostos, marcando nitidamente um prolongar-se, sobretudo se partirmos do olhar de Cupido, mas que se centraliza no olhar do espelho, se visto partindo do olhar de Vênus deitada. O espelho, de moldura pesada e escura só faz aumentar o enigma do rosto espelhado. O seu claro-escuro indefinido. É como se o rosto fosse iluminado por uma outra luz. Daí o escuro do rosto se projetar para realçar não a luz externa mas a interna que domina o rosto. Tal luz difere radicalmente de toda a que ilumina o quadro. Esta verticalização central do rosto no espelho, di-ferindo (daí o espelho projetar o di-ferente) de todo o resto diz da nova percepção do espelho e do conhecimento. Agora o espelho não me dá a possibilidade de aumentar as perspectivas como em Van Eyck, não me dá a realidade (o diferente) percebida estranhamente, como em Parmigianino, o choque provocado pelo espelho, onde o conhecer acompanha e reflete a deformação apreendida no espelho. Essa perplexidade é em Velázquez resolvida: primeiro, continuam os recursos míticos: Vênus e Cupido. Mas o que vemos, é um lindo corpo de mulher desprovido de qualquer alusão extra-humana. Basta compará-la com o “Nascimento de Vênus” de Boticelli. O homem se desfaz radicalmente de um fundamento que vigorava fora dele. Em segundo lugar, vemos uma outra realidade antropo-sócio-histórico emergir: a modernidade.
Afirma Clarice Lispector: “e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo”[22].
O rosto como para-si assumindo o espelho, e se assumindo passa a ser o centro irradiador. O conhecer aqui é o centro, o para-si se assumiu e organiza a visualização da realidade.
Os três quadros nos conduzem à melhor compreensão da travessia humana em dois momentos essenciais: o em-si e o para-si: no centro a crise, e toda crise diz de um acontecer radical, crise que se denominou Maneirismo. Por isso o Maneirismo é o momento de grandeza, porque crítico. Nele o inesperado acontece.

8. Amar é conhecer

Para quem se propôs a falar de Narciso e escolhe três quadros onde ele não é o personagem central, parece, à primeira vista, contraditório. Tal não sucede, apenas procuraremos ser breve nesta tematização. Em Van Eyck e Velázquez temos a presença do amor. E em Narciso temos igualmente a problemática do amor. Só que em Narciso esse amor percebido no espelho da fonte lhe dá o conhecer (aparentemente) o não-outro, o não-diferente, o que ocorreria em Parmigianino quando pinta o auto (não-outro, não-diferente) retrato. Nos três, o problema da percepção, da visão, da luz: do conhecer.

9. Maneirismo e meta-língua

A escolha e a transformação dos meios de expressão também é essencial no Maneirismo. Arnold Hauser coloca muito bem o problema emergente ao enfocar o homem maneirista e suas relações com as instituições[23]. Interessante que Hauser examina largamente a institucionalização econômico-sócio-política, evidenciando todo o enredamento do homem maneirista. Ao comentar o desempenho artístico-literário acentua no literário os tipos. É uma clara e fecunda percepção da formalização literária. Se tematizarmos não a relação do autor enquanto um ser humano como outro qualquer em relação às instituições, mas se examinarmos o literário em relação à sua instituição, a língua, veremos igualmente aí se espelhar a crise. Porque a língua é o espelho do escritor. E a consciência do alcance do aprisionamento do sistema lingüístico tem início aí, mas também a consciência de que é nele que se efetuará a revelação do que é. O maneirista questiona o alcance e o limite do seu meio de manifestação. A consciência da instituição língua em embate com o abismo da linguagem tem aí seu começo explícito. Compreenderemos facilmente esta consciência ao constatar, em Parmigianino e seu auto-retrato, a escolha do espelho, como o próprio âmbito do criar, e não como em Van Eyck e Velázquez, o espelho relacionado com outras realidades. Daí também podermos ver em mais de um poeta a referência ao verso, visto não como uma formalização da língua, mas como e habitação privilegiada da dinâmica manifestação do homem.

O projeto brasileiro

O Maneirismo, como o eclodir renascentista, é multifacetado. A sua vigência em Portugal está por merecer uma abordagem específica. Nosso pressuposto é simples. A experiência viva do homem português com o mar em primeiro lugar e com outras maneiras de viver, outras culturas, em segundo lugar, deve ter deixado suas marcas e suas provocações. É evidente que o entendimento do projeto cultural brasileiro ressente-se dessa penetração e exploração crítica. Ele é, inequivocadamente, no primeiro momento uma projeção do modelo português, e o mecanismo é o de uma transposição, segundo propõe Eduardo Portella[24].
A compreensão do projeto cultural brasileiro em toda a sua extensão deve levar em conta duas reflexões. Na primeira, a tematização das implicações de um projeto, na segunda, a busca da sua especificidade. Fazemos apenas algumas indicações. Enquanto projeto cultural vai estar correlacionado com todo o corpo de instituições para aqui transposto. E aí entra o literário, enquanto se movimenta no âmbito da instituição língua portuguesa. O projeto é ao mesmo tempo estático e dinâmico. O estático é depreendido facilmente da formalização institucional. O dinâmico se evidencia na medida em que, no embate com um novo acontecer, dispõe[25] inevitavelmente a configuração de um novo projeto. Surge, por conseguinte, um choque entre o que se transpõe e o que o novo acontecer dispõe. A metrópole, na transposição, projeta a sua imagem. Sucede que o projeto brasileiro colhe no espelho não a transposição, mas a disposição negativa e afirmativa. Negativa porque é dinâmica, afirmativa porque é estática. É claro que não surge o impasse, uma síntese compositiva aflora e vem longamente tentando se impor: é o projeto cultural brasileiro. Este, em sua essência, surge na dialética da composição. Nem poderia ser de outra maneira, pois desabrocha em meio às águas de uma tradição. Nascido em plena crise renascentista, traz com ele a problemática maneirista. A nova nação (de nascere) sai em busca de sua identidade. E o espelho devolve-lhe a transposição. Esta identidade absoluta, não dialética, contenta e sustenta as instituições vigentes, reforçadas, mesmo depois do corte umbilical da independência, pela mudança de metrópole (França e Estados Unidos) e pelo ufanismo e saudosismo inconseqüente: é o Brasil institucional, alienado, justaposto ao Brasil concreto. Mas a busca da identidade é concreta, porque dialética, dinâmica: é a tentativa de fazer emergir a disposição. Sucede que toda eclosão formaliza instituindo. Daí a necessidade da absorção dialética das instituições oriundas da transposição. O projeto cultural brasileiro deve assim caminhar para a composição dialética, lenta, gradual, mas irreversível[26]. Porém há desvios e desproporção de forças, conectadas ao longo do acontecer histórico.
A busca da imagem da identidade obedece sempre ao mecanismo da transposição, daí o não-encontro nesse nível. É que as instituições não têm a coragem de serem radicalmente Narciso, de viverem a contradição, a crise. No entanto, ela é inevitável.
O percurso da Literatura Brasileira é a busca da identidade na composição. Porque aqueles que têm a consciência da crise procuram radicalmente configurá-la, para manifestar o que é em nós. Nas origens, o melhor exemplo é, sem dúvida, Gregório de Matos, o maneirista por essência. Modernamente, bastaria citar Mário de Andrade e sua busca por brasilidade. Gregório faz vivencialmente a experiência dos dois projetos e a ambos rejeita categoricamente. Mas esta negação é a sua afirmação e ele assume e ultrapassa o jogo dialético. Ele vai tirando uma a uma as máscaras das instituições estáticas. Sua obra, como um todo inconsútil, percorre a literatura amorosa, religiosa, satírica e erótica sem fixar-se em nenhuma: consumindo-se no que é, não decide pelo que parece: e no aparecer das múltiplas facetas chegou a ser o que é. Ele penetra até o âmago a crise de todas as instituições, no que elas representam e no que elas são, inclusive a instituição língua[27]. Sua alcunha é perfeita: Boca do Inferno.
Gregório de Matos consome-se na busca incessante de seu ser, e nisto ele ultrapassa o momentâneo para se consumar. A literatura brasileira inscreve-se no eclodir maneirista. Assim sendo, a literatura brasileira, como todo literário, é a afirmação mais radical e originária do projeto cultural, porque compõe o seu acontecer ao negar a transposição e ao sintetizar na composição, pois obra que é, é instituir.
É na composição que consegue instaurar, no horizonte da identidade universal, a diferença nacional.



















[1] AGUIAR E SILVA. Vitor Manuel Pires de. Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971.
[2] PORTELLA. Eduardo. In: Revistas Tempo brasileiro n.ºs 45/46, 47 e 48. Foi a leitura destes artigos que desencadearam as reflexões que se seguem.
[3] CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. In: Revista Tempo brasileiro n.º 40. A explanação sobre o conceito “horizonte” baseia-se nesse artigo.
[4] HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo. Perspectiva, 1974, p. 15.
[5] MITOLOGIA. São Paulo, Abril Cultural, 1973, v. 2, p. 433.
[6] Idem, p. 435.
[7] HOCKE, Opus cit., p. 307.
[8] HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 77-78.
[9] Idem, p. 78.
[10] Idem, p. 91.
[11] Idem, p. 91 e 92.
[12] Idem, p. 94.
[13] Idem, p.94.
[14] MITOLOGIA. São Paulo, Abril Cultural, 1973, v. 2, p. 433.
[15] HEIDEGGER, Martin. Por que ficamos na Província? Revista Vozes, Homenagem a Heidegger, 4, maio 1977, p.45. As seguintes palavras do autor iluminam a solidão em sua essência: “Trata-se de solidão. Em verdade, nas grandes cidades, o homem consegue isolar-se, como mal chega a fazer em qualquer outro lugar. Mas lá em cima nunca é possível isolar-se. Pois a solidão traz consigo a força primigênea que não nos isola mas lança toda a existência na proximidade profunda de todas as coisas.”
[16] PARENTE CUNHA, Helena. Introdução à leitura hermenêutica. Tempo brasileiro. Martin Heidegger, 50, jul/set. 1977, p. 27-36. A autora desenvolve radicalmente o sentido da morte. É nessa acepção que empregamos aqui o verbo morrer.
[17] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de Janeiro, Grifo, 1969, p. 53.
[18] Idem, p. 72.
[19] Idem, p. 74.
[20] Idem, p. 68.
[21] HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo, Perspectiva, p. 15.
[22] LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978, p. 69.
[23] HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo, Perspectiva, 1936, p. 84.
[24] PORTELLA, Eduardo. A linha do horizonte renascentista. Tempo brasileiro. O pensamento, a história, 47, out/dez. 1976, p. 14-21.
[25] Idem.
[26] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
CORRÊA, Marcos de Sá. A ditadura acabou. Jornal do Brasil, 11 de junho de 1978, Caderno Especial.
[27] PORTELLA, Eduardo. Gregório de Matos (Maneirismo e Barroco). Tempo brasileiro: Poética, ontem e hoje, 45/46, abril/set., 1976, p. 8-19.

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