15 agosto 2007

A leitura e os paradigmas






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To on leguetai pollachós.
(A realidade se diz em muitos paradigmas).
Aristóteles.

A leitura como questão
A leitura é tudo na vida. O que é vida? É a realidade. E o que é a leitura para ser tudo na vida? Leitura é muito mais do que ler algo escrito. Ela é uma questão e como questão é maior do que a escrita e o leitor. Numa posição inicial evidente, o leitor é o centro a partir do qual temos que pensar a leitura. Porém, uma vez que esta é uma questão, será no âmbito da questão que teremos que pensar não só o leitor, mas também a própria leitura.

A questão e os paradigmas
A questão é constituída de uma pergunta e de uma resposta, a partir de e sobre a realidade. As diferentes respostas –teorias- tornam-se paradigmas da realidade. A questão diz sempre respeito à realidade e o paradigma diz sempre respeito a uma determinada teoria ou visão da realidade como resposta à questão.

O paradigma e a realidade
A questão é o entre realidade e paradigma. Por que a realidade se torna questão? Porque não sabemos o que somos e o que é a realidade em sua mudança e permanência (vida e morte). Então tudo isso se torna questão e por isso perguntamos para obter uma resposta. Todas as culturas são respostas às questões que a realidade coloca. Explicitamente, no mundo ocidental, quem se colocou a questão do paradigma e o formulou foi Platão. É um paradigma originário: o Eidos (a Idéia). Ele concebeu, assim, o paradigma padrão que orienta até hoje a maioria dos paradigmas no Ocidente. A palavra paradigma se forma do grego: pará: de parte de; entre; durante, por causa de, e do verbo deiknymi: mostrar, fazer ver; produzir; fazer conhecer; revelar; pôr sob os olhos de alguém. O paradigma conjuga então duas dimensões: é um fazer ver, conhecer, mostrar, mas enquanto: de parte de, por causa de, num entre.
Previamente, algo se dá a ver e a conhecer, e se cria um conhecimento através do qual se faz ver o que se mostra. Sem algo se mostrar não pode ser visto e, portanto, serem criados os paradigmas. Não há paradigma sem o que se dá a ver. E o que se dá a ver é que possibilita ultrapassar e criar novos paradimas. O que se dá a ver é, para os gregos, a physis; para nós, a realidade. Para mostrar o que se dá a ver (a realidade, a physis), o ser humano recebe da própria physis duas dimensões que o constituem, circunscrevem e determinam: o conhecimento (nous, em grego) e a linguagem (logos, em grego). O nous é um conhecimento intuitivo, que permite ver o não visto (teo-ria). E este pode ser dito porque somos constituídos pelo logos, a linguagem (daí ser próprio do ser-humano formular teo-rias, ou seja, paradigmas). É o nous e o logos a partir da poiesis da realidade que constituem o seu sentido e mundo, procurados nos paradigmas.

A realidade como permanência e mudança
O paradigma tenta apreender o que permanece na mudança. Então o paradigma pode ser de duas naturezas: 1ª. Ontológica: manifesta a referência de physis e de eidos (teo-ria), realizada como conhecimento (nous) e linguagem (logos): é a realidade como questão. 2ª. Epistêmica: também pode ser simplesmente a relação da linguagem e do conhecimento com o eidos (teoria) ou paradigma, numa relação verdadeira, isto é, numa episteme, e não numa relação de opinião ou doxa, isto é, aparente, não verdadeira. Foi neste horizonte que Platão, o genial pensador, formulou a teoria do eidos (do verbo grego: eido: ver, olhar, imaginar, representar a partir da realidade ou physis). Eidos ou paradigma são, no fundo, o mesmo: e podem vigorar como questões ou conceitos.
Eidos ou Idéia é o paradigma que preside basicamente os demais paradigmas do Ocidente, nas suas mais diferentes formulações. Mas notemos que o Eidos platônico tanto pode ser lido e entendido ontologica como epistemologicamente. Concluindo, podemos dizer que o paradigma se estrutura em torno de diferentes questões: 1ª. O que é a realidade (physis)? 2ª. O que é a verdade (aletheia, em grego)? 3ª. O que é o conhecimento (nous)? 4ª. O que é o conhecimento verdadeiro (episteme), oposto à simples opinião (doxa)? Estas questões foram reunidas numa 5ª. O que é a linguagem (logos)? É que o substantivo logos forma-se do vergo grego leguein, que significa: reunir e dizer. Por isso, a lógica, baseada no logos, tornou-se a doutrina da verdade epistêmica, isto é, científica ou racional. É que a tradução de logos para o latim foi: ratio, ou seja, razão. Só é científico e verdadeiro o que for racional. Paradoxalmente, o mesmo se diz a partir de um paradigma religioso. Porém, este se funda na fé e não na razão. Nem por isso deixa de ser um paradigma, porque a própria ciência se torna uma questão de fé.
E o que tudo isto tem a ver com leitura e leitor? Estas palavras formam-se do verbo latino: legere, que originou o verbo português: ler. Mas o verbo latino legere e o verbo grego leguein têm a mesma raiz indo-européia e os mesmos sentidos: reunir e dizer.

O paradigma e o sistema ou estrutura
Epistemologicamente, o paradigma se constitui de um sistema de conceitos. Estes, na dinâmica contínua da mudança da realidade, procuram dar conta de e estabelecer a permanência, o que não muda. Tal permanência se constitui como estrutura, onde os fatos se concatenam num sistema de relações e correlações opositivas e complementares. Tal sistema é como uma teia ou rede, onde os as linhas e os nós são determinados pelas funções, determinando também estas os agentes no âmbito e alcance dos paradigmas e de sua estrutura. É esta de antemão que estabelece os significados possíveis.
Num paradigma epistêmico, os vazios da rede ficam ignorados e silenciados. Porém, não há rede ou sistema sem o vazio e o silêncio de toda fala, a partir dos quais toda rede pode-se localizar e ser rede. Na estrutura, cada parte é uma função do todo. A parte não tem sentido em si.

O paradigma e o corpo
Ontologicamente, cada parte contém em si o todo. Isto está hoje confirmado pela genética. No todo o paradigma vive da tensão entre questão e conceito. Por isso, no lugar do sistema como organismo, teremos sempre um corpo vivo, numa grande teia da vida, onde as relações são sempre de sentido e mundo. Como corpo, é o seu mundo e sentido que dão não só o alcance do paradigma, como também o que o pode constituir e mudar. O corpo, como manifestação da realidade em mundo e em sentido, acontece na tensão de questão e conceito. Por isso, o corpo é o lugar da memória enquanto tempo, linguagem e poiesis. Toda obra de arte se considera um corpo de sentido e mundo. Tentar reduzi-la a qualquer análise paradigmática epistemológica é anular o que lhe é próprio: a realidade enquanto manifestação de sentido e mundo. Podemos falar em quatro corpos fundamentais: o corpo que cada um tem, o corpo familiar (genos), o corpo social, o corpo Terra ou Gaia, a grande teia da vida.

Os diferentes paradigmas
Os paradigmas podem ser lingüísticos, culturais, religiosos, políticos, filosóficos, científicos, ideológicos etc. Como eles determinam uma relação direta com a realidade natural e social, implicam sempre uma determinada verdade, confundida com a própria realidade. Então a realidade é vista e experimentada no âmbito da verdade, dos valores e das identidades inerentes aos paradigmas em que circunscrevem para cada um e para o grupo social a realidade como verdade.

O paradigma e as leituras
Muitas são as leituras possíveis porque muitos são os paradigmas. Quando o leitor se propõe a fazer uma leitura, esta já é feita dentro de um determinado paradigma. Como sinônimos aproximados de paradigma, poderíamos apontar: cânone, sistema, idéia, corrente crítica, doutrina, disciplina, teoria, ideologia, época, padrão, modelo, arquétipo, idéia exemplar, imaginário, símbolo. Muitas vezes um paradigma geral é subdividido em paradigmas menores. Isso ocorre muito com as disciplinas, subdivididas em diversos campos. A relação dos paradigmas com a realidade se dá através dos conceitos. O conceito é uma questão delimitada pelo alcance e limites dos paradigmas, com suas terminologias, conhecimentos e significados.

O paradigma e o leitor
É claro que todo leitor traz uma carga e motivação pessoal ao fazer uma leitura, dentro do seu horizonte de expectativa, mas sua subjetividade é pré-determinada por um ou mais paradigmas. Com isso, a subjetividade do leitor tende a ser dissolvida na teia dos paradigmas conceituais. Surge daí tanto o ilusão da subjetividade como da objetividade. Para além destas há os paradigmas e o que dá origem a todos os paradigmas. Não podemos esquecer que o leitor, todo leitor, ao nascer já está inserido numa determinada língua, cultura, identidade, ambiente, mundo e tradição. Estes delimitam os seus horizontes de possíveis leituras. Nesse caso, a diferença de leituras está na dependência do domínio dos diferentes conhecimentos e vocabulário, inerentes aos paradigmas em que ele está inserido. A aparente diferença de leituras está diretamente relacionada ao domínio do vocabulário e conhecimentos dos paradigmas dominantes, em relação à realidade. Porém, o leitor pode ser mais do que os paradigmas.
Se por um lado, os paradigmas acabam por delimitar o horizonte em que cada um faz a sua formação: família, língua, colégios, conhecimentos, leituras, amizades etc., por outro, as reações e percursos nesses paradigmas são sempre absolutamente singulares, ou seja, há sempre uma faceta subjetiva. Não podemos esquecer que em toda leitura de realidade dentro dos paradigmas, não há só uma relação de conhecimento. Há um agir e reagir em relação aos paradigmas e em relação à realidade: esse agir e reagir gera os valores. É que os paradigmas sempre se estruturam em torno de uma verdade, um sentido e um mundo. Na leitura poética tudo isto sai do âmbito dos conceitos e se dá como questões.
Quando se vai fazer uma leitura poética, fica a questão: Como é possível achar algo em comum para todos? O que identifica os diferentes leitores e aprendizes, caso estejam numa sala de aula e num curso, uma vez que todos ali comparecem com históricos diferentes? O que identifica não só os leitores ou alunos e o próprio professor ou livro de referências? O que é comum a todos? Numa primeira tomada de posição, parece ser o conhecimento a ser aprendido. Mas não é. Sem dúvida nenhuma, o que identifica a todos e está, por isso mesmo, para além dos paradigmas, seus conhecimentos e valores, é o não-saber. O não-saber é a fonte de todo saber, assim como o silêncio é a fonte de todas as falas. Mas pode haver duas atitudes: 1ª. Procurar trazer o não-saber para o saber: âmbito do epistemológico; 2ª. Escutar no dito e falado o não-dito nem falado. Esta segunda instância é o âmbito e o próprio da questão do poético.

O paradigma e a poética
Uma pergunta, naturalmente surge: Toda leitura, todo leitor está determinado pelo paradigma? Pode, mas não necessária e originariamente. Se os paradigmas mudam e não nascem diretamente da realidade como as árvores ou os animais, como eles surgem e podem mudar? A própria palavra paradigma já o diz. Nele há: 1º. A realidade (physis) que se dá a ver; 2º. O ser humano constituído pelo: a – nous intuitivo (que vê em profundidade a partir de um “entre” originário, possibilidade de toda teo-ria); b – logos, pelo qual reúne a manifestação da realidade que se dá a ver e o conhecimento do ver no ser-humano. Notemos bem: dá-se no ser-humano, mas não é este que os cria ou comanda com sua vontade ou razão. Nesse sentido, o ser-humano é constituído pelo logos no diá-logo. O “diá-“ é um prefixo grego que significa: a) Entre; b) Através de. Na dimensão do “entre”, toda palavra pode se tornar ambígua, como ressonância da própria ambigüidade da realidade (physis) que, ao mesmo tempo, se manifesta e se vela.
A referência “entre” a realidade E o ser-humano só pode acontecer no e por aquilo que lhes é comum: o agir, ou em grego, o poiein. Sem o agir não há realidade (physis: o que se torna, o que eclode continuamente) nem ser-humano. O próprio do agir é o poético. A realidade muda continuamente pelo vigor que lhe é inerente: o poiein. Esse vigor se faz presente também no ser-humano, mas é nele uma doação da própria realidade (physis) e não e jamais o resultado do agir da sua vontade ou razão. A essência da realidade (physis) enquanto mudança e permanência é, naturalmente, o agir, o poiein. Todo deiknymi pressupõe o poder se manifestar continuamente da realidade (physis), porque vigora no poiein, ou seja, ela tanto mais se manifesta quanto mais se retrai, vela e guarda poeticamente. O ser-humano se constitui como ser-humano ao ocupar o lugar do entre, no qual e pelo qual lhe é dado também o vigor inerente ao mudar (manifestar, desvelar-se) e permanecer (velar-se e guardar-se), isto é, o poiein, o agir. No e pelo agir poético, que a physis lhe dá, o ser-humano está sempre num paradigma, mas também o precede e sucede, porque é no e pelo poiein que os próprios paradigmas se constituem e são mudados e substituídos. O agir poético precede e está além de todo paradigma, embora esteja radicalmente a ele relacionado, porque somos seres do “entre” manifestar e velar da realidade (physis). No e pelo agir poético é que os paradigmas chegam a se tornar paradigmas, ou seja, é que a realidade (physis) se plenifica como realidade (physis). Então os elementos essenciais dos paradigmas: o conheciemento (nous) e a linguagem (logos) recebem, enquanto sentido e mundo, sua essência da própria essência da realidade (physis), isto é, do poiein da realidade (physis). Nessa constatação, a poiesis é a essência da própria realidade (physis) se manifestando como conhecimento e linguagem: paradigma. Este só pode vigorar enquanto mundo e sentido. Mas ele só chega a ser o que é pela poiesis. É nesse sentido que as obras poéticas são a própria realidade se manifestando e velando como obras (o que opera e age), isto é, paradigmas poéticos (questões/corpo) e não e jamais só epistemológicos (conceitos/organismos).
As obras poéticas, como corpo, exigem, pois, uma leitura poética. E só esta pode auscultar a realidade dando-se como mundo e sentido nas obras poéticas. A poética, como essência do próprio agir da realidade, não se constitui jamais só de paradigmas conceituais epistemológicos. Nelas, a realidade (physis) se manifesta e vela como paradigmas ontológicos. A leitura que se abre para a escuta da fala da realidade como logos e nous é o que entendemos como leitura poética. Aí o leitor só é leitor quando se abre para a fala do logos e do nous, enquanto diá-logo de escuta. Toda leitura poética é um diá-logo de escuta do logos da realidade (physis) que se dá como ser e conhecer/pensar (einai e noein: “... pois o mesmo é pensar e ser.” Fragmento III, de Parmênides).
Uma leitura poética é aquela que se localiza e move dentro e a partir do questionar: lê-se para questionar e questiona-se para ler e ser. Ao agir concreto do distinguir e diferenciar é que se denomina, com precisão, uma leitura poética, pelo exercício concreto do dialogar enquanto escuta do logos, segundo o fragmento 50 de Heráclito: “Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um.”

Bibliografia

CASTRO, Manuel Antônio de. Paradigma e identidade. In: -------. Tempos de metamorfose. Rio, Tempo Brasileiro, 1994.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1987.

MORA, FERRATER. Dicionário de Filosofia. Verbete: Paradigma.

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